Vandana Shiva: a vida acima do lucro

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Vandana Shiva acordou para o activismo ecologista com o movimento Chipko, no início dos anos 70, quando tinha pouco mais de vinte anos, na sua província natal de Uttarakhand, no norte da Índia, à sombra dos Himalaias.Lembram-se de ouvir falar de tree huggers, daqueles amantes da natureza que gostam de abraçar as árvores? Já todos ouvimos a expressão usada em tom algo irónico, evocando hippies de longas túnicas brancas e flores no cabelo a tentar entrar em harmonia com o Universo, mas a expressão vem de muito antes, desse movimento Chipko, nascido no século XVIII, na aldeia de Khejarli, no distrito de Jodhpur, na Índia, quando 360 adoradores da Natureza, liderados por uma mulher, Amrita Devi, tentaram evitar o abate de árvores que a sua comunidade considerava sagradas, protegendo-as com os seus corpos, e sucumbiram sob os machados dos lenhadores.
Nos anos 70, na senda da acção de Amrita Devi, as mulheres de Uttarakhand fizeram a mesma coisa, também para evitar a destruição das suas florestas comunitárias, desta vez sob as serras do Departamento de Florestas estatal, seguindo o ditame milenar da não-violência mas também da não-cooperação, cuja eficácia Gandhi tornou lendária. Não se pode ver uma fotografia ou um filme destas acções, com filas de mulheres caminhando dignamente pela floresta, para se colocarem à volta das árvores que os madeireiros querem abater -, às vezes famílias inteiras abraçadas em volta de uma árvore, mulheres, crianças, velhos, convictos e graves - sem sentir que o que estão a fazer é profundamente certo e que tem de ser possível o progresso sem destruir a natureza.
No seu livro Staying alive Vandana Shiva escreve que foi com o movimento Chipko que descobriu que havia "dois paradigmas de florestação: um que preserva e promove a vida, outro que destrói a vida". Haveria de descobrir a mesma coisa para a agricultura em geral. E foi aí, também, neste movimento predominantemente feminino, que acordou para o feminismo.
Vandana Shiva, hoje com 56 anos, formou-se em física nuclear (o exemplo de Einstein foi marcante) e doutorou-se em física quântica no Canadá, na Universidade de Western Ontario, depois de ter decidido que não queria ter nada a ver com o lado negro da física: a energia nuclear. Mas, a dada altura, quando se preparava para entrar definitivamente na carreira académica, começou a ter dúvidas sobre o verdadeiro papel que a ciência representava e devia representar na sociedade e no progresso humano. "A Índia tinha a terceira maior comunidade científica do mundo, mas éramos um dos países mais pobres do planeta", escreveu. "Ora a ciência e a tecnologia, em princípio, deviam criar riqueza, reduzir a pobreza. O que é que não estava a funcionar?"
A pergunta levou-a a lançar-se no estudo das relações entre ciência, tecnologia, ambiente e sociedade e a interessar-se pela gestão e pelas políticas públicas e desviou de forma definitiva o seu trajecto para as questões da agricultura, da alimentação e para o activismo ecologista, quando descobriu "que a ciência e a tecnologia dominantes apenas serviam os interesses dos poderosos".
Em 1982, fundou a Research Foundation for Science, Technology and Ecology, uma organização dedicada ao estudo do papel da ciência e da tecnologia em defesa do interesse público, que viria em 1991 a dar lugar ao movimento Navdanya - onde hoje leva a cabo as suas múltiplas actividades.
O Navdanya é muitas coisas ao mesmo tempo. É um movimento de defesa da biodiversidade e de promoção da agricultura biológica, que já converteu mais de 60.000 agricultores para esta prática. É uma associação de 70.000 agricultores e das suas famílias. É um movimento de defesa da agricultura tradicional e de experimentação de técnicas naturais de cultivo. É uma organização de conservação de espécies vegetais autóctones de diversas regiões e de sementes tradicionais, responsável pela conservação de centenas e centenas de espécies de cereais, legumes, oleaginosas, espécies, condimentos, plantas aromáticas, flores e frutos, plantas ornamentais, madeira e plantas medicinais. É uma rede de bancos comunitários de sementes que se estende por 13 dos estados da Índia. É um organismo de formação para a agricultura sustentável, que já formou mais de 200.000 agricultores e que organiza seminários locais e cursos internacionais. E é parte do movimento internacional Slow Food, que promove a gastronomia tradicional.
Mas, além de tudo isto, o Navdanya é conhecido pela sua posição militante contra a agricultura industrial, contra a sobreexploração e a erosão das terras, contra as monoculturas que arruinaram o terceiro mundo, contra a intoxicação de solos e espécies vegetais e animais por pesticidas, contra a manipulação genética de espécies vegetais e, acima de tudo, pelo seu combate sem tréguas contra as patentes sobre sementes, defendidas pelas grandes empresas globais, como a Monsanto, e que Vandana Shiva defende que estão a pauperizar rapidamente os camponeses da Índia - e de outras regiões de mundo - e a provocar novas epidemias de fome.
Vandana Shiva não mastiga as palavras: as grandes empresas de sementes são "os novos piratas" dos tempos modernos, que em nome do "comércio livre" roubam os países pobres do seu capital agrícola, do seu capital genético e dos seus conhecimentos e que depois registam as patentes das novas sementes, transformando os agricultores pobres, de dignos produtores de alimentos, em compradores de sementes, condenando-os à escravidão e à fome, se não à morte.
A morte não se deve apenas directamente à fome, mas também às dívidas acumuladas e à frustração - pois as sementes patenteadas, além do mais, também não têm cumprido as promessas de rendimento. De 1997 até hoje, suicidaram-se mais de 25.000 camponeses indianos - quando o fenómeno era praticamente inexistente antes dessa data. Foi nessa época que os camponeses começaram a ser pressionados a comprar sementes patenteadas e a ser proibidos de guardar semente de um ano para o outro para serem obrigados a comprá-las de novo. Um estudo encomendado pelo governo do estado de Karnataka concluiu que a morte de agricultores se devia ao alcoolismo e não às dívidas - apesar de concluir que mais de noventa por cento dos suicidas estavam esmagados por dívidas. Sintomaticamente, o "estudo científico" sugere que "o Governo deve perseguir judicialmente as pessoas responsáveis por espalhar a falsa informação de que os suicídios de camponeses se devem a fracassos nas colheitas ou a dívidas".
"Nós combatemos a pirataria do saber do terceiro mundo", escrevia Vandana Shiva num artigo de opinião publicado em 2003 no The Guardian britânico. "A biopirataria - a prática através da qual uma corporação patenteia formas de vida e processos e afirma que eles são 'invenções' suas - custa aos países em desenvolvimento 60.000 milhões de dólares por ano (...). Estas patentes também transformam o direito fundamental dos agricultores a trocar sementes num crime, pois as sementes são agora 'propriedade intelectual' das corporações."
O combate a estas patentes - aos chamados TRIPS (Trade Related Intellectual Property Rights ou Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio) - tem sido a mais viva de todas as campanhas do Navdanya. "Nós defendemos que os acordos sobre os TRIPS violam frontalmente os direitos humanos e em particular o acesso à alimentação e à saúde, conferindo direitos monopolísticos ilimitados a corporações nos domínios da saúde e da agricultura", afirma no mesmo artigo.
Ao defender a agricultura tradicional, afirma Vandana Shiva, o Navdanya está a defender a biodiversidade em vez das monoculturas, a reduzir o impacte das alterações climáticas - adoptando culturas menos exigentes em água e vendidas no mercado local, em vez de legumes transportados de avião para países distantes - e está também a combater a pobreza. A pobreza dos camponeses do Terceiro Mundo, defende Vandana Shiva, é causada pelas grandes empresas agrícolas, responsáveis com a sua agricultura química e mecanizada pela erosão e intoxicação das terras, assim como pela falência dos sistemas agrícolas locais, ao impor preços globais baixíssimos através dos subsídios dados aos agricultores do primeiro mundo (com EUA e UE à cabeça).
Vandana Shiva já participou numa dúzia de documentários sobre todos estes temas e já escreveu uma vintena de livros onde defende estas ideias que, segundo nos diz numa conversa telefónica, já estão a ganhar raízes no mundo. "Sabe, as ideias e as práticas são como as sementes. Da mesma maneira que, de uma só semente, pode nascer uma cultura - porque uma semente é um banco de sementes só por si, um banco genético só por si -, também as ideias começam assim. E nós já ganhámos. Já ganhámos porque já vencemos o monopólio, já vencemos a monocultura. Foi para isso que criámos o Navdanya. Basta um camponês estar fora do monopólio para já não haver monopólio. Depois é uma comunidade. E nós já somos muitas comunidades. Os desafios são grandes mas estamos a ganhar.
As pessoas estão a acordar".

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