Fazer um download é roubar?

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Miguel Madeira (arquivo)

Um filme todas as semanas e uma série de televisão por mês - Tiago, 27 anos, gestor comercial, diz ser esta a média de conteúdos pirateados que descarrega da Internet. Houve uma altura em que fazia mais downloads. "Uns cinco filmes por semana." Agora, já não tem tempo para tanto.

Tiago não tem problemas em ser considerado um "pequeno pirata". Só compra filmes e séries nos casos raros em que o preço é convidativo ou quando os extras do DVD compensam o gasto. Na maior parte das vezes, a escolha cai no manancial de conteúdo gratuito disponível online. A Tiago as questões legais e morais não pesam na consciência: "Sinceramente, estou-me a borrifar para as leis."

Não falta quem defenda que a Internet devia ser um espaço de mais liberdade: nestas eleições europeias, o Partido Pirata, da Suécia, conquistou sete por cento dos votos naquele país e conseguiu um lugar no Parlamento Europeu. A agenda política do partido consiste apenas em tentar alterar as leis relativas aos direitos de autor, promover uma menor vigilância da Internet e abolir o sistema de patentes (a Suécia é também o país de origem dos criadores do Pirate Bay, o mais conhecido site do mundo para partilha de ficheiros online).

Mesmo depois de a Internet ter deixado o nicho académico onde nasceu e de se ter massificado, o mundo online - no qual o anonimato é relativamente fácil e a sensação de impunidade é grande - ainda é muitas vezes visto como um espaço de liberdade radical. Talvez por isso Alexandre (o nome é fictício) não hesite em dizer que está a cometer um crime. "Sei que é ilegal e por isso sei que sou criminoso quando descarrego."

Este estudante de Engenharia, contudo, faz uma ressalva de consciência: "Não descarrego por motivos comerciais. Descarregar algo ilegalmente é como um test-drive. Se o produto for bom, vai sempre haver quem o compre, mesmo já o tendo descarregado ilegalmente. Façam boa música e bons filmes e o pessoal vai sempre comprar."

Nestes caso da pirataria online, em que o objectivo é apenas o consumo pessoal, o problema é a falta de consciencialização individual, diagnostica o professor da Universidade de Coimbra Joaquim Ramos de Carvalho, que se dedica às áreas da computação e humanidades: "Mais do que falta de autoridade ou de repressão, o que caracteriza a Internet é a falha dos mecanismos internos de autocontrolo das pessoas."

O investigador observa que, em muitos outros casos, já foi criado este tipo de mecanismos e, por isso, determinados comportamentos - por exemplo, gastar demasiada água ou não fazer reciclagem - tornaram-se socialmente reprováveis. Mas os downloads não têm este estatuto. Para isso, seria preciso "um misto de educação constante e precoce com sistemas de incentivos e com punições para os casos mais graves". A falha, considera, é que "nada disto existe, ou existe de forma muito incipiente, no que toca a propriedade intelectual na Internet".

Questão de interpretação

Do cinema à música, as indústrias de produção de conteúdos não hesitam em equiparar um download sem consentimento dos autores a um roubo. Nas salas de cinema portuguesas, por exemplo, já foram exibidos pequenos vídeos que comparavam o download ilegal ao furto numa loja. Mas há quem note haver uma diferença grande: quando alguém descarrega uma música ou filme, é feita uma cópia e ninguém fica privado do produto original.

Também a interpretação da lei portuguesa não é consensual. A legislação permite a reprodução de uma obra para fins privados (e um download pode caber neste definição) - mas a autorização só serve quando não seja "atingida a exploração normal da obra", nem seja causado "prejuízo injustificado dos interesses legítimos dos autores". E é aqui que as opiniões divergem. Enquanto de um lado se acena com os números do declínio das vendas de música e filmes registados desde a massificação da banda larga, do outro citam-se estudos académicos que apontam não haver uma ligação directa entre o download e as vendas. Um exemplo frequente é o do autor brasileiro Paulo Coelho, cujas vendas de livros subiram depois de o próprio ter colocado (sem o conhecimento da editora) parte da sua obra na Internet.

Miguel Carreta, director da Audiogest (associação que gere direitos de autor de artistas musicais), é dos que não têm dúvidas em considerar o download sem autorização como um "acto ilícito", dado que "afecta a utilização normal da obra e causa um prejuízo ao autor". Em Portugal, por exemplo, a indústria fonográfica viu a facturação cair para menos de metade nos últimos oito anos.

Carreta sublinha, no entanto, que há uma grande diferença entre fazer um download e colocar um ficheiro à disposição na Internet, tal como há diferenças entre descarregar para uso pessoal ou para obter ganho financeiro.

Foi a pensar nestes diferentes graus de pirataria online que o Parlamento francês aprovou recentemente uma lei que permite cortar, sem recurso aos tribunais, o acesso à Internet a quem seja suspeito de estar a fazer downloads ilegais. A medida foi desde o início fortemente criticada e acabou por ser ontem chumbada pelo Tribunal Constitucional francês.

Em Portugal, os representantes de artistas já se mostraram a favor de uma solução semelhante à francesa. Mas o ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, disse que o modelo não serviria a Portugal e criou um grupo de trabalho para tentar encontrar uma solução para a pirataria.

Há ainda quem argumente que descarregar ficheiros é uma opção que deve ser deixada à consciência de cada um. É o caso de Miguel Caetano, mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação e autor do blogue Remixtures, especializado no mundo da música na era digital. "[A Internet] dá a cada pessoa a liberdade de fazer conscientemente as suas próprias escolhas sem ser constrangido. Não me cabe a mim, nem a ninguém, julgar o que os outros fazem com a sua ligação, desde que não cometam crimes que possam lesar manifestamente outrem", argumenta.

Falta de alternativas

O professor da Universidade de Coimbra Joaquim Ramos de Carvalho discorda desta linha de argumentação: "Existe uma tendência que procura teorizar, ou legitimar ideologicamente, o desrespeito da propriedade intelectual com argumentos falaciosos: 'quem pirateia não compra', 'os autores de qualquer modo não recebem quase nada', 'o CD é meu, faço com ele o que quiser'."

Também Miguel Carreta observa que se tenta legitimar o uso de redes peer-to-peer (onde cada um, por norma, descarrega ficheiros ao mesmo tempo que torna os seus próprios ficheiros acessíveis a outros) remetendo esta prática para o conceito de partilha de conteúdos: "Socialmente, a partilha é um acto moralmente nobre. Mas, nestes casos [e contrariamente a bens físicos], quem partilha não perde nada do que tem. Não há nobreza nenhuma no acto."

João trabalha numa empresa de software (um dos sectores muito afectados pela pirataria). Não quer revelar o nome verdadeiro quando fala das séries televisivas que descarrega ilegalmente - e são várias, todas as semanas. João tem aquilo que admite ser uma desculpa para piratear: "As editoras e distribuidoras ainda não se conseguiram adaptar aos novos meios. É difícil ver as séries nos horários das televisões. Assim, tenho a vantagem de ver quando quero, onde quero."

Joaquim Ramos de Carvalho concorda que há um atraso por parte de quem produz os conteúdos: "Os detentores de direitos têm sido incapazes de fornecer aos consumidores alternativas convenientes e razoáveis para aceder legitimamente aos conteúdos, sobretudo no que toca a cinema e séries de televisão, onde o melhor serviço digital que hoje se consegue é de facto por via da pirataria."

João até admite que seria capaz de comprar as séries que actualmente pirateia: "Se os DVD fossem mais baratos, ou houvesse download legal, seguiria essa via sem dúvida. Até porque me recuso a sacar e ver coisas sem qualidade." Já Tiago, que se está "a borrifar para as leis", não vê outra alternativa que não a pirataria. E mesmo que Portugal siga o caminho da França e tente uma solução para controlar os downloads ilegais, a solução de Tiago é simples: "Arranjava uma forma de contornar o sistema e, logo que arranjasse essa forma, continuava a sacar."

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