Um dever de memória

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Joana Hadjithomas e Khalil Joreige

O cinema enquanto testemunho: a obra dos libaneses Joana Hadjithomas e Khalil Joreige no Curtas de Vila do Conde

Há uma história antes do cinema de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige, a dupla libanesa que o Curtas Vila do Conde traz este ano para a secção In Focus. Um conflito entre árabes e israelitas que parece não ter fim. Os cineastas nasceram ambos em Beirute, em 1969, antes da primeira invasão do Sul do Líbano, por Israel, em 1978 - os acontecimentos vividos desde então no país, incluindo guerras civis, não podem ser separados das disputas territoriais seculares que têm afectado o Médio Oriente. É a partir desse pano de fundo que nos falam as imagens propostas pelos realizadores: os seus filmes passam-nos o testemunho. Como nos diz o título de uma das longas-metragens, "Eu quero ver".

Quando partiram para a realização deste filme realizado após a guerra de 2006, em que Israel bombardeia e invade o Líbano depois de o Hezbollah ter capturado dois soldados israelitas, Hadjithomas e Joreige procuraram responder à pergunta: "O que é que o cinema pode fazer?" A resposta é dada por dois actores, a francesa Catherine Deneuve e o libanês Rabih Mroué, que viajam através do país para ver a destruição e os perigos provocados pelo conflito. "Eu quero ver" define uma das essências do cinema, aqui entendido também enquanto documento, o de revelar o outro, transpondo as fronteiras geográficas.

Como escreve Jean-Luc Godard: "O cinema pode contar uma história, é esse o seu poder." Godard irá testemunhar outras guerras, massacres e genocídios - o conflito israelo-palestiniano passa por "A Nossa Música" (2004) -, outros nomes: Auschwitz, Sarajevo. Claude Lanzmann, com "Shoah" (1985), um documento oral do holocausto, também participa dessa vontade de resistir ao esquecimento. O horror não tem fim, é-nos dito todos os dias: "Eu quero ver", afirma Deneuve. Diz-nos ainda Godard: "Fazer uma descrição precisa daquilo que nunca teve lugar é o trabalho do historiador."

Beirute é um território de onde têm surgido, nos últimos anos, uma série criadores relacionados não só com o cinema, mas também com a arte contemporânea - em 2002, na Fundação Antoni Tàpies, em Barcelona, aconteceu uma das exposições dedicada às práticas artísticas provenientes daquela cidade, destacando-se então os trabalhos do Atlas Group/ Walid Raad - a obra deste artista foi mostrada na Culturgest, em Lisboa -, Rabih Mroué, Marwan Rechmaoui, Jalal Toufic, Paola Yacoub e Walid Sadek. Outros nomes têm surgido desde esse momento fundador: Ziad Antar, Lamia Joreige, Randa Mirza, Akram Zaatari e os próprios Joana Hadjithomas e Khalil Joreige.

Catherine David, a comissária da mostra da Fundação Tàpies - "Tamáss - representações árabes contemporâneas: Beirute/ Líbano" -, escreve na introdução do catálogo: "Embora já não seja aceitável continuar a considerar o Líbano como 'modelo' ou 'excepção' dentro do mundo árabe, a preocupação de alguns intelectuais libaneses - imediatamente depois da guerra [o fim coincide com a retirada do exército israelita em 2000] - pelo desenvolvimento e a promoção de uma cultura árabe contemporânea, experimental e crítica, é razão suficiente para destacar um grupo de autores que sente a necessidade de encontrar-se, discutir um projecto cultural a médio prazo, na sua própria cidade e no seu próprio contexto."
Uma nova guerra ocorreu em 2006. Joana Hadjithomas e Khalil Joreige dão-nos o seu testemunho através do percurso realizado por Deneuve e Mroué. Semelhante função cumprem os testemunhos de seis prisioneiros que revelam a existência do campo de detenção de Khiam, quer após terem sido libertados, em finais dos anos 1990, quer após a destruição da prisão pelos bombardeamentos de há três anos. Um filme dos cineastas, "Khiam" (2000-2007), documenta não só episódios de sobrevivência, mas também a tentativa de apagar a história. Dos destroços emergem as palavras: é este o poder do cinema; apesar da sua impotência em mudar o curso dos acontecimentos, ele cumpre assim o seu dever de memória. "Eu quero ver". Nós também.
Em Vila do Conde, para além da exposição "Wish we could tell", que será inaugurada amanhã no Teatro Municipal e reúne, entre outros, os vídeos "Khiam", "Distracted Bullets" e "Lasting Images", será possível assistir a uma "masterclass" de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige (domingo, 17h) e à projecção de alguns filmes da dupla, entre os quais "Quero Ver" (dia 6, 17h) e "Le film Perdu" (dia 11, 20h) - uma meditação sobre o cinema, o seu desaparecimento, a partir de uma investigação realizada no Iémen.

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