Parece que o mundo acabou e um outro ainda não nasceu

Foto

O brasileiro Bernardo Carvalho experimentou o pânico em São Petersburgo e o resultado é o romance "O Filho da Mãe". Um amor "gay" na Rússia de agora, violenta, corrupta, desesperada, onde já ninguém pode ser inocente. Entrevista em Lisboa

Bernardo Carvalho (Rio de Janeiro, 1960) acha que o mundo está num intervalo. As pessoas interessantes calaram-se. Uma direita infantil instalou-se, dizendo que dois e dois são quatro. Mas em arte nunca são, diz o escritor, que talvez seja anarca. Só votou em Lula quando Lula não podia ser eleito. Não tem simpatia por nenhuma religião. Pediram-lhe um amor em São Petersburgo e ele imaginou um soldado russo com um refugiado do Cáucaso. Chamou ao livro "O Filho da Mãe".

É o segundo romance a sair do projecto Amores Expressos (17 escritores brasileiros contam histórias de amor em 17 cidades do mundo - http://www.amoresexpressos.com.br/). E é o décimo livro de Bernardo Carvalho.

Para o escrever, usou pela primeira vez a terceira pessoa. O narrador está "no lugar do espectador de cinema", mas não vê tudo. A arte é como São Petersburgo, a ruína por trás da fachada.

A escolha de São Petersburgo foi sua?

Não. Ofereceram-me São Petersburgo e aceitei imediatamente. Nunca tinha estado lá, não tenho contacto com a língua russa, não conhecia ninguém. Não teria aceite Paris ou Nova Iorque. Mas se me tivessem enviado para o Haiti eu teria ido com o maior prazer, talvez mais do que São Petersburgo.

Porque é um lugar menos carregado.

Menos carregado de sentido. E para mim é decisiva a ideia de uma incongruência entre uma história de amor e um lugar. Quanto mais incompatível, mais interessante.

São Petersburgo e uma história de amor - eram as únicas obrigações?

E escrever o livro em três meses, coisa que não foi feita. E cedíamos os direitos para o cinema por uma percentagem mínima.

Tinha lido os russos...

Lógico...

Antes de viajar, o que tinha na cabeça eram essas leituras.

E uma imagem romântica da cidade, que é contraditória em relação à imagem da literatura do século XIX, Dostoievski, Gogol, em que Petersburgo é um lugar horrível.

Na hora em que me convidaram, a imagem era a do cliché, não sei porquê, talvez por folhetos turísticos. E queria-me livrar daquilo.

Como se preparou?

Comecei a ler livros de jornalistas, História recente, e, inevitavelmente, acabei lendo os livros da Anna Politkovskaia, a jornalista assassinada um ano antes de eu ir. E foi aí que descobri as mães dos soldados. Achei muito forte como essas mães se organizam para salvar os filhos - os filhos dos outros, na verdade.

Que vão para a guerra da Tchetchénia.

Vão para a guerra e estão sendo torturados no próprio exército, um exército em decadência, que era um pilar da sociedade soviética. Com o final do comunismo aquele negócio degringolou. E, moralmente, se já havia uma semente de violência, floresceu. As forças armadas já não recebiam mais dinheiro do estado e começaram a se auto-devorar.

Com episódios como oficiais mandarem recrutas prostituírem-se.

Quando você começa o projecto de um romance parece que a realidade conspira a seu favor. Tudo o que você vê é como se houvesse deus e deus estivesse te ajudando. Nessa época [de preparação], vi uma reportagem na CNN sobre um quartel em São Petersburgo que prostituía os recrutas. Juntei aquilo com a história das mães e aquele negócio começou a germinar na minha cabeça. Fui tomando notas e comecei a perceber a violência da sociedade russa.

O que é curioso para um brasileiro. Porque o Brasil é o caos, talvez seja uma das sociedades mais injustas do mundo, um negócio violentíssimo. Mas tem uma diferença, que é uma certa hipocrisia, também. A gente vive no Brasil como se estivéssemos numa espécie de jardim-de-infância. Sobretudo a pequena burguesia. Você vai-se acostumando, vai sendo anestesiado por aquela violência, mas continua com esperança. O Brasil é inocente, e essa inocência está ligada a uma hipocrisia.

O que mais me assustou na sociedade russa é que não há possibilidade de inocência. Todo o indivíduo tem uma consciência absoluta da violência que é estar vivo na Rússia hoje. Todo o mundo já passou por experiências horríveis, no século XIX, em todo o século XX. Isso cria um individualismo, um pragmatismo absoluto, porque você não sabe se amanhã vai estar morto. Aquela coisa dos oligarcas que vêm para a Europa e compram tudo é uma espécie de desespero. E essa foi a diferença para mim. É cada um por si.

Isso torna as coisas mais difíceis. O Brasil parece ter um verniz, uma inconsciência, que faz as pessoas viverem como se estivessem no paraíso.

Como se a vida humana valesse realmente, enquanto que na Rússia é um dado adquirido que não vale nada.

Exactamente. Isso muda tudo. A gente vive num estado um pouco cego no Brasil, mas acha que é possível alguma coisa. Na Rússia ninguém acha que é possível nada.

Entre aceitar o convite e chegar à cidade foi quanto tempo?

Me convidaram em Janeiro de 2007 e eu fui em Setembro.

Já tinha uma história?

Tinha. Como fiz pesquisa, toda essa ideia do caos, da violência, das mães, estava na minha cabeça. Eu já tinha uma ideia preconcebida do que ia encontrar.

Queria que fosse uma história "gay", isso desde o início. Queria que um dos personagens fosse um dos recrutas. E como seria artificial entrar num universo que não conheço, queria um olhar exterior, estrangeiro. Mas demorei muito a entender que seria um homem do Cáucaso, que é como se fosse o nordestino em São Paulo.

O "bunda-preta".

É. Tradução literal do modo como alguns russos chamam as pessoas do Cáucaso. Como se fosse o argelino na França, o mexicano nos Estados Unidos. Então no final da estada em São Petersburgo acabei concluindo que seria uma história de amor entre um soldado e um refugiado do Cáucaso.

Alugou uma casa. Isso já estava tratado antes de chegar?

Estava. O produtor de cinema [que o convidou para o projecto] pagava tudo. Fez umas ofertas muito ruins de apartamento e eu contrapus uma outra agência [sobre a qual tinha lido]. Aí havia um apartamento relativamente pequeno mas óptimo na principal avenida de São Petersburgo, a Niévski.

Com o problema de não haver ninguém no prédio.

É. Um prédio óptimo, mas comercial, onde não havia nenhum morador depois das oito da noite. E as portas eram de ferro, tanto na entrada do prédio, que se abria com código, como no próprio apartamento, que era uma porta como de cofre-forte, que se rodava. Na hora em que abri isso supus que era assim porque havia a possibilidade de assaltos bárbaros. Cheguei à noite, e o motorista da agência imobiliária disse: "Não abra a porta de jeito nenhum se não souber quem está do outro lado."

Viajo bastante, mas pela primeira vez eu estava sozinho e não tinha conseguido articular nenhum contacto.

A sua experiência é de jornalista [ex-correspondente e colunista da "Folha de São Paulo"], e a estratégia de um jornalista seria reunir contactos, gente a quem ligar.

Sempre fiz isso, sempre deu certo, e ali não sei o que aconteceu. Fui para Moscovo uma semana, e foi maravilhoso, o tempo inteiro eu estava com gente, fui a festas, a jantares. Moscovo é considerada uma cidade mais violenta, maior, mas em São Petersburgo é que tudo deu errado, eu conseguia contactos mas estavam viajando. Na última semana começaram a aparecer, mas já era tarde. O que foi óptimo para o livro, porque criei essa situação limite de desespero, que era o que eu estava procurando.

Os dois primeiros dias foram como?

Procurei criar uma rotina. Procurei uma academia de ginástica para me matricular e usei uma espécie de cibercafé como meu escritório. Saía de casa de manhã, ia para lá trabalhar, saía, almoçava, pesquisava lugares que seriam cenários, fiz turismo, conheci museus, depois ia à ginástica e escolhia um restaurante. Até que no terceiro dia fui assaltado e a rotina quebrou-se

Foi em pleno dia?

Seis da tarde, com todo o mundo voltando do trabalho, a Niévski lotada, gente andando, pegando ônibus. Percebi que tinha três sujeitos atrás de mim falando muito alto de forma estranha, resolvi parar para deixá-los passar e eles pararam. Eu andei de novo e eles andaram de novo. E isso virou uma coreografia que para mim durou uma eternidade mas deve ter sido muito rápido. Foi como aqueles documentários da "National Geographic", da zebrinha e do leopardo, os dois se olham, um sabe que vai morrer, o outro sabe que vai matar. Nós nos olhámos, eu entendi que ia ser assaltado, eles entenderam que eu entendi. Foi aterrorizante, não tinha a quem recorrer, não falava russo, nas minhas pesquisas tinha lido que a polícia russa é corrupta. A própria agência imobiliária tinha-me alertado: "Não saia com passaporte para evitar que a polícia retenha documentos e exija dinheiro." Um guia inglês dizia: "Se a polícia pedir que o acompanhe não vá de jeito nenhum, a não ser que você tenha a certeza de que está sendo preso." Acho que eu delirei a cidade. Nada aconteceria de facto...

Mas deus contratou esses três...

... para que eu pudesse escrever o livro. Fui andado, pensei que o mais óbvio era entrar numa loja, mas não sabia falar russo, tinha medo que dissessem que eu tinha roubado. Enfim, comecei a ficar totalmente louco. A certo ponto pensei correr até minha casa, mas antes resolvi olhar para trás. Foi uma fracção de segundos, e um deles já estava com a mochila aberta e o computador na mão, preso num gancho de chaves na mochila - uma coisa que eu tinha descoberto na véspera. Começou uma discussão, eu gritando em inglês, ele em russo, a única palavra que eu sabia em russo era "milicia" - polícia - e eu gritava como naqueles sonhos em que a voz não sai, mas esganiçado. Eu estava do lado de um ponto de ônibus, tinha velhinhas e ninguém se mexia. Era como se eu fosse invisível e ele também. As pessoas que conheci depois disseram que todos deviam estar apavorados. Talvez não tivessem entendido o que era aquilo.

Esse assalto me deu consciência de que a vulnerabilidade atrai o perigo, e é irreversível - você percebe que é uma espécie de íman. No Brasil eu teria sido assassinado, eu venho de um lugar muito pior. Mas isso não aconteceria em São Paulo, porque aí eu me situo bem, sei onde as coisas são, onde está o perigo, tento me precaver, e falar a língua muda completamente as coisas.

A solidão é muito vulnerável. Se eu estivesse com o meu filho, hipoteticamente, de cinco anos, certamente não teria sido assaltado. Eu teria de proteger uma criança, os sentidos se reconfigurariam, e isso já seria um escudo. Mas a solidão absoluta, eu nunca tinha vivido isso.

Como se blinda contra a violência em São Paulo?

Me habituei a uma série de práticas, mas não ando em carro blindado, não moro em condomínio fechado, meu prédio é totalmente vulnerável, ando a pé. Andar a pé em São Paulo é menos perigoso que de carro. Houve um momento em que as pessoas eram sequestradas nos semáforos, com armas, e às vezes morriam. Era para tirar dinheiro nos caixas automáticos. Então não páro de vidro aberto nos semáforos, tento não parar, isso todo o mundo faz. A vida em São Paulo não é que nem estamos aqui [sentados no miradouro da Senhora do Monte, de costas para a rua]. É de vigilância absoluta e isso torna o quotidiano muito mais pesado. Você está de olho em todas as acções à volta, nunca está realmente à vontade a não ser que esteja protegido por guarda-costas, e isso acaba criando todo um serviço para-militar, para-policial.

Por exemplo, o meu prédio é de classe média-alta, mas na minha rua mora um dos irmãos Safra, banqueiros judeus com uma fortuna incrível, e eles alugaram um andar do meu prédio para os guarda-costas. É uma espécie de rotatividade, em que fazem turnos, e são pesssoas muito truculentas, para quem não existe lei, porque a lei é a deles. Então o copeiro do banqueiro liga e diz: "O meu patrão vai sair dentro de cinco minutos." E em cinco minutos eles têm que estar prontos e na porta para seguir colados no carro. E se calha você entrar entre o carro do patrão e o deles é possível que os guarda-costas arrebentem seu carro.

Eu tenho até um pouco de vergonha de dizer que me senti apavorado em São Petersburgo, mas essa situação psicológica de solidão é muito interessante.

Diz que depois do assalto alucinou a cidade. O que é que isso quer dizer?

Acho que a distorci. Quando voltei para casa, meu medo é que me estivessem seguindo e me assassinassem. Sou muito medroso, e ao mesmo tempo o medo é um sentimento...

... estimulante?

Fascinante. E a vulnerabilidade também. São dois estados primordiais para a literatura e para as artes. Você só consegue criar alguma coisa que tenha algum valor se sentir medo e vulnerabilidade.

Se estiver em risco.

É procurar uma literatura de risco, uma arte de risco. Esse movimento de perda que também está no livro. Só quando você acaba de perder tudo é que ganha o direito à vida.

Depois do assalto, sentei no sofá, fiquei olhando para o tecto durante duas horas me acalmando: "Estou sozinho na cidade, não tenho a quem recorrer e preciso reagir, se não vou ficar paralisado. Então, vou fazer tudo como planeado, como se nada tivesse acontecido." Naquele dia eu tinha pensado ir num restaurante indiano que ficava numa rua erma, longe, distante. E esperei para sair tarde da noite, para continuar fazendo as coisas como um desafio. Eu ia, mas ia aos frangalhos, olhando para trás. Passei um mês assim, achando que qualquer coisa podia acontecer a qualquer instante. E foi quando fui a Moscovo que deu uma melhorada.

Quando voltei, as pessoas que seriam os meus contactos iniciais começaram a aparecer.

Que tipo de pessoas? As mães?

Não. Eu tinha ido a Moscovo para entrevistar a presidente da organização das mães. As de São Petersburgo são mais religiosas, rezam, mas não se responsabilizam pelos soldados como as de Moscovo. As de Moscovo são umas loucas, muito activas, tentaram criar um partido e o Putin conseguiu reverter as leis para não deixar.

Então, as pessoas de São Petersburgo não tinham a ver com as mães. Havia duas amigas que tinham criado uma agência literária russa - excêntrica, porque Moscovo é o grande centro cultural. Eram amigas do meu ex-editor inglês, e com elas foi muito legal. Uma estava fazendo aniversário na semana seguinte, tinha uma festa, e ela era casada com um arquitecto riquíssimo. Eles compraram um daqueles apartamentos comunitários, não sei se no próprio prédio [supostamente] do "Crime e Castigo". Fica num canal, você vê o Teatro Marinski, é um lugar lindo. Eram vários apartamentos, e eles foram comprando de uma família, de outra, e de outra, até que formaram uma espécie de "loft". Derrubaram todas as paredes e é um apartamento modernérrimo.

Com essa coisa dos oligarcas, as mulheres dos oligarcas começaram a construir e decorar as casas, e não sei se a classe dos arquitectos não é a segunda em termos de riqueza.

Então, era um apartamento sensacional no centro de São Petersbungo, com gente superinteressante, todo o mundo paupérrimo, porque são os amigos dela, e aí conheci um rapaz muito interessado em poesia. Tem uma coisa estranha de poesia na Rússia. É como se houvesse ainda Rimbaud. Há concursos, grupos, fãs, um sujeito que é poeta maldito, um círculo em torno dele, blogues. Endeusam esse sujeito.

Como se chama?

Não sei, esqueci. Mas esse rapaz me mandou o blogue, aliás com vírus. Era um rapaz muito interessante, que odiava profundamente São Petersburgo. Tinha vindo em adolescente de Vladivostok com a mãe e foram morar num subúrbio onde moravam as pessoas do Uzbequistão, os pobres. Depois conseguiram sair, foram para o centro, e ele é jornalista. Os jovens na Rússia têm uma urgência. Se no lado do dinheiro, da máfia, tem pragmatismo, individualismo, no lado das artes parece que você vai morrer amanhã. Isso acaba cerrando um lado romântico, meio século XIX.

Febril.

Muito febril. Esse garoto me disse: "Você conhece os guetos?" Periferia. Aí a gente foi junto. Foi quando eu encontrei o lugar onde mora o Ruslan [um dos protagonistas do livro]

E como eu estava nesse estado de pânico, quando cheguei nessa periferia, dos marginais, dos pobres, finalmente achei um lugar onde me reconhecia na cidade, que não era aquele centro de fachada, não era a cidade turística. Senti uma vida ali, uma dignidade nas pessoas, mas era um negócio de derrocada absoluta. Prédios com o ideário soviético, mas nas vésperas do fim, construído e imediatamente abandonado.

No livro é véspera da comemoração dos 300 anos de São Petersburgo, então os prédios estão a ser limpos por fora. E por dentro, tudo podre.

Tudo azulinho, amarelinho, verdinho, os palácios restaurados por razões turísticas - mas você entra e está tudo caindo aos pedaços. E a cultura interessante acontece por trás das fachadas.

Teve acesso a isso a partir do momento em que conheceu esse rapaz?

E houve um cineasta de São Petersburgo que me mostrou muitas coisas. É pobre, mas de uma família judia muito intelectualizada, que nunca foi embora. Mora num apartamento que herdou dos avós, como se fosse um negócio do "Crime e Castigo". Fica no centro, que hoje deve ser caro, mas está em escombros. O banheiro é um nojo, tudo caindo aos pedaços.

Ele é muito interessante. Tinha estudado cinema com um cineasta soviético dos anos 60 que era uma espécie de Godard, amigo do Tarkovski, e que fez um filme extraordinário que por acaso eu vi na televisão em Moscovo. Um negócio muito vibrante, a preto e branco, meio "nouvelle vague", em pleno comunismo, jovens se reunindo, recitando poemas, um filme deslumbrante, com o Tarkovski actor. Eu tinha visto isso e quando conheci o rapaz descobri que ele era uma espécie de aluno dilecto desse cineasta. Estava empregado na agência central dos correios porque queria fazer um filme e entender como funcionava a coisa das cartas, queria as histórias das pessoas. Trabalhava lá ensacando as cartas.

De uma família judia...

É, tinham sofrido uma perseguição terrível, mas ficaram.

Isso leva a outra coisa que também está no livro, o racismo desta sociedade.

É muito racista. Mas, ao mesmo tempo, a gente diz que o Brasil tem essa relação muito boa com as raças e há um racismo pesadíssimo no Brasil, totalmente hipócrita e escondido. Estou muito cheio desse racismo. Os negros são massacrados no Brasil. Diz-se: "São os pobres, não são os negros." Mas é mentira. Os pobres, em maioria, são negros.

O lado totalitário desta sociedade está também na violência do exército, alimentada pela corrupção, na guerra da Tchetchénia. Isso ficou da Anna Politkovskaia?

Um pouco, e de outras coisas que li e vi. Li recentemente na "New Yorker" o julgamento dos acusados do assassinato da Ana Politkovskaia, que é tudo um golpe montado. Uma menina que conheci em São Petersburgo me disse: "As leis na Rússia são óptimas, o problema é como são usadas por essa sociedade completamente corrompida."

Ficou com ideia de que é impossível haver ali um país democrático?

Fiquei. Quando fui, a economia ainda estava florescendo. Tinham passado por um período caótico do final do comunismo e dos anos de Ielstin. O Putin criara uma estabilidade económica e eles estavam contentes com isso. E com a ideia da Rússia como uma potência, finalmente sendo respeitada pelo Ocidente. Os movimentos democráticos são minoritários, todas as pessoas que tentam se organizar, fazer manifestações pelos direitos civis são imediatamente massacradas pela polícia sem a mobilização do resto da população.

É uma população que sofreu muito. Em 1905, as pessoas em São Petersburgo reuniram-se para fazer reivindicações de direitos civis e o czar mandou matar todo o mundo. Foi um dos factores para revolução. Não sei como a democracia pode se estabelecer ali.

Sentiu que olhavam a guerra da Tchetchénia como uma coisa inevitável que não lhes dizia respeito, ou que havia alguma consciência ética?

É uma guerra muito confusa. O problema é que os "milicianos" [tchetchenos] não são melhores que o exército russo. É uma guerra de maus contra maus. As pessoas que conheci que são jovens e esclarecidas estão do lado da Rússia. Acham que é uma guerra terrível. Não acham justo que a população civil sofra, mas acham terrível a coisa islâmica fundamentalista. E eu também acho. Estive agora no Egipto, e não acredito, contrariamente ao que as pessoas tentam dizer, que há um islamismo bom e um islamismo ruim. Eu não acho que haja um islamismo bom, como não acho que haja um cristianismo bom.

Refere-se ao islamismo radical?

Não, porque no islamismo tradicional os "gays", por exemplo, têm que ser metidos na prisão ou assassinados, não têm direito à existência. Não sei porque tenho de respeitar uma religião assim, que propõe a minha inexistência. Não tenho simpatia nenhuma pelo islamismo, como não tenho pelo cristianismo. Não tenho por religião nenhuma. Acho interessantes as religiões como filosofia, mas acho terrível a prática das igrejas.

A sua família é católica?

Muito. Eu não, e minha mãe também não, mas eu tinha um tio padre, duas tias freiras.

A guerra da Tchetchénia é muito confusa. A razão está nos direitos civis, das pessoas, no direito de existir com condições mínimas. É violência contra violência, barbárie contra barbárie. A própria Anna Politkovskaia, que combateu os abusos do exército russo, tinha horror daquela coisa tchetchena fundamentalista.

Quase no fim do seu livro há esta passagem: "As pessoas precisam se agarrar ao que já conhecem. Os modernismos não podiam mesmo durar. Nem as revoluções. Ninguém vai construir uma casa à beira do abismo." Quer comentar?

Não existe revolução permanente, e isso dá um desencanto, que é o que a gente vive. Abriu um vácuo onde por exemplo se instala uma nova direita, quase primária, meio infantil, com uma vontade de aplicar uma lógica de criança, imediata, a tudo o que existe na sociedade, inclusive as artes: se dois mais dois não é igual a quatro é porque é falso. Mas se dois mais dois fosse igual a quatro, não existiria arte.

É terrível viver isso hoje. Tem a ver com essa falta de inocência russa. É o fim da modernidade, das utopias, mas também de uma possibilidade que não seja pragmática.

As revoluções têm uma hipocrisia embutida. Vão tentar mudar uma coisa que vai-se restabelecer de seguida com outros meios, outras pessoas. Mas se você faz arte não pode perder essa perspectiva, essa passagem. Eu sou pelo movimento, pelo risco. Tenho uma descrença absoluta, e ao mesmo tempo uma espécie de fé. E a fé, para mim, é nas artes, sabendo que lidam com paradoxos, não são para entender imediatamente. Ninguém quer construir uma casa à beira do abismo, e no entanto é isso que é interessante.

Acho que estamos num momento de entre-safra. Uma espécie de interregno. Você não vê nada nas artes que seja extraordinário, a política é um fracasso, há uma descrença no mundo inteiro cada vez mais envolvido com a corrupção. Isso dá uma solidão, porque não tem discussão. Parece que o mundo acabou e um outro ainda não nasceu. O Godard não é mais o Godard, o Wenders não é mais o Wenders. É óbvio que tem pessoas novas aparecendo, mas não se configurou um novo mundo. Está um magma em que as pessoas estão militando. Esse advento de uma nova direita é como se fossem crianças desafiando as hipocrisias do mundo que acabou.

Votou no Lula?

Votei no Lula a vida inteira. Quando estava na Faculdade assinei para o PT existir. E quando o Lula chegou na iminência de ser eleito deixei de votar. Talvez eu seja anarquista. Mas agora, quando a alta burguesia brasileira tem horror do Lula e fala das "gaffes", eu defendo-o com unhas e dentes. Dentro do pragmatismo do mundo actual fez um óptimo governo. Teve muita sorte.

O que acho interessante é que tem gente muito inteligente que aparece cada vez menos. Pessoas que estudam literatura, que sabem muita coisa e se calaram. É como se nessa sociedade da visibilidade, desse afã de aparecer, as melhores pessoas tivessem se recolhido, e estivessem se recarregando. Entre jovens, tem muita coisa interessante, mas na calada.

Sugerir correcção
Comentar