Mas ainda podia ficar pior

Pastilhas contra a azia, roupa suja e verborreia. A incapacidade de Fima é a incapacidade do Estado de Israel, exposta por Amos Oz há 20 anos

Efraim Nisan, aliás, Fima, ia ser poeta, académico, fazedor de opinião, talvez mesmo um líder, além de praticante dotado para o prazer das mulheres.

Esperava-se muito dele, no mínimo que continuasse a ser brilhante. Mas agora é um cinquentão gorducho a perder cabelo, vive sozinho num apartamento dos limites de Jerusalém com baratas e chávenas sujas no lava-loiças, está sempre a tomar pastilhas para a azia e pensa muito em mudar de camisa e de vida, mas depois volta para a cama e dorme mais um bocado porque só à uma da tarde é que tem de estar no consultório ginecológico onde é recepcionista. Em suma: "Perguntou a si mesmo se se importaria de morrer nesse dia. A pergunta nada lhe suscitou: nem receio nem vontade."

Quando o livro abre, Fima está a acordar de mais um sonho, cinco dias antes de um drama. O livro decorre durante esses cinco dias, até entrar o "shabat", em Fevereiro de 1989.

O primeiro-ministro de Israel é Yitzhak Shamir. A Primeira Intifada está em curso. Os palestinianos atiram pedras e são mortos por balas de borracha (a que esta tradução chama balas "de plástico") presumivelmente atiradas pelos soldados israelitas. Fima odeia a retórica das balas de borracha e dos presumivelmente. Lê o diário de esquerda "Haaretz" e sonha acordado com os artigos em que denunciará a imoralidade da ocupação israelita: "Será que os germes da doença já infectavam, à partida, o ideal sionista? Não terão os Judeus uma maneira de regressar ao palco da História sem sujarem as mãos? E antes de termos voltado ao palco da História, não teríamos as mãos sujas? Entre aleijados e rufias não haverá uma terceira via?"

Já o pai, que foi quem lhe comprou o apartamento e continua a achar que o filho é um poeta e um pensador, acha que Israel não pode deixar os árabes humilharem-no.

Na vida de Fima existe este pai, o fantasma de uma mãe morta, alguns amigos bem-sucedidos com casas nos melhores bairros da cidade que estão fartos de o ouvir falar, e quatro mulheres mal-amadas: Yael (a ex-mulher que o continua a repreender), Nina (mulher de um dos amigos que lhe limpa a casa depois de fornicarem), Anette (a paciente do consultório que foi abandonada pelo marido) e Tamar (que trabalha no consultório e tem uma paixão masoquista).

Há ainda o filho meio albino e estrábico que a sua ex teve com o segundo marido, e a quem Fima tanto se afeiçoou, apesar de ter levado Yael a abortar quando estavam juntos.

Fima sabe bastante de abortos e do interior das mulheres. Nos gabinetes do consultório está tudo à vista, espéculos, tesouras, pinças, dispositivos intra-uterinos, bombas de vácuo para aspirar embriões - e, pergunta-se ele, para onde irão os embriões aspirados?

Depois, numa destas manhãs de Fevereiro, vai à janela e a luz exterior, "vaporosa e diáfana" como pode ser a luz de Inverno em Jerusalém, junta-se a uma claridade interior. Fima pensa que a "terceira condição" será isso, a "convergência da luz pura das montanhas e da que emana dele mesmo". E pensa ainda que não haverá no mundo "perda mais trágica do que a da terceira condição", causada "pelas notícias da rádio, pelos nossos projectos, pelas ambições ocas, pela corrida desenfreada atrás de futilidades e bagatelas". Anota estas palavras: conformismo, rotina, mentira, degenerescência, decadência. O seu mal será o mal que julga ver à volta, em Israel. É um ideal, a "terceira condição", "uma graça" - "mas quem será capaz"?

Amos Oz escreveu isto há 20 anos, e estão cá algumas das suas obsessões: a família, as relações homem-mulher, a verborreia dos israelitas entre auto-comiseração e auto-flagelação, o retrato de um país refém de si próprio. O que hoje sabemos é como tudo ainda podia ficar pior.

Mas há melhor Oz. Para quem tenha lido alguma literatura israelita recente, este "A Terceira Condição" - publicado pela primeira vez na Asa em 1995 - sabe um pouco a requentado.

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