A aristocrata popular

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O que é que eles vêm, os fãs, clientes das noites de segunda e quarta na Mesa de Frades? Uma estranha mistura de seda com vísceras

"Ela tem o dom de ir buscar o passado e trazê-lo para o futuro". Não podia haver melhor elogiador: a frase é de Camané, fadista de eleição e, mais importante ainda, supremo conhecedor da história do fado. Foi Camané quem nos falou primeiro de Carminho, estava ela a dar os primeiros passos na casa de fados Mesa de Frades, há dois anos. Foi o primeiro de uma lista de fãs que engloba Carlos do Carmo, Tiago Bettencourt e o cineasta João Botelho, todos, entre outros, habituais clientes das noites de segunda e quarta na Mesa de Frades. O que é que eles vêm nela? Uma estranha mistura de seda com vísceras.

"Ela consegue misturar o fado aristocrático com o popular", diz-nos Camané, e Carlos do Carmo não podia estar mais de acordo. Há meses, aquando das comemorações dos seus 45 anos de carreira, Carmo dizia-nos - ainda Carminho não estava a gravar o disco - que ela vinha "de uma linhagem aristocrática do fado", que lhe lembrava Maria Teresa de Noronha. Isto não quer dizer que Carminho tenha sangue azul (não tem). É um elogio, que Carlos não só mantém como explica através de uma espécie de hagiografia do novo fado feminino.

"A nova geração de fadistas trouxe muitas mulheres, mas esse espaço, grosso modo, é o do fado burguês, o que não tem problema nenhum", caracteriza o autor de "Um Homem na Cidade". No fado, se retiramos a burguesia, ficam "a tradição e a aristocracia, que nunca teve problemas de relacionamento com o povo, ao contrário da burguesia". Carminho, diz, "tem um ídolo de eleição que é a Beatriz da Conceição, que é completamente povo". E a partir dessa fonte ela estabeleceu uma ligação única, "e ocupa agora esse espaço entre o popular e o aristocrático". Camané diz que sim: Carminho "tem muito de Maria Teresa de Noronha" e "tem muito de Beatriz da Conceição", no que será talvez a mais improvável genealogia de uma fadista em muitos anos.

Carminho não arrasta fãs apenas entre os fadistas: o cineasta João Botelho descobriu-a há uns meses e desde então vai à Mesa de Frades "todas as segundas e quartas-feiras", ou seja, aos dias em que ela canta. "Carminho é uma menina com características sociais elevadas" mas que "canta com as vísceras". Cá está, de novo: aristocracia ("na atitude", como diz Camané) e povo de mãos dadas. A paixão de Botelho vai ao ponto de ter acabado de realizar para ela quatro vídeos, sendo o primeiro de "O teu nome no vento". Conhecedor da voz de Carminho sem os polimentos de estúdio, Botelho recusou usar nos vídeos as versões do disco, preferindo antes que ela cantasse de novo, "com som directo, com respirações, soluços, pequenos enganos", porque, diz, do que gosta mesmo é "daquela coisa dura" que ouve quando está na Mesa de Frades. Depois resume tudo de forma muito simples: "Ela tem umas cordas vocais incríveis. E é uma menina, o que é engraçado".

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