Frente-a-frente

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Jorge Silva Melo e André Murraças

Jorge Silva Melo e André Murraças juntos em palco. Não é um espectáculo, são dois, no Festival de Almada. Mas aqui é um frente-a-frente sobre gerações de gente "dos teatros". De um lado do ringue ainda há crença. No outro, reina o cepticismo.

- "Eu conheço-te há dez anos... Foi no 'Prometeu [Agrilhoado/Libertado', 1997] que a gente se conheceu, não é?"
- "Sim, eu tinha acabado de voltar da Holanda"
- "O André já tem o quê, oito temporadas a fazer regularmente espectáculos? Começou a criar o seu mundo há oito anos".
E, no entanto, André Murraças é eternamente jovem, eternamente emergente, irrita-se Jorge Silva Melo. Qual fonte da eterna juventude, qual quê. Quer ser jovem para sempre? Venha a Portugal e seja artista.
Jorge Silva Melo e André Murraças chegam a esta conclusão no palco da Sala Experimental do Teatro D. Maria II. O seu texto não está escrito - é um frente-a-frente de improviso, uma conversa com o Ípsilon na sombra. É uma conversa entre André "multitasker" e Silva Melo "bígamo, praticante!".
Segunda e terça-feira, Jorge Silva Melo estará no palco do Instituto Franco-Português, em Lisboa, para apresentar (é o termo que prefere para explicar o que será a sua participação no Festival de Almada) "Carta aos Actores", do francês Valère Novarina. Na quarta-feira, André Murraças verá os seus cenários e figurinos encherem-se com três actrizes - Anabela Brígida, Maria João Falcão, Sofia Correia - para contarem histórias de "Film noir", escrito e encenado por ele. Ambos os espectáculos implicam ou são pretexto para uma reflexão sobre a pulsão de actuar, os códigos da dramaturgia, sobre os actores.
André é o "multitasker", o fruto do útero Internet, autor, "copywriter" de publicidade, encenador, actor, performer. Jorge Silva Melo está já embebido da ironia que lhe permite intitular-se "velho considerado", encenador e actor - mas sem teatro. E por isso zanga-se e assinala o último trecho dos três anos de parceria com o Instituto Franco-Português com dois textos de Novarina cheios "de uma fúria, enorme, contra os intermediários, os muitos intermediários que apareceram no mundo das artes. Todos são programadores, curadores, intérpretes, encenadores, são milhões! Enquanto o puro, simples gesto infantil de representar é atirado para o controlo de milhares de polícias".
"Há quase um ano fomos expulsos das Mónicas", recorda, sobre os seus Artistas Unidos e o seu exílio, a sua situação apátrida. "Por isso, o que é este espectáculo? É um testamento de uma companhia, talvez seja um dos últimos espectáculos deste modelo de companhia que foi os Artistas Unidos".
André Murraças observa o seu interlocutor, atento. Estão os dois no seu cenário, mas numa sala que também não é sua. Ali André é um convidado, após concurso para integrar o Projecto Emergentes do D. Maria, focado nas artes cénicas. Atrás de Jorge e André, décadas de cinema os contemplam - Lauren Bacall, Barbara Stanwyck, Scarlett Johansson, James Stewart, Robert DeNiro, Rita Hayworth, John Garfield, todos retirados da Internet, colados com fita. Ao lado, o cenário, marcado apenas no chão, os adereços - um telefone, saltos altos, uma luva de boxe. André Murraças e a sua equipa quiseram saber "o que é isso do film-noir". E trabalharam "a ideia de fatalidade, de destino" e o lado visual da coisa, ou não fosse Murraças cenógrafo de formação. E, depois, ou antes de mais, as mulheres. Os homens estão lá, em "Chinatown", em "A Mulher que Viveu Duas Vezes", "Três Minutos de Vida" ou "Gilda". "Vamps", sós durante a guerra?

Jorge Silva Melo - "Barbara Stanwyck era a actriz preferida do meu pai. Era uma actriz extraordinária".
André Murraças: "Também é das que eu gosto mais".

Silva Melo recorda a história do cinema americano, as etapas da conquista marcadas pelos "westerns" e a da queda, da "decadência do filme negro". "E cruzam-se. No filme negro há a mentira, a corrupção absoluta. Estamos em Portugal, afinal, não é na América!" [risos]
Sentado, primeiro ao lado de Murraças, depois rodando para melhor ver Stanwyck ou Bacall, Silva Melo está inquieto, mas divertido. Incrédulo, também, com o pretexto do seu texto em mente. "Carta aos actores" é "uma espécie de interpelação aos actores, que eu não sou já, tentando exigir dos actores mais do que aquilo que eles me têm dado". É-lhes pedido que "expulsem a figura do encenador, que tomem conta dos seus destinos, dos seus direitos". Tal como gostaria de ver os actores no centro, libertos dos "doutorandos, como eu, que lhes diziam: 'Desculpa lá, o Brecht não dizia isso'". E que os castravam. E teme agora que a geração Murraças, e a que vem a seguir, sofra o mesmo destino às mãos dos tais intermediários.
Ambos defendem que os programadores deviam estar sensíveis ao que está a passar-se na criação - como um bom anfitrião que compõe a melhor mesa para uma festa, uma refeição, inesquecível. Silva Melo acompanha o trabalho dessas gerações - "Gosto muito de ver logo as primeiras coisinhas que eles fazem" -, menciona Pedro Gil ou John Rocha.
Acha-os "heróicos", na sua criação individual, hoje em Portugal. "Porque além do trabalho artístico ainda tem de estar a convencer toda a gente de que ainda é jovem, quando já não é, que ainda é emergente, quando já não é, que até aos 50 anos vai ser jovem, que o trabalho dele é interessante. O que é muito estranho". Mas mais barato e impeditivo do surgimento de mais jovens criadores, elucidam-nos.
"Muitas vezes penso que é muito mais fácil fazer sozinho, porque é uma gestão mais controlada, mas não deixa de haver os problemas todos, das salas, dos programadores. São coisas que vão aparecendo cada vez mais para... empatar. Não que eu queira facilidades, mas pelo menos disponibilidade", pede Murraças.

André Murraças: "Vamos todos ser emergentes até ao fim, assim o espero."
Jorge Silva Melo: "Eu não, já estou enterrado [risos]. Eu suspiro pelo Cemitério dos Prazeres, não consegui ter a vida dos prazeres, acho que o cemitério devo conseguir [risos].
André Murraças: "Eu não vejo as coisas assim, eu vejo-me sempre a começar. Nem penso se tenho idade para ser isto ou aquilo"
Ípsilon: "Não pensa numa lógica de carreira?"
André Murraças: "Para já, não gosto nada dessa palavra, penso logo num eléctrico, no 28."
Jorge Silva Melo: "Já não há! Nem sequer há eléctricos!"
Ípsilon: "Ainda há o 28."
Jorge Silva Melo: "É para turistas!" [risos]
André Murraças: "Não penso assim, vou fazendo. Claro que gostava que cada trabalho que fizesse fosse sempre com mais condições, com mais reconhecimento no sentido em que ele me traz mais segurança, dinheiro, porque caramba, estamos a trabalhar!"

Ambos sentem uma ausência, uma mudança na paisagem. Antes havia espaços "off", sem as garantias do selo D. Maria, São Luiz, exemplificam. Há menos espaços, menos público, e também uma "doentia" (expressão muito repetida por Silva Melo) ausência de crítica.


Jorge Silva Melo: "É um sintoma de grande doença. Há cada vez menos gente na disposição de sair à noite para descobrir uma coisa que não conhece."
André Murraças: "Uma morada que não conhece, uma sala. Os próprios criadores afastaram-se de trabalhar nessas condições. Porque foram assimilados e ficando nas instituições. E, por outro lado, porque as pessoas também se cansam da luta que é não ter luz, não ter gás... "

A culpa, essa, também é dos criadores teatrais. "A minha geração criou essa aversão que as pessoas têm de nós. Muito talvez em paralelo com o que aconteceu com a [nova] dança [portuguesa e o seu funcionamento em circuito fechado, sem eco social] e com essa coisa de espectáculos indefinidos... Isto de brincarmos com as barreiras das coisas é engraçado, mas as pessoas reagem muito mal. Não é teatro, não é dança, mas também não é nada facilmente assimilável. E as pessoas não ficam disponíveis", enuncia Murraças.
A meio da conversa, Silva Melo promete um filme a André Murraças: o "sublime" "Série Negra" (de Alain Corneau). "É um filme rude, é uma 'série noir' não penteada. Se eu encontrar em DVD, ofereço-te". Murraças anui.
Ao longo do frente-a-frente, de um lado do ringue ainda há crença. No outro, reina o cepticismo. Só se quebra o enguiço olhando para a parede, a tal cheia de fotos de mulheres fatais e homens em queda. Convidado pelo Ípsilon a pensar na sua "Carta aos Actores" à luz (ou à ausência dela) do "film-noir", Silva Melo dispara: "Diz-se que os actores são estrelas. Pergunto: ou serão planetas? São eles que atiram a luz ou são planetas que recebem a luz e a dão? Se calhar seria mais justo chamar-lhes planetas, para aquilo que são convocados." Mergulha nas dificuldades em categorizar actores, e daí salta para a indefinição do próprio Murraças, qual pescadinha que insiste em retornar ao busílis da questão: hoje somos todos muita coisa e não apenas uma ou duas. Múltiplos.

Jorge Silva Melo: "Quem é o André? É escritor, actor, o quê? É isso que me interessa".
André Murraças: "Eu quando souber o que sou... é altura para arrumar os tarecos. Tenho formação de cenografia, sempre vi as coisas pelo lado mais plástico. Por outro lado sempre escrevi. Sempre saltitei. Depois compliquei as coisas porque comecei a pôr música e diz-se que às vezes sou DJ. Não me defino, estou o mais aberto possível e respondo da mesma maneira."

E, afinal, a poucos dias da estreia e à conversa nos confins do D. Maria II, sentem-se ou não num confronto de gerações?

Jorge Silva Melo: "Não sinto assim muito"
André Murraças: "Não."
Jorge Silva Melo: "Acho curioso é que há muito pouca gente da minha idade que tenha esta vastidão de interesses que o André tem. Há mais pessoas da idade dele que têm essa indefinição, [que] em alguns [é] hesitação."
André Murraças: "Mas também é mais difícil furar quando não se é só actor, quando não se é só cenógrafo. Há muita gente que me conhece do 'Rapaz do Calendário' da [rádio] Radar e que não faz ideia que sou dos teatros... Há pessoas que me conhecem só da publicidade, como 'copy'. E isso atraiçoa-me, muitas vezes."
Jorge Silva Melo: "Mas é porque não existem, ou porque vocês não criaram, relações. As pessoas um bocadinho mais velhas do que tu, que fizeram o Conservatório, já têm uma espécie de rede em que praticamente todos se cruzam."
André Murraças: "Eu acho que somos pouco solidários."
Jorge Silva Melo: "São projectos individuais."
André Murraças: "Quando é mais difícil, também não ajudas os outros; para ti foi difícil por isso..."
Jorge Silva Melo: "[Mas] isto não pode ser só comércio tradicional, é preciso um grande armazém para que estes projectos tenham dimensão. Ou morram! Ele não pode ser emergente aos 33. Não pode! Que foi a conta que Deus fez. O outro não era emergente! Emergente na ressurreição! (risos)"

Carta aos Actores
de Valère Novarina, com Jorge Silva Melo
Lisboa, Instituto Franco-Português, 2ª, 6, às 21h; 3ª, 7, às 19h

Film Noir
de André Murraças
Lisboa Teatro Nacional D. Maria II, Sala Experimental, 4ª, 8, 5ª, 9, 6ª, 10, sáb., 11, às 21h45; dom., 12, às 16h15

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