O desastre de Luanda

A força de "Barroco Tropical" é uma Luanda com oito milhões a correr para o desastre. Agualusa põe-se em 2020 para olhar para agora, sem medo

Bartolomeu Falcato, o protagonista deste livro, tem "um imenso talento para a felicidade." É uma das coincidências biográficas com José Eduardo Agualusa, o autor.

Ambos são romancistas de sucesso. Ambos passaram um ano em Berlim com uma bolsa de criação. Ambos disseram que Agostinho Neto era "um poeta medíocre" e por essa e por outras há gente com vontade de lhes "dar uns tabefes". Ambos inspiram o desejo salvífico de beldades pelos aeroportos do mundo (o que acontece a Bartolomeu no livro aconteceu a Agualusa). Se Bartolomeu diz que tem "um imenso talento para a felicidade", Agualusa disse (em 2007, ao "Jornal de Notícias"): "Sou uma das pessoas mais felizes que já tive oportunidade de conhecer."

Isto é ironia e é verdade. Uma não tira a outra, só a torna inteligente. Agualusa diverte-se e diverte-nos com o facto de ter talento para a felicidade. E não haverá, na língua portuguesa contemporânea, outro caso tão flagrante e abrangente. Esse talento está nos seus livros, escritos para raptar o leitor à primeira vista, como acontece uma vez mais em "Barroco Tropical".

Não porque o leitor seja levado ao paraíso, embora também aconteça - numa crónica de Agualusa que Amélia Muge musicou vamos ao paraíso com Borges e o paraíso são bananeiras porque Deus confundiu Borges com García Marquéz.

O que interessa a Agualusa é o delírio humano, aquele ponto a que ele chama absurdo ou abismo, para o qual basta abrir uma porta. Está em toda a gente, e portanto as cidades inchadas de gente são concentrações de absurdo, mais ainda se saíram da guerra com "boom" de petróleo e poder único.

Em "Barroco Tropical", o ponto é Luanda, 2020, esgotado o petróleo, e essa Luanda pode observar-se a partir da Termiteira, um arranha-céus que ia ser a soberba de África e foi apanhado pela crise. É lá que Bernardo Falcato vive, num 47º andar: "Hoje, ricos e pobres partilham o mesmo espaço, como acontece lá fora, nas ruas da cidade, com a diferença de que aqui vivemos literalmente por cima uns dos outros - quanto mais ricos mais acima.

Muitos dos elevadores não funcionam. Os que funcionam têm guardas armados à porta e servem apenas a alta burguesia. As galerias subterrâneas, onde deveriam ser instaladas garagens e oficinas, ginásios e supermercados, foram ocupadas por toda a sorte de marginais e deserdados: junkies, catorzinhas, pequenos ladrões sem futuro, mutilados de guerra, meninos-feiticeiros. Vivem ali, como ratazanas, em plena escuridão."

As catorzinhas são as meninas prostitutas que começam a snifar coca ao primeiro cliente. Nesta Luanda há coca, orgias, lutas de cães, torturas com maçaricos a gás, gente a crescer no meio do lixo, uma menina-cão queimada por feitiçaria, um traficante de armas convertido em embaixador, grande proprietário e "conselheiro e amigo íntimo da Presidente da República", a ponto de haver "quem diga que a senhora Presidente não move um dedo sem antes [o] consultar".

Há, pois, uma Presidente em vez de um Presidente em 2020, mas de agora até lá não vai grande distância. Não é como se Agualusa estivesse a fazer uma ficção científica ou uma distopia à "1984" de Orwell. Estes 11 anos parecem ser só um passo à frente para poder olhar para trás - a distância que permite ver Luanda agora.

O petróleo acabou mas há diamantes e extremo desequilíbrio, como em 2009: "O Povo, ou Eles, é como em Angola nós, os ricos, ou os quase ricos, designamos os que nada têm. Os que nada têm são a esmagadora maioria deste país."

O hospício com "homens musculosos, completamente nus, a cabeça rapada, pintada de branco, presos pelos tornozelos com grossas cadeias de ferro a motores ferrugentos e outras pesadas peças mecânicas" já existe em 2009. No livro chama-se Centro de Saúde Mental Tata Ambroise, na realidade chama-se Centro de Medicina Tradicional Avô Kitoko (ver fotografia na página...).

O que o livro faz é projectar a realidade, pondo no hospício também os contestários políticos, porque "o facto de alguém denunciar, com excessiva veemência, as políticas governamentais, ou a inexistência de políticas governamentais" já "indicia, na opinião dos nossos dirigentes, certa instabilidade mental".Directamente transportado da realidade, quase "ipsis verbis", é o caso Agostinho Neto. Quando disse que Neto era "um poeta medíocre", Agualusa foi considerado "leproso moral". O livro apenas acrescenta a este outros insultos, género "vil flatulência retardada do colonial-fascismo".As diferenças entre 2009 e 2020 serão de grau, como diz Agualusa.

2020: "Luanda corre a toda a velocidade em direcção ao Grande Desastre. Oito milhões de pessoas aos uivos, aos choros e às gargalhadas. Uma festa. Uma tragédia. Tudo o que pode acontecer acontece aqui. O que não pode acontecer, acontece igualmente. (...) Produzimos metade dos diamantes vendidos no mundo. Temos ouro, cobre, minerais raros, florestas por explorar e água que não acaba mais. Morremos de fome, de malária, de cólera, de diarreia, de doença do sono, de vírus vindos do futuro, uns, e outros de um passado sem nome."

Em 2009 ainda não são oito milhões. No mais, tudo é reconhecível. E esta Luanda é a grande força activa, sem medo, de "Barroco Tropical", num estilo raramente barroco, que nos melhores momentos é exacto e lírico: "Chovera nesse dia. O capim, de tão verde, parecia cantar."

O excesso barroco está nas personagens. Em entrevistas, Agualusa tem explicado que finalmente deu rédea solta ao cortejo que o assalta quando escreve. E de facto: Bartolomeu Falcato, Núbia de Matos, Mouche Shaba, Malaquias da Palma Chambão, Bárbara Dulce, Clara Bruna, Benigno dos Anjos Negreiros, Mãe Mocinha, Sigmundo Índio do Brasil, Sangue Frio, Humberto Chiteculo, Esaú e Jacó, Lulu Banzo Pombeiro, Frutuoso Leitão, Ramiro e Myao, Halípio Honrado, Tata Ambroise, Pascal Adibe, Azucena Palacios, Maurice Kabasele, Genuíno Valente, Uriel Acosta da Fonseca, Luca Ferrarini, Salomé Monteiro Astrobello celebrizada como Kianda, Rato Mickey anteriormente conhecido como Mestre António Taborda (nome de uma rua em Lisboa onde Agualusa passa muito), e já agora, qual Hitchcock, ele próprio, Agualusa.

O autor de "Barroco Tropical" é um grande caçador-recolector, a começar pelos nomes, mas esta pulverização - a que se junta o gozo de jogar com criadores, amigos e conhecidos - faz o retrato de Luanda perder nitidez.

Agualusa absorve notícias, livros, histórias e o seu próprio quotidiano, e leva-os ao lume como um demiurgo diabrete, por vezes com meros efeitos de diversão. Mas a certa altura há demasiada gente dentro do caldeirão, a puxar para demasiados lados. O livro dispersa-se e acaba por lhe faltar fundura, aquilo que pesa a quem já perdeu ou acredita que pode perder.

O peso raramente coexiste com a vocação para a felicidade - que é, nos detalhes, a de "Barroco Tropical". E quando a leitura assenta o que fica é o grande retrato de Luanda, a Termiteira.

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