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Giotto A humanização de Deus

Quem nunca esteve em Assis, Florença ou Pádua ainda não viu Giotto? E quem não foi a S. Marcos de Florença ainda não contemplou Fra Angélico? Duas exposições em Roma reúnem algumas das melhores peças móveis dos dois pintores: um humaniza Deus e antecipa o Renascimento, o outro é a sua aurora e a revelação da luz divina. Por António Marujo

a Somos recebidos por várias figuras célebres, dispostas assim em fila. E uma delas foi já vítima de um atentado. Numa das filas, estão a Virgem com o Menino, São João Evangelista, São Pedro e São Bento. Numa outra, além de João e da Virgem, também João Baptista e Francisco de Assis. Mas esta exposição irá revelar-nos mais surpresas, adiante.
As peças da entrada são de Giotto. O políptico de Badia veio da galeria dos Uffizi, de Florença, depois de restaurado. O políptico de Peruzzi é proveniente do Museu de Arte da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Neles se representam várias figuras da história bíblica ou cristã.
Os dois estão entre a meia dúzia de obras de Giotto di Bondone (c. 1267 - 1337) que, nesta exposição no Vittoriano, em Roma, o colocam em diálogo com os contemporâneos do Trezentos italiano. Em centena e meia de obras (pintura, escultura, ourivesaria e iluminura), mostra-se a importância e influência da inovação que Giotto trouxe à história da pintura.
A Virgem com o Menino, o quadro que inicia a mostra, está conservado no Museu Diocesano da igreja de San Giorgio alla Costa, em Florença. Foi atingido por pequenos pedaços de vidro, que lhe provocaram ligeiros danos, num atentado em 1993. Pretexto para o restauro que permitiu entender a importância da peça na obra de Giotto, que desde a década de 1940 vários investigadores vinham defendendo.
Pintado no final do século XIII (cerca de 1295, provavelmente depois do ciclo de Assis e antes da Capela dos Scrovegni, em Pádua), o quadro traduz uma relação directa com o espectador - quase como um talk show televisivo, diz Angelo Tarturefi. E também uma das principais características da obra de Giotto: a "humanização da divindade".
O autor do ciclo franciscano da basílica de Assis (e de frescos que se podem ver em Pádua, Assis, Florença, Roma e várias outras cidades italianas) rompe com a tradição das figuras mais hieráticas da arte bizantina e, pela primeira vez, dá sentimentos às personagens que representa. Cenas como a Lamentação Sobre o Cristo Morto ou O Beijo de Judas, ambas na Capela dos Scrovegni, em Pádua, mostram a que ponto vai a humanização e a expressividade das figuras e dos rostos de Giotto.
Esta forte humanidade, que traslada para a arte a espiritualidade mendicante e franciscana, pode ver-se ainda na Virgem no Trono com o Menino, Anjos e Santos (nos Uffizi de Florença). O olhar da Senhora, sereno e firme, ao mesmo tempo distante e quente, cria uma relação próxima com cada espectador.
Em A Grande História da Arte, Giulia Marruchi e Riccardo Belcari vão buscar outro exemplo da obra de Giotto - o crucifixo de Santa Maria Novella, em Florença - para mostrar o Cristo atarracado, como se fosse um camponês, ao qual a morte confere um "peso humano". E São Francisco, ícone giottesco por excelência, aparece sempre dentro da realidade e não como um santo aureolado e deslocado do mundo. Exemplos maiores? Os rostos dos frades, entre a surpresa e o encanto, na Aparição no Capítulo de Arles, e o drama nas faces da Morte e Comprovação dos Estigmas, ambos na Igreja de Santa Croce, em Florença.
Esta figuração ganha expressividade com uma outra característica da obra de Giotto: a representação tridimensional do espaço, que nos Scrovegni, mas também em Assis, ganha uma dimensão até aí obscurecida. A arquitectura gótica permite a Giotto (e aos contemporâneos presentes nesta mostra) uma representação espacial que enquadra e define as figuras ou as próprias pinturas.
Na exposição, várias peças evidenciam essa relação entre espaço e personagens: a pintura de Pietro Lorenzetti que representa Ugolotto a vestir o hábito na presença de Santa Humildade ou a doce e serena Senhora da Humildade, de Allegretto Nuzi. Nesta última, o espaço da pintura a óleo e ouro é delimitado pela própria tábua, que lhe serve de suporte, em forma de arco em ogiva.
A relação de Giotto e dos seus pares com as restantes artes configura-se também através da literatura: ele é o primeiro grande pintor italiano, como o seu amigo e conterrâneo Dante é o primeiro grande poeta italiano (se bem que o Cântico das Criaturas, de Francisco de Assis, seja o primeiro texto em italiano moderno). Dante celebra-o no canto XI d'O Purgatório, n'A Divina Comédia: "Acreditou Cimabue na pintura/ ser primeiro, e Giotto o há vencido,/ tanto que a fama se lhe torna obscura" (trad. Vasco Graça Moura, ed. Círculo de Leitores).
O seu biógrafo Giorgio Vasari escreve que foi Dante a sugerir a Giotto os frescos das Histórias do Apocalipse, na igreja de Santa Clara de Nápoles, bem como o ciclo franciscano de Assis; e repara mesmo na analogia entre muitas cenas pintadas na Capela dos Scrovegni e os temas da Divina Comédia.
As mesmas relações e características estão presentes, nesta exposição, nas esculturas, livros iluminados (uma surpresa), alfaias litúrgicas e ourivesaria - e que constituem cerca de um terço da mostra.
Quase no final da exposição, uma das iluminuras é uma folha que terá pertencido a uma peça musical. Representa as três mulheres que chegam ao sepulcro vazio de Jesus: Cristo ressuscitou, diz-lhes o anjo. A arte de Giotto e contemporâneos ressuscita para nós nesta exposição.

Giotto e il Trecento

Complesso del Vittoriano (do lado esquerdo do monumento a Vittorio Emanuelle), Via S. Pietro in Cárcere, Fori Imperiale, RomaSegunda a quinta, 9h30 - 19h30; sexta e sábado, 9h30 - 23h30; domingo, 9h30 - 20h30
Até 29 de Junho

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