A era que acabou com a falência da GM

Ontem, o impensável aconteceu quando o interesse da América determinou a falência de um dos seus maiores símbolos
de sucesso

Afalência da General Motors vai ser sem dúvida um dos momentos definidores do capitalismo que sairá da actual crise. Apesar de a sua longa agonia lhe ter minado a aura, a GM continuava a ser muito mais do que um mero aglomerado empresarial: a sua imagem global simbolizava uma era de prosperidade, servia de exemplo a todas as multinacionais e tornara-se com o tempo o principal exemplo do sucesso do capitalismo dos Estados Unidos. Há pouco mais de 50 anos, um dos seus directores, Charlie Wilson, dizia que o que era bom para a GM era bom para a América. Ontem, o impensável aconteceu quando o interesse da América determinou a falência de um dos seus maiores símbolos de sucesso.Por muito que o nascimento e morte de gigantes empresariais faça parte de um ciclo normal da vida dos EUA, não se pode ignorar que o destino da GM não é comparável com a falência de um banco, de uma seguradora ou de qualquer outra companhia. A construtora estava associada ao triunfo no inconsciente colectivo americano, foi o farol dos interesses empresariais dos EUA por todo o mundo e, em muitos casos, actuou em paralelo com as ofensivas diplomáticas da Casa Branca em países emergentes como o Brasil. O seu insucesso não pode por isso deixar de ser associado ao estertor do modelo empresarial e político que vingou no século XX.
E é curioso assinalar que esse insucesso resulta em grande parte da incapacidade de manter o espírito de abertura ao mundo que a GM manifestou ao longo de décadas. Como acontece nos grandes impérios, há sempre mais clarividência e capacidade de ler os sinais do tempo no processo de ascensão do que nos dias da queda. Assim foi com a GM, que, confortavelmente instalada no seu nicho norte-americano, não percebeu que a abertura do mercado interno que dominou a seu bel-prazer continha em si os gérmenes da sua própria destruição. Primeiro os japoneses, depois os europeus, agora os indianos ou os chineses, aprenderam rapidamente a lição e foram impondo o seu domínio a um gigante adormecido e incapaz de reagir. A crise actual foi, por isso, apenas o golpe fatal numa estratégia autista que, há muito, tinha condenado a GM.

Os impactes do colapso serão enormes, e não apenas nos Estados Unidos. Calcula-se que 21 mil operários vão perder o trabalho com o encerramento de fábricas na América. Mas também as subsidiárias europeias, a Saab sueca e a Opel alemã, provocarão danos sociais e económicos. Como sempre acontece nas grandes transformações, o mundo novo que se augura não se conquista sem dor nem revolta. Para todos os efeitos, a hora é de salvar os dedos e se a GM de outrora se extingue, começa a fazer-se luz para a Nova GM ou para a canadiana Magna, a nova dona da Opel. Como os tempos são mesmo novos, tudo será feito com a mão visível do Estado.Será isto uma tragédia? À primeira vista é. Não é sem desconforto que se assiste à derrocada de um emblema que se colou a um tempo histórico. Por muito que a GM fosse suspeita de servir de braço armado do "imperialismo ianque", ou até de colaborar com a Alemanha de Hitler, aquela imagem idílica de permanência que projectou, a ideia enganosa de sustentabilidade que conseguiu afirmar, não deixam de propiciar ideias amenas de um tempo estável e previsível. Muito mais do que uma simples falência o que está em causa é um mergulho em tempos de incerteza e ansiedade.
Ficar agarrado às saudades de uma era que se extingue seria, porém, a pior atitude. Liberta dos constrangimentos do passado, a Nova GM pode recuperar. Novos actores vão aproveitar o espaço vazio. Novas marcas e novos empregos surgirão. Nunca como nos próximos tempos se vai poder constatar o poder da destruição criadora do capitalismo. Nos EUA como em Portugal. Melhor do que alimentar cadáveres, é promover a criação de novos corpos. Se daí sair um capitalismo que combine a eficiência com a redistribuição, em breve a história da GM estará esquecida.

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