"A esquerda falhou completamente nos países islâmicos do Mediterrâneo"

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Camilo Azevedo

O Sul do Mediterrâneo andou devagar milhares de anos. De repente, levou com colonialismo, ditaduras, globalização - e refugiou-se nas mesquitas. A esquerda tem culpa, reconhece Miguel Portas. "Périplo", com texto de Portas e fotografias de Camilo Azevedo, é uma viagem no tempo e no espaço

Das montanhas do Iémen aos desertos da Líbia, dos cemitérios do Cairo aos rios da Mesopotâmia, dos "souks" de Alepo aos palácios de Petra, o livro "Périplo" vai até onde acaba a oliveira na margem sul do Mediterrâneo.

A série documental que Miguel Portas fez em 2003-4 com o realizador Camilo Azevedo tinha as duas margens do Mediterrâneo e vem em DVD no fim do livro. Mas o que agora está em 350 páginas de texto e fotografias é outra coisa, antes e além das filmagens. Algo entre o ensaio histórico e a viagem, um périplo no tempo e nestes espaços sem paralelo em Portugal. O Norte ficará para um futuro volume.

Camilo Azevedo fez a maior parte das fotografias em viagens de pesquisa, antes de filmar. Miguel Portas escreveu o texto depois da série, muitas vezes recorrendo a viagens posteriores. Há lugares que estão no livro e não estão na série, como Jerusalém. Texto e fotografia são dois discursos paralelos, que frequentemente confluem.

Neste mundo maioritariamente islâmico, mas também judeu e cristão, o ateu Miguel Portas demora-se nas religiões, e defende ao longo do livro a necessidade de dialogar com elas. Não o fazer é ignorar a maioria, e isso foi o que a esquerda fez, erradamente, quando pactuou com as ditaduras nacionalistas árabes. E os pobres voltaram-se para o islamismo político.

Miguel Portas diz que gostava de ter lançado "Périplo" semanas antes da campanha oficial para as europeias, mas o livro ficou pronto apenas dias antes. As duas primeiras apresentações, em Lisboa e Mértola, acabaram por aparecer no portal do Bloco de Esquerda, confundindo-se com a campanha. "Mas ainda não era campanha oficial", justifica Portas. "O lançamento em Coimbra, já em plena campanha, não o anunciei." De resto, diz, "é uma questão de pura formalidade", porque a pré-campanha já vem de Outubro. "As pessoas têm várias dimensões e nunca dissociei as partidárias e as não-partidárias, desde que cumpra a lei."

Dizes que "Périplo" não é um livro de história, não é um ensaio, não é uma reportagem, mas um pouco de tudo isto. Porque é que aparece tão pouca gente a falar?

Foi uma opção. O documentário é que suscitou o livro, e no documentário tivemos condições de filmagem sob vigilância, porque em nenhum daqueles países se filma sem polícia.

Mesmo quando iam às ruínas perdidas da Líbia? Ou sobretudo na Líbia?

Sobretudo na Líbia. E no Egipto os mecanismos de defesa eram muito grandes. Depois havia um outro problema. Ou se fala árabe ou a comunicação é difícil com as pessoas comuns. E portanto tinha que existir a mediação de um intérprete, o que não permitia confirmar a veracidade das respostas porque era agente de polícia.

Os intérpretes eram-vos atribuídos?

Eram. Mas mesmo quando a mediação é através de uma agência, eles têm que fazer um relatório de informação. É assim na generalidade daqueles países.

Nunca encontrei essa realidade. Tem a ver com a câmara?

Tem. Com um pedido de filmagens. Indo a lugares históricos, num registo cultural, estas eram as condições. Depois, eu podia ter feito intervir bastante mais gente [a falar], mas isso tornaria o livro dependente das minhas visitas políticas, nomeadamente à Palestina, Líbano e Egipto, e eu não quis que o livro fosse de actualidade. Pareceu-me mais interessante perceber porque tenho sobre a conjuntura política daqueles países as opiniões que tenho, e para isso era pouco relevante a reportagem de circunstância.

Interessava-me a grande paisagem civizacional, as tendências longas da História, que podem determinar comportamentos ou ajudar a desmistificar conflitos. Mais do que fazer um relato das minhas viagens na Palestina, pareceu-me importante, por exemplo, trabalhar sobre as origens do povo judeu ou do judaísmo.

É dos capítulos mais marcados pela História.

Aí, tinha duas opções. Ou fazia reportagem nos dois lados, mas não tenho conhecimento para tirar um ponto de vista suficientemente original face a tanta coisa escrita e editada, ou fazia um mergulho em certas histórias da História para proporcionar a um público português - e este livro está escrito para portugueses - análises pouco conhecidas cá.

Mas há momentos em que aparecem resquícios dos cadernos de viagem, com diálogos. Aproveitar mais isso podia distrair a estratégia do livro?

Tive medo de o contaminar de reportagem. A minha preocupação foi que tanto fosse acessível ao meu filho mais velho, que gosta de História, como a um professor, a um jornalista, como retaguarda na qual a actualidade se inscreve. Não achei que fosse capaz de fazer sobre a actualidade melhor do que tem sido feito.

Os capítulos também variam. Há uns que têm mais História, outros mais viagem, com algumas peripécias. Como quando estava na Estrada dos Sudaneses, na Líbia, e me deparo com um concerto de relâmpagos. Foi aí que tive a minha luz, que descobri o princípio da racionalidade na religião. Isso tem mais a ver com a literatura de viagens introspectiva.

Tal como a parte em que falas do deserto.

Há elementos intimistas, como há outros que são quase de guia.

Isto começou por ser um livro de fotografias legendadas, com base no acervo do Camilo, à roda de 10 mil fotos. Depois, os primeiros ensaios que fiz não me satisfizeram. Tentei textos curtos sobre grupos de fotografias, mas ninguém compra um livro para ver nele a mesma coisa do documentário. Comecei a construir capítulos.

O primeiro, dos mesopotâmicos, era demasiado curto comparado com os outros. Decidi, a partir dos mesopotâmicos e dos rios [Tigres e Eufrates], resumir o livro do ponto de vista da grande viagem histórica. Portanto, esse capítulo é uma espécie de apresentação.

O seguinte, do Egipto, é muito mais viajante. Mas amarrei-me a um escrito pouco conhecido do Eça de Queirós ["O Egipto"]. Por que é que o Eça jovem via o Egipto daquela maneira? Quase sigo a reportagem dele.

Há um outro capítulo com base num livro, o do Cairo, mas o propósito é revelar uma novidade. Porque se vemos a grande história do Mediterrâneo em [Fernand] Braudel, podemos ver outra grande história em [Schlomo Dov] Goitein [erudito judeu que estudou milhares de documentos de mercadores judeus dos séculos IX-XIII, uma micro-história do quotidiano]. Entre Braudel e Goitein estão as grandes coordenadas do entendimento do Mediterrâneo. A vantagem do Goitein é que era desconhecido em Portugal.

E orientei esse capítulo para as mulheres, porque o capítulo seguinte seria sobre as mulheres. Portanto, cada capítulo foi tendo a sua própria história.

Do Iémen à Líbia, quais são os teus lugares de eleição?

O vale de Hadramaut, a grande paisagem do oásis em forma de rio e da arquitectura de terra...

No Iémen.

... Aliás, se tivesse que escolher um país seria o Iémen. Não é só o vale de Hadramaut. São aquelas montanhas do Centro e do Norte, todas em socalco, com quatro, cinco vezes a dimensão do Douro.

É o único país onde vi que a história fazia efectivamente parte do presente, como força propulsora. Constrói-se como sempre se construiu. No mundo árabe, é a única arquitectura espampanante para fora. Normalmente, a arquitectura do mundo árabe é cega para fora, porque o espaço público é o da família no pátio. No Iémen, não. E é assim no Sul [com vários andares em terra] e em Sana [a norte], com construção de pedra, cada andar construído geração a geração.

Pelo choque negativo, um outro lugar foi o Vale do Jordão [que atravessa Israel e a Cisjordânia, ao longo da fronteira com a Jordânia]. Creio que quando Moisés chegou ao cimo do Monte Nebo com 120 anos e Deus lhe disse "Aqui tens a Terra Prometida", o tipo disse: "Se esta é a Terra Prometida, por aqui me fico" - e pimba, morreu no Monte Nebo. É brutal, a secura. É uma terra abaixo do nível do mar, um ar abafado, um rio Jordão que se salta de um pulinho, pouco mais que um riacho, um mar que é Morto, tudo terrível.

Belíssimo mas estéril.

De cima, parece estéril. Está longe da ideia de paraíso.

Depois, se tivesse que escolher uma cidade, há três, Lisboa, Nápoles e Istambul, que têm tanto em comum...

Mas aí já estás no Norte.

... Não, se tivesse que escolher uma cidade escolhia Alepo [Síria]. É muito bonita, de uma pedra amarelada, tem muito boa construção, muito varandim de madeira, e a pedra e a madeira combinam bem. E tem um "souk" denso, fantástico, talvez o mais denso que conheci. É muito mais bonito e interessante que Damasco.

Pensei que ias escolher Beirute.

Tenho muita ambivalência em relação a Beirute. É, de longe, onde se respira mais liberdade.

E rapidez de reconstituição.

Destruição e reconstituição são absolutamente vertiginosas. É uma cidade agradável para se estar, mas não diria que é bonita. Tem um enorme excesso de construção e é dura.

No livro em que visita algum deste Sul, "Mediterrâneo, Ambiente e Tradição", Orlando Ribeiro defende que o Mediterrâneo é um todo, uma unidade para além das diferenças religiosas, com um carácter de permanência que o progresso ofusca sem destruir. Disse-o em fins de 50, começos de 60. Ainda é possível dizer isto?

Que há uma unidade, creio que há - a do tempo, mais que a dos lugares. Ou seja, não é a unidade da paisagem, é a da persistência do tempo. A ideia de que a vida mudou, mas muito pouco ao longo de muitos séculos. A ideia de que as mudanças passaram pelas comunidades, mas que elas as absorveram para mudar o menos possível. Como o Mediterrâneo tem um excesso de História, aprendeu a lidar com ela dessa forma. Isso mantém-se.

O que acho é que a aceleração dos últimos 150 anos, em particular dos últimos 50, é de tal modo poderosa que curto-circuita todos os adquiridos anteriores. Mas não rebentou com eles. Há uma tentativa desesperada de resistir à instantaneidade como forma de vida. Acho que é isso que explica os fundamentalismos, essa dificuldade de entender a fusão dos tempos. É a resistência do clã que se adapta ao sistema político moderno, transformando as lideranças de clãs em lideranças modernas dos partidos. É o modo como a penetração da cultura americana é espantosamente compatível com o arcaísmo da vida na família alargada. Poucos países conseguem concentrar tão bem essas contradições como o Líbano. É uma espécie de grande concentrado do Império Otomano, da globalização e da resistência à globalização, ao mesmo tempo.

As religiões são chapéus de chuva, atrás dos quais se abrigam as velhas realidades clânicas.

A imigração, que transformou o Mediterrâneo num espaço de morte, com centenas a tentarem atravessá-lo, é uma mudança decisiva no equilíbrio de que falava Orlando Ribeiro?

O livro acaba justamente com a imigração. Adopto a ideia de que neste mar sempre se perseguiram os paraísos na terra, e que a viagem é uma busca do paraíso terreal. Para concluir com a ideia - do Cláudio Torres [co-autor do documentário] - de que o paraíso terreal mora dentro de cada um, tem a ver com a força que leva as pessoas a partirem. Sempre se partiu ou porque se tinha que fugir ou porque não se tinha como ficar. Raramente partir é uma escolha. É uma escolha só para quem pode.

Género Bruce Chatwin.

Exacto. O Chatwin sustenta que o viajante é um nómada e eu discuto isso.

No caso do Chatwin, é um luxo.

Para mim, é um luxo. É uma dádiva que tenho, uma possibilidade.

Como o rei Faisal diz a Lawrence da Arábia: só os ocidentais escolhem o deserto.

Exactamente. O que se passa no Mediterrâneo tem que ver com uma tendência humana muito antiga, mas com decisões de policiamento muito modernas. A decisão de fechar o Mediterrâneo é da Europa. E aquilo que é horroroso nas políticas de imigração - a expulsão e o repatriamento - deixa de ser função de um estado para passar a ser função de Bruxelas. A Europa está nesta posição extraordinária de ter uma política de expulsão sem ter uma política de entrada nem de integração. Mais, consome 50 por cento do orçamento em expulsões e repatriamentos.

Isto é absurdo por razões humanas e porque dá alimento a posições sobre a imigração como as mais recentes do parlamento italiano, que criminalizam quem ajude um emigrante sem papéis, ou seja, criminalizam a humanidade. São pura e simplesmente protofascistas, não têm outro paralelo que não nos anos 30 na Alemanha. E Bruxelas foi incapaz de contestar aquele tipo de legislação porque se inclui no quadro legal da directiva de retorno.

Uma das perguntas para a qual não tens resposta definitiva: por que é que se enchem as mesquitas a sul e se esvaziam as igrejas a norte?

Ensaio uma resposta, acho que é pelo menos parte da resposta. A dificuldade de fazer em 50 anos o caminho que as sociedades do Norte puderam fazer em 150 ou 200, ou seja, a aceleração dos tempos no presente. Onde tive a melhor ideia disto foi em Sana, no Iémen. O camelo ainda é meio de transporte e o último todo-o-terreno também. A sociedade é a do petróleo e ao mesmo tempo tão arcaica, conservadora e fechada como os sauditas das areias. Foi aí que tive a noção de como é difícil a comunidades tribais lidarem com a avalancha de modernidade e ao mesmo tempo com o facto de os modernistas que os dirigiram serem ditadores.

Ficaram sem saída. A certa altura, a mesquita transformou-se num reduto de identidade e de liberdade. Esta avalancha do moderno é de tal modo violenta sobre uma sociedade habituada a andar devagar que fica difícil lidar com a vertigem.

Eu não procuraria convencer o meu avô, se ele fosse vivo, de coisas que pudesse pensar. Estou convencido de que aquilo que lhe pudesse dizer não era aquilo que ele ouviria. Se isto é assim entre gerações num país ocidentalizado, como não há-de ser nas terras em que a intromissão do Ocidente é tardia, e onde as boas ideias chegam com o colonialismo? Digamos que o europeu leva duas malas. A mala dos direitos individuais e da revolução e a mala do colonialismo e imperialismo económico.

Para voltar aos ditadores. Uma explicação para o reforço das mesquitas - depois aproveitado pelo islamismo político - é a falência pós-colonialista....

Do nacionalismo árabe, claramente.

... dos serviços públicos e de todas as redes que é suposto o Estado construir. Esta é a história do crescimento do Hamas, da Irmandade Muçulmana: redes sociais ligadas às mesquitas que fazem aquilo que o Estado não faz.

No fundo, é o princípio das antigas fundações em que se alicerçou a sociedade otomana, e até a sociedade árabe inicial. A ideia da fundação ligada à dízima. O império nunca foi centralizado, os estados são um produto recente. Os sistemas de dominação naquele mundo foram sempre muito fractais, em mosaico, intercomunitários. E este princípio de autogoverno foi seguido mesmo pelo mais perene dos impérios, o romano. Só é brutal se há dissensões no topo, ou uma sedição que corre o risco de contaminar o vizinho. Fora disso, procura conviver com os poderes locais, É essa a história do Mediterrâneo. Os poderes locais sempre foram fortíssimos.

Grande náufraga do falhanço nacionalista é a esquerda laica. No Egipto, na Palestina - o que é que aconteceu?

A esquerda é vítima quer da força da religião como resistência identitária quer das ditaduras. Às vezes, a diferença entre estar no Governo ou na prisão é a diferença de uma atitude ou do modo como acordou naquele dia o líder nacionalista. Não há meio termo. Com excepção do Líbano e da Palestina.

No Líbano, o [historiador de esquerda] Samir Kassir acabou morto em 2005.

Aí as tradições são outras, é muito mais complicado. Há um bom exemplo, o caso da Síria. Tem dois ou três partidos comunistas. Dois estão no Governo, o outro está na prisão. Mas podia ter sido ao contrário.

A esquerda foi cúmplice da modernidade dos regimes nacionalistas, mas essa modernidade foi imposta à bruta. Nunca se procurou trabalhar com o tempo. Todos aqueles líderes, de Ataturk [Turquia] ao xá da Pérsia ao Nasser [Egipto], tinham os olhos postos no Ocidente e nas ideias ocidentais que transformavam a religião num produto do passado e da ignorância. Tentaram afrontar a religião ou nacionalizá-la.

"Périplo" é o livro de um não-crente. Mas compreendes quem procura negociar dentro dos limites da tradição religiosa, em vez de quebrar.

Isso tem a ver com o modo como olho para as pessoas hoje, que não é como olhava. E o modo como hoje respeito os tempos longos da história. Isto parece estranho vindo da esquerda radical, mas tem a ver com uma conclusão política a que cheguei também em Portugal. Uma pessoa de esquerda nunca deve deixar de lutar por transformações, mas deve resistir à tentação de as impor à bruta. E a esquerda do século XX nunca soube resistir à pior das tentações do poder, que é o poder. Ou seja, a ideia de que, em nome da razão, a pode impor de qualquer forma.

Para mim, os fins não justificam os meios. E como entendo que a política deve ser feita com a maioria, deve ser a possibilidade de a maioria se apropriar da política, isto é incompatível com impor valores à bruta. A batalha pela hegemonia ao nível dos valores implica trabalhar com o factor tempo.

Se tivesses que apontar os falhanços da esquerda no Sul do Mediterrâneo, quais seriam?

Em nome da modernidade, a aceitação da ditadura. O que deixou o campo aberto às redes sociais do islamismo político. Digamos que os pobres passaram a reconhecer-se no islamismo político.

E não na esquerda. Um tremendo falhanço.

Brutal. Há um outro dado, que se percebe bem na Palestina. Arafat é o líder nacionalista que tem que fazer compromissos com todos os chefes que vieram com ele de Tunes, mas ainda é o pai de uma nação sem estado. Por baixo dele, e com a cobertura dele, todos os sistemas de poder na sociedade se reconstituíram em ligação íntima com os israelitas, porque já não é possível fazer comércio na Palestina sem ser com empresas israelitas. Então, são as próprias circunstâncias de um território ocupado, com segmentos de autogoverno, digamos, que colocam as novas lideranças palestinianas, que vieram do exílio, na estrita dependência do inimigo. Ao fim de alguns anos, isto não só corrompe completamente como acaba por deixar a maioria do povo entregue às correntes menos comprometidas com os laços económicos com Israel.

Seres ateu e de esquerda é uma liberdade ou uma incapacidade neste mundo? Reconhecendo que a esquerda não soube dialogar com a religião, parece-te inevitável que esse diálogo aconteça, e que tudo terá que ser discutido dentro dos limites dessa religião?

Não só penso que o diálogo é indispensável, como o diálogo com o islamismo político é absolutamente indispensável. A ideia de que não se pode ou deve dialogar com o islamismo político é um enorme erro. É o equivalente a dizer que não se deve dialogar com aqueles povos. Porque, se houvesse eleições realmente democráticas, os que mandam não se aguentavam nem seis meses.

O islamismo político ganharia.

Ganharia. Depois havia de perder, mas abria-se o jogo. O partido que actualmente governa a Turquia não é outra coisa que não uma variante da Irmandade Muçulmana.

Então, neste universo muito mais próximo do islamismo político do que há décadas - e já vimos como a esquerda também foi responsável por isso -, o que é que a esquerda tem a fazer?

A esquerda árabe é tributária da formação marxista europeia e teve sempre dificuldade em compreender o fenómeno religioso. O que faço no livro é um exercício que hoje muita gente na esquerda faz: tentar compreender o fenómeno religioso depois de a fractura entre religião e ciência ter deixado de ser o que era. Hoje a ciência não tem que se opor à fé para resolver problemas de ordem filosófica que decorrem estritamente da crença. Não há resposta científica para algo que decorre da fé. O facto de eu não ter religião, e de pensar que a religião é um produto dos homens, permite-me ter a distância que de algum modo um jornalista pode ter. Não parto para a análise da religião com um "parti pris" de ateu. Parto para a análise da religião como fenómeno humano, que é o que me interessa.

As religiões são profundamente desconhecedoras das suas vizinhas. Os sunitas desconhecem tanto os xiitas quanto os católicos desconhecem os protestantes. Em Alepo, em 2007, num encontro ecuménico, defendi isto: pelo menos podemos concordar que o homem inventa Deus à sua semelhança. E no fim eles declararam-me crente: você acredita no homem. E eu disse que sim. Tive que dizer. Mas, de facto, hoje não tenho uma crença particular no homem. Transitei do cristianismo para o marxismo bastando-me acreditar no homem. Substituí uma crença por outra. E hoje estou convencido de que o homem é capaz do pior e do melhor, e que não há nenhum destino escrito. Não há uma bondade inata que, no fim, triunfe sobre o mal. É possível, aliás, que o mal triunfe. Tenho a certeza absoluta que se quiser algum bem tenho que lutar muito, e que vale a pena fazê-lo. Mas hoje a minha relação com a crença na humanidade resume-se a quase uma atitude egoísta: poder chegar ao fim da vida e achar que, apesar de tudo, fui útil, não sacaneei o próximo, não fiz coisas de que me tenha mesmo que arrepender. Que a minha vida teve algum sentido - e só entendo a minha vida com outros.

Se fosses um homem de esquerda no Egipto, o que farias?

No Egipto, não sei bem. Não há nenhum partido em que me pudesse reconhecer. Seria provavelmente um activista social ou cultural, um jornalista procurando ser sério, um escritor procurando ganhar espaço de liberdade. A minha política seria a minha forma de ser útil nesse mundo.

Ou seja, não é possível fazer política de esquerda no Sul do Mediterrâneo?

É possível. No Egipto, é que não há, neste momento, forças visíveis. No Líbano, é um pouco diferente. Ou na Palestina, onde eu estaria com a esquerda da Terceira Via, nem Hamas nem Fatah, que não se conseguem entender entre si. Apesar de tudo, na Palestina há uma possibilidade de a esquerda laica se afirmar se não estiver dividida.

Não me esqueço de um momento em Gaza, num encontro com vários deputados, em que eu e a [eurodeputada] Luisa Morgantini estamos a discutir com eles: "Porque é que continuam a atirar 'rockets'? Isso não presta para nada, não tem nenhum efeito militar, só une a sociedade israelita contra vocês. Que falta de sentido nisso!". E um homem da FDLP [partido de esquerda] levanta-se e diz: "São capazes de ter razão, mas digam-me lá o que faz um gato numa jaula? Pelo menos tem que mostrar as garras. Isto são as nossas garras. A gente sabe que não serve para nada, mas temos que mostrar qualquer coisa".

Estamos vivos.

Estamos vivos. Eu consigo compreender isto. A questão deles não é a eficácia. A eficácia deles é demonstrarem que estão vivos.

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