Metamorfoses e videoclips

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É um exercício interessante (embora algo triste) ir ao YouTube rever imagens do tempo dos Jackson 5 e depois alguns dos últimos telediscos de Jackson.

Não se pode falar de Michael Jackson sem falar da sua importância para o estabelecimento de uma cultura do videoclip musical. Assim como não se pode deixar de falar da importância do videoclip (ou do teledisco, como se dizia em português e depois, vá lá saber-se porquê, caiu em desuso) na consolidação do culto de Michael Jackson. São duas histórias que vão a par, e as últimas horas, desde o momento em que foi anunciada a morte do denominado "rei da pop", permitiram inúmeras evocações do seu momento-chave: 1982 e Thriller. Chamando um cineasta consagrado e então no auge da sua reputação, John Landis, para dirigir a "versão teledisco" (chamemos-lhe assim) da canção que dava título ao álbum, e entendendo essa "versão teledisco", na prática, como uma curta-metragem que "continha" a canção mais do que simplesmente a ilustrava, Jackson contribuía decisivamente para a expansão das possibilidades (e do reconhecimento) do teledisco enquanto "género". Importa pouco perceber se é, como alguns defendem, o "primeiro teledisco". Um fã dos Queen falará do teledisco de Bohemian Rhapsody, um dylaniano referirá a encenação de Subterranean Homesick Blues no Don't Look Back de Pennebaker, os beatlemaníacos defenderão certas sequências dos filmes que Richard Lester fez com os fab four, e por aí fora até encontrarmos algum cinéfilo a defender que a raiz dos telediscos se encontra nos musicais de Busby Berkeley. A questão é que, justamente, só no tempo de Jackson é que a fome encontrou a vontade de comer, uma vontade de comer que dava pelo nome de MTV e que chamou um figo ao teledisco de Thriller.

Alimentaram-se um ao outro, Jackson puxou pela MTV e a MTV por ele. Antes de ser o "rei da pop", Jackson foi o padrinho da televisão musical; e pode não ter inventado o teledisco, mas esteve na base de uma reconfiguração das prioridades e das estratégias da indústria musical, uma autêntica "metamorfose" com profundas repercussões no modo como a música passou a ser vendida, divulgada e consumida.
Jackson continuou a cultivar o teledisco como objecto possuidor de uma nobreza intrínseca, frequentemente em colaboração com realizadores cujo nome já trazia uma caução de nobreza que não advinha estritamente dos telediscos (em 1987 chamou Martin Scorsese para dirigir o clip de Bad, por exemplo). Com orçamentos mais altos do que o de muitas longas-metragens de cinema, servindo-se de efeitos especiais sofisticadíssimos, cada novo teledisco era anunciado, apresentado e recebido como um "acontecimento" em si mesmo. Se alguns deles eram "geniais" ou simplesmente banalidades insufladas por milhões de dólares e muita publicidade, há opiniões para tudo e não é este o momento de ter essa discussão. Antes, talvez, tentar perceber outra coisa: que história contam esses telediscos? Jackson contou, nalguns deles, histórias muito pessoais - como em Scream, de 1995, em dueto com a irmã Janet e realização de Mark Romanek, num teledisco de "revolta" contra o que a família Jackson via como um tratamento injusto por parte dos media. Talvez um primeiro sinal consciente dos efeitos de uma lógica de voragem - industrial e mediática - que ele, porventura inadvertidamente, contribuiu para alimentar. Jackson, que viveu pública e artisticamente como uma mistura entre Elvis e a Princesa Diana, encontrou uma morte que lembra ao mesmo tempo a de Elvis e a da Princesa Diana, nas circunstâncias e no efeito provocado. Mas, muito para além do que Jackson teria consciência, a sua videografia conta a histórica dessa voragem. É um exercício interessante (embora algo triste) ir ao YouTube rever imagens do tempo dos Jackson 5 e depois alguns dos últimos telediscos de Jackson. O miudito preto com os olhos a brilhar e, mil metamorfoses depois, a criatura de rosto esbranquiçado e farinhento, onde o único brilho é o do reflexo dos projectores nas lentes dos óculos escuros. Jackson não era abençoado, era amaldiçoado. Mais Gregor Samsa do que Peter Pan. Um dia, com sorte, encontrará o cineasta capaz de fazer jus à sua biografia, no tom trágico de um filme de horror poético (como alguns com Vincent Price, que em Thriller passou a pertencer também ao "mundo Jackson"). Até lá, os telediscos contarão esta história, a história do homem que, como em Black & White (dirigido por John Landis em 1991), fez morphing de si próprio.

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