Sexo e violência no Japão

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"O Vagabundo de Tóquio", de Seijun Suzuki

Entre 12 e 17 desfila na Culturgest, em Lisboa, a forma sistemática como uma geração de cineastas se empenharam na destruição do "ser-se japonês". Foi um cinema belicoso, feito em guerra, feito de sexo e violência, um dos períodos mais fortemente subversivos de qualquer cinematografia em qualquer época. Foi a Naberu Bagu, a Nova Vaga japonesa.

"Eros + Revolta", é assim que se introduz o ciclo de cinema japonês dos anos 60 (o "novo cinema", a "nova vaga" japonesa) que a Culturgest, em Lisboa, organiza entre os dias 12 e 17. Um período de intensa renovação da cinematografia japonesa, caracterizado pela remodelação das suas estruturas industriais e pela emergência de vários novos autores que filmavam em "guerra" - em guerra com a sociedade e em guerra com o cinema japonês clássico. "Eros" e "Revolta", sexo e violência, instrumentos (mais do que apenas "ingredientes") de um dos períodos mais fortemente subversivos de qualquer cinematografia em qualquer época.

A expressão "nova vaga" foi cunhada por uma jornalista do "L'Express" para apodar a torrente de jovens realizadores que despontou no cinema francês entre o final dos anos 50 e o princípio dos anos 60. Pegou, e ganhou um sentido histórico substancial. Desde então talvez se tenha tornado uma fórmula "passe-partout" - mesmo hoje, parece que há sempre um ponto do globo onde está a acontecer uma "nova vaga" qualquer. Mas um dos casos em que a apropriação da expressão fez mais sentido aconteceu no Japão. Em primeiro lugar porque a "Naberu Bagu" (a transcrição fonética do francês "nouvelle vague", rapidamente adoptada pelos críticos e jornalistas japoneses) apareceu praticamente ao mesmo tempo da francesa. A "nouvelle vague" foi inspiração directa de muito "cinema novo", um pouco por todo o lado, mas a "nova vaga japonesa" (assim como em Inglaterra, o "free cinema", frequentemente descrito como uma "ressonância" da "nouvelle vague") tem a sua própria história, que não é uma história de "influências" mas antes de "paralelismos" sem comunicação directa. Quando se vê, por exemplo, os primeiros filmes de Nagisa Oshima, rodados à volta de 59/60, chega a ser impressionante a espécie de "ar de família" - e talvez até com algum avanço sobre os franceses, por exemplo no tratamento da cor e do formato "scope". Depois, porque para os japoneses, como para os franceses, as idiossincrasias pessoais eram cobertas, mais do que pelas afinidades geracionais, por um fortíssimo sentimento de reacção. Era um cinema belicoso, feito em guerra contra o cinema dos "mais velhos" - o "cinéma de papa" em França, o cinema dos grandes mestres, dos "pais" do cinema clássico nipónico (Mizoguchi, Ozu, Naruse...), no Japão.

Evidentemente que Oshima, Shohei Imamura, e outros, tiveram tempo de relativizar essa reacção (à medida que eles próprios foram envelhecendo e tornando-se, por sua vez, "mestres") e professar a sua admiração pelos clássicos. Mas nesse tempo, por absolutamente "ferido" e tortuoso que fosse (e era) na relação com as transformações da sociedade japonesa do pós-guerra, o cinema dos "mestres" representava para os jovens o prolongamento de uma ordem em que eles não eram capazes de se reconhecer. Era a geração que tinha atravessado a adolescência na II Guerra (e, nalguns casos, combatido nela), que tinha chegado à idade adulta no Japão derrotado, que viveu o "milagre económico" e a decisiva "americanização" que o acompanhou. Era deste mundo, desordenado, em transformação, que queriam falar - sem desmesurado amor por ele, bem pelo contrário, mas seguramente sem nostalgia pelo mundo "antigo" ou pelas suas persistências: fora esse mundo "antigo", com os seus formalismos e códigos de valor, que conduzira ao desastre (ou que, pelo menos, não o conseguiu impedir). Era preciso, pois, inventar um cinema de "ruptura", com a tradição social e a tradição cinematográfica. O cineasta Paulo Rocha, um dos portugueses que melhor conhece o cinema japonês e a sua relação com a vida e a cultura do país, resumiu uma vez, lapidarmente, o que mais impressiona no cinema japonês dos anos 60: a maneira sistemática, quase um "projecto", como os cineastas dessa geração se empenharam num trabalho de destruição da "japonesidade", do "ser-se japonês".

Os instintos

Como noutros países sucedeu, por essa altura, a tarefa dos jovens foi facilitada por factores estruturais - o fim de carreira dos velhos mestres, as transformações na organização industrial, a perda de peso do cinema face à crescente importância da televisão, a renovação do público das salas. A este respeito, se alguma coisa difere especialmente a "nova vaga japonesa" é o facto de a "revolução" ter sido acolhida por alguns dos principais estúdios japoneses, como a Shochiku ou a Nikkatsu, o que talvez explique um aspecto desconcertante, sobretudo dos filmes iniciais do movimento: o nível dos "valores de produção" (da fotografia à cenografia), de uma qualidade industrial por vezes sumptuosa (nalguns dos primeiros Oshimas, por exemplo, isto salta à vista).

É uma viagem por este riquíssimo período da história do cinema japonês que a Culturgest propõe para os próximos dias, com filmes de alguns dos mais significativos cineastas da época. Encontraremos alguns temas recorrentes, mas sobretudo uma forma particular de os abordar. Deus sabe como Mizoguch, Ozu ou Naruse filmaram, por exemplo, a condição da mulher (seja a mulher uma rapariga independente, uma esposa submissa, uma esposa adultera, uma gueixa ou uma prostituta) em diferentes tempos e espaços da sociedade japonesa, mas fizeram-no segundo uma perspectiva - diríamos, tão "japonesa" - de "sublimação", de sacríficio, de estoicismo, de fatalismo. Ora o que está em causa nestes filmes é justamente o fim disso tudo, o fim da sublimação e do fatalismo, pelo menos tal como os japoneses os conheciam. Não por acaso, os "instintos" (o sexo, mas também, e em relação com ele, a violência) são protagonistas: os filmes de Imamura, por exemplo, em cujo cinema a "animalística" sempre ocupou um lugar especial (vão ser mostrados "A Mulher Insecto", de 1963, e "Desejo Profano", de 1964, ambos dia 14); de Nagisa Oshima, que com Imamura é destes cineastas o mais conhecido no Ocidente, alguns dos seus filmes mais politizados, debruçando-se sobre a nova paisagem sócio-política do Japão (o "Enterro do Sol", de 1960, sobre "gangues" juvenis em Tóquio, e "Noite e Nevoeiro no Japão", 1960, sobre o activismo estudantil e a "nova esquerda", ambos 3ª feira dia 12, "Sobre as Canções Brejeiras Japonesas", de 1967, focando o "vazio" existencial da juventude, na 4ªfeira dia 13) ou em directo questionamento das instituições ("O Enforcamento", 1967, parábola semi-kafkiana altamente teatralizada, a justiça).

A homossexualidade e o "submundo gay" estão em foco no "Funeral das Rosas" de Toshio Matsumoto, e os filmes de outros cineastas igualmente pouco conhecidos em Portugal (Koji Wakamatsu e "Gogo, Virgem pela Segunda Vez", Masahiro Shinoda e "Duplo Suícidio em Amijima", Yoshige Yoshida e "As Termas de Akitsu", talvez o mais "clássico" de todos os filmes apresentados), insistem na conjugação destes temas, o sexo e a violência, como sinais de um mal-estar insidioso em vários estratos e vários "pilares" da socidade japonesa. Ou, como resume o título do último filme a apresentar, "Eros mais Massacre" (filme de Yoshige Yoshida). Menção ainda para o mais inclassificável destes cineastas, até por questões geracionais: Seijun Suzuki, de que serão apresentados três filmes, todos no mesmo dia, incluindo o magistral policial "O Vagabundo de Tóquio", citado por Tarantino ("Kill Bill") e por Jim Jarmusch ("Ghost Dog").

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