Esta Alice só se vê com os olhos fechados

Wonderland, a nova criação do Teatro de Marionetas do Porto, é mais uma descida aos infernos da Alice no País das Maravilhas, mas agora para adultos. Continuamos
a ter alucinações, com este texto de Lewis Carroll

a Lewis Carroll foi com Alice ao país das maravilhas e ao outro lado do espelho e viu centenas de coisas, nesses sítios onde para ver coisas é preciso ter os olhos fechados - mas não viu nada (nenhuma Rainha de Copas, nenhum coelho com pressa, nenhum chapeleiro louco) que chegasse aos pés dessa miúda "moving under skies never seen by waking eyes" que continuava a assombrá-lo meses depois dessa viagem fundadora para o inconsciente colectivo ocidental. Em 1997, o Teatro de Marionetas do Porto (TMP) também foi com ela por aí fora, de olhos fechados. Passaram-se 12 anos e João Paulo Seara Cardoso, o director da companhia, também continua assombrado por essa presença: Wonderland é o TMP a ir ter com ela outra vez, nos subterrâneos que tinham ficado por escavar.Ao contrário de Alice no País das Maravilhas (a peça de 1997), Wonderland, que o TMP estreia esta noite em Matosinhos, no Cine-Teatro Constantino Nery, é um espectáculo para adultos. "Quando fizemos a Alice para crianças, há 12 anos, percebi que essa era uma leitura muito superficial e que a Alice tem muitos subterrâneos para escavar, muitos labirintos onde nos podíamos voltar a perder. Também comecei a ler as interpretações que os psicanalistas fizeram do texto, as teses do Artaud, e achei, como diz a Virgina Woolf, que a Alice mais interessante é a que transforma adultos em crianças", explica Seara Cardoso.
Vamos lá, então, descer aos infernos deste texto e lê-lo com olhos de adulto que ainda tem medo do escuro. Wonderland não é exactamente um espectáculo: é uma alucinação, um estado estranho, alterado, em que nos cruzamos com seres "never seen by waking eyes" que, mesmo quando nos parecem familiares, não são exactamente aquilo que nos lembrávamos de ter visto há muitos anos, num filme da Disney. "Resolvi usar a nossa memória iconográfica da Alice para começar e acabar de contar a história, mas a partir do momento em que mergulhamos nas profundezas a Alice passa a ser nossa e a ir pelos caminhos que nós queremos que ela siga", continua o encenador.
A Alice deles é isto: uma miúda morena, de cabelos pretos a dar pelo queixo e uns olhos gigantes, abertos mas para dentro, a engolir um sítio que ela não sabe onde fica e onde há flamingos, serviços de chá, cartas acabadas de chegar à caixa do correio, partidas de cróquete e relógios parados no recreio da escola. Parece uma coisa de crianças, mas às tantas estamos no Inferno (há uma serpente, uma garrafa que diz "bebe-me" e uma Rainha de Copas especialmente carnívora), e este Inferno é um ambiente um bocado lynchiano. "Pensei muito na leitura sexual que a psicanálise faz disto e não me interessou muito ir por aí - mas interessou-me usar a Rainha de Copas como encarnação do próprio Lewis Carroll. É um homem particular - um professor de Matemática respeitado em Oxford, que vai ser padre, mas que depois faz declarações estranhas e diz que as raparigas a partir dos 12 anos já não lhe interessam. Há ali um sentimento de culpa, de pecado, e isso está no espectáculo", sublinha Seara Cardoso.
Precisamos é de ter os olhos fechados para o ver melhor: Wonderland é um país profundamente visual mas também profundamente sonoro em que nunca ninguém parece falar a nossa língua - e onde, no entanto, nunca chegamos realmente a sair de casa.

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