As fantasias autobiográficas de Paulo Rocha

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Será um filme-"puzzle", cruzamento de histórias autobiográficas com personagens ficcionadas. Uma viagem a correr para trás, até à aldeia de camponeses e varinas de "Mudar de Vida" e à cidade de "Os Verdes Anos".

Em pleno campo, na freguesia de São Vicente de Pereira Jusã, Ovar, numa manhã da Primavera insegura que nos acompanhou, um "acampamento" inesperado destoa na paisagem verdejante. Duas tendas de plástico azul resguardam do sol do meio-dia, de um lado, a câmara de filmar e, de outro, a "régie" onde se acomodam (e se resguardam do sol) o realizador, a anotadora, as actrizes no intervalo da cena que estão a filmar, a maquilhadora, a decoradora, o bombeiro e... o jornalista, que quer estar o mais próximo possível da "Acção".

Visto de fora, o quadro poderia fazer lembrar a divertida cena da cabine do paquete no filme dos irmãos Marx "Uma Noite na Ópera". Mas, aqui, a visível irritação do assistente de realização, Paulo Guilherme, não permitia pensar em comédia. Ele via nessa situação antes uma abusiva ocupação de território necessário ao eficaz decorrer da rodagem...
No meio de todos, indiferente ao bulício em volta, o realizador Paulo Rocha, sentado na sua cadeira de rodas, entusiasma-se com a imagem que lhe é dada pelo ecrã do equipamento digital de alta definição, um enquadramento sobre um cenário sugestivamente bucólico: "Isto está tão próximo da pintura, que eu até tenho dificuldade em perceber como é que vai ficar, no final!"...

A cena que estava a ser filmada, e que precisou de meia dúzia de repetições - "Agora podemos ensaiar e experimentar à-vontade, porque com o vídeo não filmamos a metro, como o fazíamos com a película", graceja o realizador -, passava-se em 1918, tempo de guerra e de outra pandemia que se preparava também para dizimar milhões de pessoas na Europa e no mundo. Duas velhas mulheres percorrem um carreiro num caminho enlameado, no regresso da missa, com seis crianças, resguardadas por dois largos guarda-chuvas de pastor. São a mãe delas (Isabel Ruth) e a Tia das Presas (Márcia Breia), figuras que se perceberá serem dominantes em "Olhos Vermelhos" - título provisório do novo filme de Paulo Rocha, que teve agora as duas primeiras semanas de rodagem na terra dos antepassados do realizador, na Beira Litoral.

Regresso ao passado

O cenário não podia ser mais explícito do desejo do autor de "Os Verdes Anos" (1963) de voltar atrás, na sua vida, na história da sua família e, por extensão, da história de um certo Portugal cada vez mais longínquo mas que permanece presente em pequenos sinais e em muitos lugares do país.
"O meu pai nasceu ali em baixo. A casa ainda tem a cama onde o meu avô morreu. Do outro lado da rua, é a casa onde casou a minha tia", recorda Rocha, já sentado no quintal de uma vivenda próxima - é a hora do almoço e do intervalo neste terceiro dia de filmagens com actores -, que se diferencia das anteriores por ser uma típica casa de brasileiro torna-viagem, paredes azul desbotado, construída nos anos 1920/30 pelo tio do realizador. Nesta hora, associa-se ao grupo a actual proprietária da moradia, Cármen, a prima mais velha de Rocha (n. Porto, 1935).
"Lembro-me dele muito pequenininho. Era uma gracinha, um bonequinho que eu tinha para brincar...", ri-se Cármen, com um tom de intimidade que deixa o realizador desvanecido. "Não contes os segredos todos, se não...", replica Paulo Rocha, e começa a desfiar as histórias da família e do lugar, que ele decidiu transportar para "Olhos Vermelhos", num enredo que está ainda a ser "reescrito" por Regina Guimarães, colaboradora regular do cineasta desde "O Rio do Ouro" (1998). "A reescrita dela é milagrosa. Estou encantado", diz.

Algumas pontas para perceber a extensão e diversidade das fontes que estão na origem de "Olhos Vermelhos", um projecto que Rocha acalenta desde há mais de uma década, que só foi aprovado pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual no ano passado e que deverá ser terminado no próximo Outono, de novo com rodagens em Ovar e também em Arouca, no Porto e em Lisboa.

Há um casal luso-iraquiano que é visita frequenta da casa de Cármen. "Ela é uma portuguesa convertida ao Islão, com véu e tudo, por via do casamento com um iraquiano que foi ferido na guerra Irão-Iraque e que fugiu ao regime de Saddam Hussein. Têm cinco filhos e são muito felizes...".

Há uma ex-professora primária "que se mostrou talentosíssima para a moda", decidiu apostar numa fábrica de calçado - que se vê ao longe, a partir da casa de São Vicente -, e conseguiu mesmo "impor ao Christian Dior um modelo de bota alta desenhada por ela", conquistando, a partir daí, o sucesso mundial...

Há a história de pequenos lavradores, há dois séculos atrás, ascendentes da família Soares Malaquias, de Ovar, do lado da mãe de Paulo Rocha, e que enriqueceram subitamente porque, um dia, a charrua deles "bateu numa pequena panela cheia de objectos de ouro, que foram vender ao Porto"...

Todas estas estórias vão desembocar na casa e na terra da família do pai do realizador (a personagem no filme chama-se Vitalino e, enquanto jovem, é interpretado pelo quase estreante Chandra Malatitsch, mas na idade adulta será o brasileiro Lima Duarte), que viveu entre Ovar e o Porto, e que também ele foi um bem-sucedido "brasileiro torna-viagem". "É uma forma de eu tentar perceber-me, e perceber de onde vêm as minhas virtudes e defeitos", diz o realizador, que apresenta também "Olhos Vermelhos" como "uma fantasia" para fazer justiça ao pai, que desapareceu "prematuramente". "Eu estava a apresentar o 'Mudar de Vida' (1966) no Brasil, quando ele morreu. Achei uma injustiça que ele tenha falecido tão cedo, e resolvi inventar uma vida sucessiva, uma fantasia, para ele continuar a viver."

Uma equipa afectiva

Regressando ao "plateau": a cena que estava a ser filmada com Isabel Ruth e Márcia Breia sucedia a outras rodadas nos dias anteriores, na mesma aldeia, recriando a morte e o enterro do pai de Vitalino (Luís Miguel Cintra). A certa altura, Rocha resolve que deve acrescentar ao guião um grande plano que não estava previsto, mas que ajudará a explicar um gesto com a mão que a Tia das Presas faz recorrentemente, e que na aldeia era visto como uma emanação do espírito do pai desaparecido. Márcia Breia - que teve de receber assistência médica em pleno campo após ter sido ferrada por uma vespa - é uma estreante no "plateau" de Rocha. "Ela é extraordinária no modo como apanha a personagem e como reinventa os seus gestos", diz o realizador, rendido à equipa que o acompanha. "Depois que tive um AVC, mexo-me mal e, por isso, procuro as pessoas que sei que podem colaborar mais facilmente comigo", diz Paulo Rocha.

Acácio de Almeida, director de fotografia que começou a trabalhar com o realizador nos anos 70, e fez a imagem de "A Ilha dos Amores" (1982); a já citada Regina Guimarães e a artista plástica Manuela Bronze, figurinista desde "O Rio do Ouro", e que foi agora recuperar para "Olhos Vermelhos" os vistosos chapeirões das varinas de Ovar; Júlia Buisel, a anotadora habitual de Manoel de Oliveira, constituem o núcleo cinéfilo e afectivo de Rocha. Nele entrou também agora, a dirigir o som, Olivier Blanc, que fez "Juventude em Marcha" de Pedro Costa - "o realizador de quem toda a gente agora fala nos festivais", realça Paulo Rocha.

Mas, de entre todos eles, destaca-se Isabel Ruth, a sua actriz mais fiel e que vem do tempo dos seus "verdes anos" (e de "Mudar de Vida", "O Desejado, "O Rio do Ouro", "A Raiz do Coração", "Vanitas"). "Ela é a que me dá menos trabalho a filmar. Nunca me cria problemas, mesmo se às vezes é difícil e complicada; acaba por fazer sempre dez vezes melhor do que aquilo que lhe proponho".

Isabel Ruth refere-se à presença recorrente nos filmes de Rocha como algo de "óbvio". "Às vezes, não há escolhas. Há sempre a vontade de trabalhar e o desejo de fazer cinema. E fazer cinema na idade que tenho, e nos tempos que correm, é um privilégio, uma bênção", diz a actriz. Este trabalho com Paulo Rocha pode, aliás, vir a adquirir um significado especial para ambos. É que neste seu projecto autobiográfico, o realizador está a pensar recuperar não só os filmes familiares que possui, em 8 mm e 16 mm, mas também sequências da sua filmografia profissional. E aqui a actriz tem presença dominante. "Tenho em casa imagens da Isabel Ruth nos papéis mais diversos, nalguns casos em personagens que são o contrário umas das outras. Com elas estou a pensar construir um retrato cubista dela", diz o realizador.

Este projecto poderá satisfazer um desejo antigo de Isabel Ruth, que é também o de fazer "uma espécie de autobiografia", com imagens documentais em paralelo com alguma ficção.
Até lá, "Olhos Vermelhos" vai-se construindo como um "puzzle", o que é já uma marca do cinema de Paulo Rocha, nota Isabel Ruth. "Às vezes, é engraçado não sabermos para onde caminhamos. Estamos habituados a sentir sempre o chão debaixo dos pés. Mas a vida cada vez nos tira mais o tapete. Muitas vezes, é aí que descobrimos que também temos asas, e começamos a voar".

Neste "puzzle" vão entrar também sequências dos filmes da vida de Rocha e o imaginário da pintura. O autor do documentário ficcionado sobre a vida e obra de Amadeo de Sousa-Cardoso, "Máscara de Aço Contra Abismo Azul" (1989), convoca o imaginário e "as máscaras visionárias" do pintor de Amarante para o seu trabalho. Até porque, recorda, "o Amadeo morreu na mesma semana em que morreu o meu avô, ambos vitimados pela pneumónica". Muitos dos homens que então sobreviveram foram procurar melhores ares e melhor fortuna para o Brasil. É também destas raízes que nasceu e vive Paulo Rocha.

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