Programado para ser uma estrela

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Personagem inescapável da música popular das últimas quatro décadas, Michael Jackson foi a criança-prodígio que soube construir-se como estrela. Fica na história como génio musical e como protagonista da trágica fantasia que foi a sua vida.

Estávamos na tarde de 3 de Março. Mundo fora, milhões de olhos colados aos ecrãs de computador. Na O2 Arena, em Londres, centenas de pessoas acotoveladas. Lá dentro e mundo fora, todos esperavam algo que já se julgava impossível. Michael Jackson, recluso entre o Dubai, a Irlanda e o Reino Unido desde 2005, quando fora acusado, e posteriormente absolvido, de abuso sexual de menores, preparava-se para anunciar o seu regresso. Uma hora e meia depois do marcado, subiu ao palco e acenou à multidão. Os fãs gritaram o seu nome. Ele sorriu e cerrou o punho num gesto de vitória: "This is it!" Publicidade: era esse o nome dado à série de actuações que ali se revelavam. "Estes serão os meus últimos concertos em Londres", afirmou. "This is it!" repetiu, vezes sem conta. Jackson estava de volta e o simples facto de estar ali era uma revelação.

Depois das atribulações dos últimos anos, com um julgamento, com os rumores que o davam como gravemente doente, com as notícias de que estaria falido, ver-lhe a pose assertiva - linguagem corporal que dispensava as palavras que não chegou a dizer - parecia indicar que sim, era a sério. Nesse dia, anunciaram-se dez concertos para a O2 Arena londrina, com início marcado para o mês de Julho. Nas semanas seguintes, perante a imensa procura de bilhetes, a dezena de datas quintuplicou. Para um músico que não actuava desde 2001, era uma verdadeira loucura: 50 concertos. "This is it."
Quinta-feira, 25 de Junho, a expressão ganhou uma nova e trágica ressonância. Nunca saberemos o que seria este épico regresso. Nunca saberemos se Michael Jackson reclamaria de novo o trono como rei da pop.

Os paramédicos chegaram à sua casa no bairro de Bel Air, Los Angeles, às 12h26 locais (21h26 em Lisboa), alguns minutos depois de Jackson ter sofrido uma paragem cardio-respiratória. Pouco depois, entrava no hospital já em coma. Segundo adiantaria mais tarde o irmão Jermaine, as tentativas de reanimação prolongaram-se por uma hora. Infrutíferas. Duas horas após o colapso em casa, a morte de Michael Jackson foi divulgada.

Às portas do Centro Médico da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, aglomerava-se uma multidão de fãs. Helicópteros da imprensa sobrevoavam o edifício. Repórteres acorriam ao local. E, por todo o mundo, pessoas começavam a sair à rua para lhe prestar um último tributo. Em Los Angeles, a meio da tarde, a CNN filmava um casal no Passeio das Estrelas, em Hollywood Boulevard. Duas velas, os dois sentados. Na estrela à sua frente lia-se Michael Jackson. O nome era o correcto, mas não era o autor de Thriller que ali se imortalizara, antes um locutor radiofónico com quem partilhava o baptismo. A do músico que conhecemos nos Jackson 5, essa, estava inacessível defronte de um cinema, tapada pela carpete vermelha que, horas mais tarde, seria pisada pelas estrelas que assistiram à estreia de Brüno, o novo filme de Sacha Baron Choen. Um acaso. Sintomático.

Conto de fadas pop

Citemos um texto escrito pelo jornalista e escritor Barney Hoskyns no semanário britânico New Musical Express: "Houve um tempo em que escrevi mal dos Jacksons. Quanto a Michael, senti-me seguro de que este dínamo endiabrado, parte Frankie Lymon [estrela adolescente da década de 1950], parte James Brown - e também com algo do génio de 12 anos Little Stevie [Wonder] -, iria, como todas as crianças estrela, quebrar, enlouquecer ou acabar, como Frankie, um toxicodependente sem um tostão. Não é assim que terminam todos contos de fadas da pop?" Hoskyns escreveu-o em 1983, quando Michael Jackson era a maior estrela do planeta, estatuto garantido com a edição, um ano antes, de Thriller. Tinha 25 anos e o conto de fadas era fantasia ultrapassada pela realidade. O miúdo-prodígio que aos seis anos, integrado nos Jackson 5, tivera direito a ovação de pé no mítico Apollo de Nova Iorque, templo da música negra, que saltara para a ribalta aos 11, quando os Jackson 5 editam I want you back, primeiro single pela Motown, que atravessara a década de 1970 entre as baladas, o funk e disco-sound que manteve os Jacksons como celebridades da música afro-americana, esse miúdo de nome Michael Jackson, dizíamos, emancipara-se dos irmãos e, com música que enxertava genes pop em alma soul, passos de dança que mereciam os aplausos de Fred Astaire e um cuidado cénico que deu forma à geração MTV, tornou-se maior que todos os outros.

Vinte sete anos depois de Thriller, recontextualizemos o raciocínio de Barney Hoskyns. Não, não é assim que acabam todos os contos de fadas da pop - temos Michael Jackson para o provar. A sua história é única. "Quando crescemos em frente de 100 milhões de pessoas, como eu cresci a partir dos cinco anos, somos automaticamente diferentes", disse na cerimónia dos Grammys, em 1993.
Era uma "figura maior que a vida", como o classifica ao P2 o jornalista e radialista Rui Miguel Abreu, que o vê como um dos "grandes transformadores da música negra". "Incontornável", dispara o rapper Chullage, que se recorda como toda a sua geração, de ascendência cabo-verdiana, "cortava o cabelo como ele, dançava como ele, queria ser como ele". "Um génio com toda a sua carga de sofrimento, vítima de um arco que oscila entre o sucesso e a tragédia", reflecte o músico Pedro Abrunhosa, antes de sentenciar: "É um dos maiores músicos pop do século XX."

Alma antiga, corpo pequeno

Os Jackson 5 actuaram pela primeira vez no Ed Sullivan Show, a principal montra da televisão americana, em 1969. Mostraram os passos de dança bem ensaiados e tocaram em playback I want you back, o seu primeiro single, que acabara de subir ao topo da tabela de vendas. O principal vocalista, o mais novo dos cinco, centrava as atenções. Aos 11 anos, era um pequeno James Brown de chapéu púrpura e voz tão frenética quanto os movimentos do corpo. Canção terminada, o decano Ed Sullivan cumprimenta-os e elogia-os. Dirige algumas palavras a Diana Ross, a "madrinha" do grupo, e termina dizendo: "Estes jovens são impressionantes. Principalmente o pequeno na frente. É incrível."
Ver as imagens hoje (estão disponíveis no YouTube) deixa outra impressão. A música continua funky como sempre, os passos de dança são um festim para os olhos. Porém, percebemos, primeiro, que havia um tempo em que Michael Jackson, personalidade omnipresente cuja influência na evolução da música pop é incalculável, era o anónimo "pequeno na frente". Depois, concluímos rapidamente que aquela aparição televisiva foi a última vez que tal aconteceu. A partir daí, aos 11 anos, o sétimo dos nove filhos de Joe e Katherine Jackson, nascido numa pequena casa em Gary, Indiana, não mais deixaria de ser Michael Jackson. Rui Miguel Abreu, especialista em música negra: "Um talento maior, como se tivesse sido programado para ser uma estrela." "Como se tivesse sido programado para ser uma estrela" - esta frase é a chave para o percebermos. Michael Jackson foi efectivamente programado para ser uma estrela. Mas, ao contrário da maioria das crianças celebridades, soube construir-se como tal.

Nascido em 1958, partilhava um dos dois quartos da casa com os irmãos. Era nele que improvisavam harmonias vocais durante a noite, quais canções de embalar. O pai, operário na indústria do aço, reparando no talento dos filhos, cedo tomou conta dos seus destinos. Seriam uma banda - e ele faria tudo o necessário para que fossem bons: liderava os ensaios armado com um cinto, que descarregava sobre os filhos cada vez que estes falhavam uma nota ou um passo de dança. O pequeno Michael, o melhor vocalista e dançarino entre os cinco, liderava a banda (inevitavelmente).

Poucos anos depois, estavam a prestar uma audição para a Motown: um jardim com piscina, as Supremes, Smokey Robinson, Martha & The Vandelas, o patrão Berry Gordy. A nata da Motown como público, a entrada na editora selada com aplausos e Diana Ross oferecendo-se para os apadrinhar. A partir de então, esse passou a ser o seu mundo. Os seus amigos eram celebridades adultas, o seu recreio os ensaios e os concertos - com eles aprendeu, afincadamente, rodeado deles criou uma barreira em relação ao mundo exterior que se revelaria impossível de desmantelar. Não admira a afinidade que afirmava sentir por John Merrick, o famoso Homem Elefante ("Fez-me chorar, porque me revi a mim próprio na história", contou em tempos), não surpreende que se comovesse tanto com o E.T. de Spielberg.

Em 1984, a Time fez dele capa. No extenso artigo no interior, escrevia-se: "Jackson está a um mundo de distância, [é] um fenómeno que existe da mesma forma que vive a estrela, em isolamento." Pedro Abrunhosa também diz que "a questão mais pertinente em Michael Jackson é a solidão". Desenvolve a ideia: "Alguém que se fecha num rancho [o famoso Neverland], que vive sem amigos, perseguido pela fama, pelos media, pela sua própria vida e pelos seus fantasmas... Quem é tão amado e tão odiado não encontraria consolo nem em festas nem em discotecas." Paradoxalmente, é isso que fez dele o rei da pop: a sua música era a projecção de uma fantasia e a sua vida não existia para além dela.

Primeiro, acompanhou as evoluções da música negra americana inserido na linha de montagem perfeita da Motown: da "soul bubblegum", como o classificava Berry Gordy, às intrincadas produções psicadélicas de Norman Whifield e ao "estilo incrível" das dos irmãos Mizell, as preferidas de Rui Miguel Abreu. Depois, quando a conflituosa saída da Motown transformou os Jackson 5 em The Jacksons, aproximou-se do Philly Sound e projectou uma imagem de hedonismo a que o público juvenil aderia com fervor. Finalmente, lançando-se a solo, a explosão criativa definitiva. Off The Wall e a pop a atravessar-se no boogie funk. O aperfeiçoamento dessa linguagem em Thriller: um teledisco histórico, sete singles no Top 10 e a transformação na estrela mais famosa do planeta. Chullage: "A música dele viajou para todo o mundo e inspirou toda uma geração. De pretos, de brancos, de asiáticos." Continua: "A sua dança teve uma influência fulcral no hip-hop e a sua herança ainda está presente sempre que vemos uma coreografia, sempre que vemos alguém a reproduzir o moonwalking."

Nesta altura, já a sua "fantasia", o seu isolamento, se manifestava claramente. A música era só dele, a sua figura diluía-se, sem identidade definida. As canções que eram inspiradíssima fusão de várias expressões, a pele que embranquecia, o corpo que se mutava cirurgia plástica após cirurgia plástica. "Uma infância que se eterniza, uma sexualidade ambígua, uma teatralidade exacerbada", acrescenta Pedro Abrunhosa. "A ambiguidade em relação à sua identidade [afro-americana] marca e dói, não o deixa ser perfeito [aos meus olhos]", refere Chullage, para acrescentar logo de seguida: "Mas a verdade é que agora, com a sua morte, perdeu-se muito. Ao perceber o que perdemos, penso que vamos esquecer esse lado pelo qual o fustigávamos." Acto contínuo, dispara: "Billie Jean! Basta ouvir um pouco e 'uau!' Grande."

Arte e humanidade

Olhar para o percurso de Michael Jackson, o músico, é de certa forma apagar o resto. A forma como o seu afastamento da realidade, a sua paranóia e sonhos de grandeza produziram bizarrias como as estátuas gigantescas que, viajando de cidade em cidade, promoveram a retrospectiva HIStory, editada em 1995. O controverso casamento com Lisa Marie Presley, no ano anterior, pouco após a primeira acusação de abuso sexual de menores. A face deformando-se ano após ano, transformando-lhe a aparência em algo menos humano que alienígena. Michael Joseph Jackson Jr., Prince Michael Jackson II e Paris Jackson, os filhos que protegia obsessivamente, cobrindo-lhes a face com lenços sempre que saíam à rua. Como aponta Rui Miguel Abreu, "fica mais uma vez a ideia claríssima de que arte e humanidade não têm necessariamente de andar de mãos dadas". Acrescenta: "O olhar selectivo sobre o Michael Jackson é uma coisa que incomoda, mas que fica. Fica por ele se ter tornado numa figura maior que a vida."

Mais que isso, arriscamos, ficarão Billie Jean, I want you back, Don't stop 'til you get enough, Beat it ou Rock with you. Ficará uma imagem icónica que atravessou e transformou a história da música popular urbana das últimas quatro décadas. Uma personagem inescapável da mitologia pop.
Ficará um génio musical e a trágica ambiguidade da fantasia que foi a sua vida.

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