Prevenção dos incêndios pode hipotecar biodiversidade das florestas
A prevenção dos incêndios pode pôr em perigo a biodiversidade das florestas. Parece ser uma antítese, mas um artigo publicado recentemente por um biólogo e especialista em insectos português dá o alerta para a pouca consideração que as espécies vivas e em particular os insectos têm na legislação portuguesa criada para minimizar o risco dos fogos.
No início do mês, um especialista norte-americano que esteve em Portugal para avaliar como o país se preparou para nova época de incêndios avisou que este Verão podia ser um pesadelo para os bombeiros e todas as populações que vivem nas imediações da floresta. Há matagal nas florestas portuguesas suficiente para uma repetição das catástrofes que ocorreram em 2003 e 2005, depois de um Inverno e uma Primavera especialmente secos.
José Alberto Quartau, entomólogo da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, é o primeiro a recordar-se do problema dos incêndios que é típico do clima do Sul da Europa, mas não deixa de criticar o Decreto-Lei n.º 124/2006, onde são estabelecidas as regras para a limpeza das florestas. "A lei parece-me bem feita, mas apenas se preocupou com a prevenção dos incêndios, um problema gravíssimo no Mediterrâneo", explica o entomólogo, mas há falhas, falta "estabelecer normas da conservação da biodiversidade".
O que o investigador teme é o impacte que uma limpeza excessiva e desregrada do subcoberto vegetal - toda a vegetação mais rasteira que cresce por baixo das árvores que é o principal habitat dos insectos - poderá ter na sobrevivência das espécies de insectos. A preocupação deu origem a um artigo de opinião que o investigador enviou para a revista científica Journal of Insect Conservation no final de 2007 e que foi publicada primeiro numa versão on-line em Julho do ano seguinte e que agora saiu na revista impressa.
A lei define duas escalas para as áreas de gestão. Os cobertos florestais com mais de 500 hectares - um quadrado com mais de 2236 metros de lado - terão que ser separados por faixas de terreno com a largura de 125 metros onde todo o coberto vegetal terá que ser removido. Áreas que não sejam maiores do que 50 hectares - um quadrado com 707 metros de lado - terão que ser separadas por faixas com um tamanho entre dez e 50 metros, nos casos de maior risco de incêndios poderá ir até aos cem metros.
O tamanho das faixas de separação será de acordo com o que existe nas extremidades do coberto vegetal: ruas, caminhos-de-ferro, edifícios, aldeias. Apesar destas limitações, Quartau tem medo da aplicação da lei. "Na prática, quem limpa, rapa tudo. Contrata uma empresa que não tem directivas ecológicas e limpa o mato todo", alerta. E é na continuidade deste processo, que pode ser ainda mais violento quando o material resultante está destinado à ser utilizado como biocombustível - o que está previsto na mesma lei -, que critica a falta de visão de quem fez a lei.
"A floresta só com árvores é uma abstracção", explica o investigador e antigo professor. A floresta é um ecossistema e "se esse ecossistema é formado pelas árvores e por todos os intervenientes que estão em relações muito estreitas de co-evolução isso quer dizer que de algum modo, durante milhões de anos, esse conjunto é fundamental".
O subcoberto tem importância para manter o equilíbrio da floresta. É aqui que entram uma série de processos de decomposição, produção de húmus, onde os insectos têm uma importância grande. A intensidade com que se limpa o subcoberto pode eliminar populações e espécies de insectos, muitas delas endémicas.
Ao diminuir esta diversidade, as espécies sobreviventes, agora sem os seus inimigos naturais, tornam-
-se pragas e um ecossistema que antes funcionava bem, era produtivo, torna-se vulnerável. José Alberto Quartau atira com o exemplo clássico da cigarra que destruía as vinhas da Califórnia: "Quando se deixava estar vinhas não tão puras e com silvados encostados, as cigarras não eram praga." Os silvados eram o habitat de "vespinhas minúsculas" que passavam lá o Inverno. Quando as cigarras irrompiam na Primavera e atacavam as folhas das vinhas, eram imediatamente controladas pela espécie de vespa.
Uma lei do século XXINo artigo de opinião, Quartau descreve alguma da biodiversidade de insectos que se conhece e muita que falta conhecer em Portugal e aponta direcções para a conservação das espécies, como a forma e o tamanho dos cobertos vegetais ou as dimensões que separam uma mata de outra. Mas, para o investigador, é urgente pôr todas as áreas da biologia a discutir a prevenção.
"O que nós precisamos é de uma lei que faça a prevenção dos incêndios sem danos à biodiversidade. Em termos absolutos, isso é impossível", por isso Quartau defende que se deve reunir pessoas com conhecimento sobre incêndios e sobre biodiversidade.
"Uma lei do século XXI deve aproveitar tudo o que sabemos e nunca descurar a parte ecológica."