Retocar ou não retocar, eis a questão

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Uma das três capas possíveis da última edição da Elle francesa Peter Lindbergh

O mundo editorial não seria o mesmo sem a ajuda do Photoshop. No final da década de 1990, o entusiasmo com os retoques tornou-se obsessivo, a ponto de revistas como a britânica “The Face” terem cunhado uma tendência: a hiper-realidade. As mulheres transformaram-se em estiletes humanos de faces imaculadas. A raiar o plástico. Mas a indústria parece reclamar agora um regresso ao natural. Um dos fotógrafos que ajudou a criar o fenómeno das supermodelos da década de 90, Peter Lindbergh, fotografou três ícones da beleza europeia – Monica Bellucci, Eva Herzigova e Sophie Marceau – para diferentes capas da edição francesa da “Elle” tal como elas são na realidade. Sem aditivos, nem conservantes, sob o título “Estrelas sem Dissimulação”.

Retocar fotografias é prática generalizada no mundo editorial. Abrangente é também a polémica sobre se isso se deve ou não fazer. Em 2003, a actriz britânica Kate Winslet, conhecida pelas suas formas curvilíneas, veio a publico dizer que a “GC”, para a qual tinha feito uma sessão fotográfica, tinha exagerado nos retoques, fazendo-a parecer demasiado magra. O episódio foi seguido pouco tempo depois pela controvérsia dos bíceps intumescidos do tenista Andy Roddick, na “Men’s Fitness”. A revista feminina americana “Glamour” foi igualmente alvo de críticas, acusada de ter encolhido digitalmente a actriz America Ferrera (que dá corpo a “Betty Feia”), numa edição dedicada a técnicas de alongamento da silhueta.

E como estamos de retoques em Portugal? Contactado pelo PÚBLICO, o editor de fotografia da revista “Caras”, António Rocha, admite que os retoques de fotografias são uma prática comum, mas sempre dentro dos limites do “aceitável”. “Damos pequenos retoques, para corrigir falhas de luz ou para removermos imperfeições na pele, mas tudo dentro dos limites do aceitável”. “Nada de agressivo”, concluiu o responsável, adiantando ainda que os fotografados nunca impuseram posteriores correcções em Photoshop como condição para se deixarem fotografar.

No caso das revistas masculinas, em que as mulheres aparecem mais expostas, as fotografias finais tendem a ser um compromisso entre as personalidades fotografadas e os critérios editorais. “É um trabalho de equipa. As decisões são tomadas em conjunto, e queremos que assim seja, porque o trabalho deve valorizar a mulher. É também por isso que mantemos óptimas relações com quem fotografamos”, explica Diogo Madeira, editor da revista “FHM”. O mesmo responsável sublinha ainda que na sua publicação não se manipulam fotografias: “Podemos disfarçar uma nódoa negra ou umas olheiras, mas não alteramos as formas do corpo a ninguém. Não estamos aqui para enganar os leitores”, diz.

O sonho vende, a realidade retoca-se

Se o mundo editorial retoca digitalmente a realidade, a pergunta que se impõe é se deverá ou não continua a fazê-lo. “Durante anos, a manipulação de imagens teve grande impacto na forma como as mulheres são hoje definidas visualmente”, indicou o fotógrafo Peter Lindbergh, numa entrevista via e-mail ao “The New York Times”, depois de ter assinado as fotografias de capa da “Elle” no mês passado e nas quais as divas europeias aparecem, junto a outras cinco celebridades, em imagens a preto e branco e sem maquilhagem. “Os retoques indiscriminados não deverão representar a mulher do início deste século”, acrescentou o fotógrafo que durante a década de 1990 fotografou, entre outras, as topmodels Cindy Crawford, Naomi Campbell e Linda Evangelista.

Por seu lado, Phil Poynter – que fotografa campanhas para o designer Tommy Hilfiger e trabalha para as revistas “Pop” e “Love” – nota igualmente que “a grande discussão no mundo da moda tem sempre sido se se deve ou não retocar os modelos”. “Deveremos criar um retrato (de um manequim) que seja inatingível para as restantes raparigas comuns?”, pergunta.

Na opinião de Fátima Cotta, directora da “Elle” portuguesa, a resposta é “sim”. “Eu, pessoalmente, sou da opinião que ninguém gosta de ver caras medonhas nas revistas. Não tenho particular gosto em ver celebridades tal e qual como se levantam da cama, em imagens a preto e branco. Acho isso quase contra natura. Toda a gente gosta de ver pessoas bonitas, desde que não pareçam artificiais, claro”. “Porque é que só mostramos sítios bonitos e pessoas com glamour? Porque isso faz parte do sonho!”, advoga esta profissional.

“O Photoshop é uma óptima ferramenta, desde que seja usada com peso e medida. Ninguém quer ver caras de bonecas nem de robôs, mas é óptima para retirar, por exemplo, mandas da pele, borbulhas, alguma celulite... Nós queremos pôr as pessoas mais bonitas. Mas, claro, o Photoshop pode ser uma arma perigosa se não for bem utilizada”, argumenta ainda Fátima Cotta, recordando que há 21 anos, data de lançamento da revista em Portugal, se faziam melhorias às imagens, de forma "analógica", através da luz, dos ângulos e das roupas.

Apesar de tudo, a indústria parece estar a embarcar numa fase da beleza real. Para além da muito falada edição tripla da Elle francesa - cuja publicação atingiu um nervo na sociedade, que já vem reclamando há muito uma maior preocupação nos media por mostrarem fotografias reais –, outras publicações parecem estar a dar passos nessa direcção. A revista “Life & Style” decidiu recentemente colocar um selo na sua capa com a fotografia de Kim Kardashian (pertencente ao jet set de Hollywood e estrela do reality show sobre o dia-a-dia da sua família “Keeping Up with the Kardashians”, que passa no Canal E!) assegurando que a imagem é “cem por cento natural”. Não retocada, portanto. A “People” também publicou este mês o ranking dos “100 mais Bonitos”, publicitando fotografias de onze celebridades que usaram “nada mais do que loção hidratante”.

Até a implacável editora da Vogue, Anna Wintour, conhecida pelo seu rigoroso sentido de estética, admitiu recentemente em entrevista o programa “60 Minutos” que uma das imagens mais belas que já publicou na sua revista foi tirada pelo fotógrafo Irving Penn a uma mulher obesa, completamente nua, que ilustrava um artigo sobre os perigos da obesidade.

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