"Isto somos nós, isto é Portugal e é só pop"

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João Coração

A iconografia junta a cruz de Cristo a tambores e a música tem tanto de Strokes como de Heróis do Mar. São Os Golpes e o seu muito aguardado disco de estreia, "Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco".

O encontro estava marcado para o Jardim da Estrela, em Lisboa, mais precisamente para o coreto que se ergue em frente a um dos seus portões. A entrevista não tinha ainda começado e eles, os Golpes, observavam o cenário. "Temos mesmo que dar aqui um concerto", lança Luís, o baixista, a Manuel Fúria, vocalista e guitarrista.

Eles, recorde-se, são a banda que escolheu para primeiro teledisco uma cavalgada por prados em Alter do Chão ("A marcha dos Golpes"), uma banda que deu ao seu primeiro álbum, agora editado, o título "Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco" e que, nele, canta sobre montras da Avenida de Roma e pelourinhos num largo municipal não identificado. Como não haviam eles de apreciar a ideia de montar um concerto no coreto? "O pop rock chegou a um tal estado de universalização que já não é património de ninguém", dir-nos-á mais tarde Manuel Fúria. "Está tão entranhado no nosso crescimento, na nossa personalidade que, para nós, já é óbvio que podemos afundar as mãos no mar, na areia, no nosso passado, seja no que for, que sai rock." Precisa: "Sai rock que é português e nada mais."

Os Golpes não nasceram longe daquele coreto. "Começámos a ensaiar a poucos metros daqui, no atelier de pintura de uma amiga, num quarto minúsculo", aponta Luís. Nessa altura chamavam-se ainda 400 Golpes, nome adoptado do filme de Truffaut.

Essa simples escolha do nome já indicava uma ideia para a banda - e mostrava que esta banda que canta "golpe a golpe, inventamos Portugal", não se pretende fechada. Pelo contrário, é certo que têm cruzes de Cristo e tambores do folclore como iconografia, mas cresceram com uma cultura popular globalizada - na sua música ouvem-se ecos de Television ou dos Strokes.

Voltemos ao nome.

Manuel Fúria, estudante de cinema antes de se voltar decisivamente para a música, explica os 400 Golpes que primeiro baptizaram o grupo: "Para além do facto de me parecer, muito simplesmente, um bom nome para uma banda, havia o lado das canções [tal como o filme] reflectirem uma visão ingénua, a visão de uma criança a descobrir as coisas da idade adulta."

Quando os Golpes deixaram cair os 400, isso manteve-se - está lá, devidamente exposto, na trilogia "Tarde livre" que pontua o álbum, e no seu romantismo inocente de mãos dadas no largo, de esperas ansiosas frente ao colégio.

Porém, entre o momento em que os Golpes deixaram cair os 400 e este álbum que agora nos chega, algo mudou. Luís: "Antes, faltava-nos um objectivo. Estávamos ali [no 'quarto de ensaios'], por vezes oito horas seguidas, comigo a sair directamente para o trabalho, e não havia objectivos. Não havia um concerto ou o que quer que seja. Mas, de repente, tínhamos ali material e fazia sentido pensar nisto de maneira mais séria." De repente, dizemos nós, não era só eles terem material. Era saberem que haveria gente predisposta a ouvi-lo.

A bandeira de Morrissey

Em Novembro de 2008, escrevíamos na capa do Ípsilon: "Quem é esta gente que entra de rompante pela nossa música adentro?"

Esta gente era Tiago Guillul, João Coração, Samuel Úria e Manuel Fúria, eram também os Pontos Negros, B Fachada, Feromona ou Smix Smox Smux, músicos e bandas divididos entre a Flor Caveira, a Amor Fúria (editora dos Golpes) ou Catadupa. Eram gente que fazia com que o português parecesse "a língua natural de uma canção pop".

Na altura em que o relatámos, o público já tinha respondido a essa "naturalidade" do gesto, comprando discos e enchendo concertos com a euforia própria de quem vive e testemunha algo de especial - um encontro de intenções, digamos. Não é o caso do músico que dá ao público o que o público quer ouvir: o músico deu ao público algo que o público descobriu querer ouvir.

Para os Golpes, a partir do momento em que se sintonizaram nessa efervescência, a partir do momento em que a música ganhou, definitivamente, uma intenção, as coisas tinham obrigatoriamente de se tornar mais sérias. Como não o ser quando cantam algo como "golpe a golpe construímos Portugal"? Quando criam todo um universo iconográfico que é impossível ignorar e que levou a inevitáveis paralelismos com os Heróis do Mar? Como não o ser quando, em crescendo de expectativa, viram como o seu álbum de estreia se foi tornando uma das mais aguardadas edições do ano?

Presenteiem-nos com esta retórica e a primeira coisa que eles farão será corrigir-vos. Que sim, as coisas tornaram-se sérias, mas no sentido de um comprometimento total com o álbum que ia nascendo, não de resposta ao burburinho que chegava do exterior. O guitarrista Pedro da Rosa é peremptório: "Tudo o resto [a iconografia] é interessante e gostamos de o usar, larga ali umas especiarias que são claramente portuguesas, mas o que interessa é a música. Fazemos música, mais nada." Luís prossegue: "De certa forma, o álbum [produzido por Jorge Cruz, que o baixista classificou, no processo, como o quinto elemento dos Golpes] foi sendo construído e foi ganhando personalidade no momento em que o gravávamos. Isso deu-lhe consistência. A única pressão que sentimos foi a de conseguir exactamente aquilo que queríamos com o tempo e orçamento disponíveis."

E Manuel Fúria, quando voltamos aos Heróis do Mar e abordamos a polémica que causaram pelo imaginário inspirado no Portugal imperial, dir-nos-á, primeiro: "Acredito que os anos 80 foram uma explosão de criatividade muito engraçada que se perdeu nos anos 1990. Aquilo que nos interessa na música portuguesa está aí." Dirá, depois: "Há este lado de usar bandeiras e torná-las de novo património comum  que acho importante." Porquê? Porque "está tudo farto", insurge-se Fúria. "Farto de ter vergonha e farto de estar associado a pessoas que têm vergonha. Podemos perfeitamente embrulhar-nos em bandeiras, como faz o Morrissey ou como fazem os The Who, e dizer 'isto somos nós, isto é Portugal e é só pop'."

Campos de férias

Dia 1 de Maio, Santiago Alquimista, em Lisboa. Apresentação do álbum de estreia d'Os Golpes, que convidaram a juntar-se à celebração Os Capitães de Areia e Os Velhos, duas bandas que a sua editora, a Amor Fúria, revelará brevemente.

Antes de começar, vivia-se um ambiente de acontecimento, com filas à entrada, um painel na parede a avisar os mais incautos ("Esgotado") e pessoal, ainda assim, a tentar arranjar os bilhetes que já não existiam. Enquanto o concerto acontecia, fez-se a festa, com os bombos das Caixas Furiosas, o grupo de percussionistas que acompanhou os Golpes, a marcar o ritmo da dança. Viam-se miúdas a saltar para as cavalitas dos rapazes, única forma de verem o palco, e ilustres representantes da Flor Caveira a dar, via "crowd-surfing", um ambiente punk a tudo aquilo.

Concerto eufórico, certamente, que as canções da banda ajudam à excitação pop. Concerto ganho à partida, naturalmente, que a primeira apresentação, como é da praxe, teve a presença de familiares, muitos amigos e conhecidos.

O cenário era diferente do habitual num concerto "indie". Nesses, a presença da população vulgarmente designada como "beta" costuma ser residual. Ali, estava em larga maioria. No concerto do Alquimista, enquanto a guitarra de Pedro da Rosa se lançava num floreado certeiro, enquanto o baixo de Luís e a bateria de Nuno Moura mantinham o ritmo em andamento seguro, enquanto Manuel Fúria, guitarra em punho, disparava o chamamento ("a dança começa!"), todos eles cantavam as letras palavra a palavra. A maioria dançou como a música obrigava, os restantes juntaram-se no comunitário mosh espoletado pela Flor Caveira, da suburbana Queluz.

A verdade, porém, é que análises sociológicas do público que dia 1 de Maio, num concerto de contexto muito específico, esgotou o Santiago Alquimista, são pouco relevantes para o quadro geral.

Os quatro membros dos Golpes conhecem-se há muito tempo - muito antes d'Os Golpes serem 400, muitos antes de os seus elementos sonharem que poderia existir esta banda de "Cruz Vermelha Sobre Fundo Branco". Não se encontraram por andarem na mesma escola ou por jogarem à bola no ringue ao fundo da rua: "O universo de pessoas de onde vimos", explica Manuel Fúria, "está ligado a campos de férias dos jesuítas e foi aí que a malta se conheceu".

Fora disso, os percursos são diferentes: Manuel Fúria nasceu em Lisboa e foi para Santo Tirso antes de regressar. Luís nasceu em Viseu e andou por Lisboa, pelo Algarve e por Coimbra antes de se fixar definitivamente na capital. Pedro da Rosa é ribatejano e a sua terra, afirma convicto, será sempre o Ribatejo - "vivo em Lisboa há não sei quantos anos e sou incapaz de me dizer lisboeta". Nuno Moura, que substituiu o baterista original da banda, António Brito, é por sua vez, o único que nasceu em Lisboa e por ela ficou. Este elenco de proveniências e deambulações não é, nesta banda, pormenor supérfluo.

Na música e na iconografia dos Golpes, montada num contexto pop cuidadosamente elaborado, como que se plasmam aquelas diferentes experiências: nos pelourinhos que Manuel Fúria resgata a memórias de Santo Tirso ou nas cavalgadas de que Pedro da Rosa e Nuno Moura se lembram bem e que surgem no teledisco de "A marcha dos Golpes". Nada disto, como eles disseram acima, começou por ser consciente. Manuel Fúria chama-lhe uma contingência: a desta banda ser formada por estas pessoas. O decidido Pedro da Rosa, uma inevitabilidade: "Faço questão de não me esquecer de onde venho. Isto é o que nós somos."

O segredo, percebemos ao ouvir o disco, percebemos ao vê-los ao vivo, está em terem conseguido transformar isso que são em música em que todos neste país conseguirão, de alguma reconhecer-se. O segredo, reformulemos, está em terem conseguido transformar isso que são em música pop tão contagiante. Ponto final.

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