Torne-se perito

Entrevista Harald zur Hausen

Sempre acreditou na origem viral do cancro do colo do útero na mulher. E hoje o Nobel alemão Harald zur Hausen continua a pensar que a relação entre muitos cancros e agentes infecciosos - vírus, bactérias, parasitas, etc. - ainda está por desvendar. Espera que no futuro, tal como já acontece com o cancro do colo do útero, seja possível imunizar as pessoas contra uma série de outros cancros. Por Ana Gerschenfeld

a Haral zur Hausen, de 73 anos de idade, Prémio Nobel da Medicina 2008, especialista do cancro, desaconselha o consumo de carne vermelha. Até aqui nada de inédito: sabe-se que a carne de vaca faz aumentar a incidência "do cancro colo-rectal, do cancro do pulmão nos não fumadores, do cancro do pâncreas e dos cancros da mama nas mulheres após a menopausa", tal como explicou numa palestra proferida na Faculdade de Medicina em Lisboa, onde foi objecto de uma homenagem no fim da passada semana. Basta ver, salientou, as estatísticas de cancro do cólon em países como a Argentina ou o Uruguai. Mas perguntem-lhe por que é que acha que isso acontece e a sua resposta será no mínimo inesperada: a sua hipótese é que a carne vermelha poderá conter vírus - o que não acontece, por exemplo, com a carne de aves - que conseguem sobreviver à cozedura e infectam as pessoas que a comem. Mais tarde, após anos de residência no organismo humano a minar as suas defesas, esses inimigos silenciosos acabam por provocar o aparecimento de tumores malignos. Zur Hausen vê em muitos cancros a assinatura de agentes infecciosos - e, tal como nunca duvidou que o cancro do colo do útero fosse de origem viral, acredita hoje que vale a pena continuar a procurar as raízes infecciosas dos cancros, na esperança de poder um dia desenvolver vacinas preventivas contra alguns deles. Pouco antes da sua conferência, este homem que recebeu o Nobel pela descoberta de que o cancro do colo do útero era causado pelo vírus do papiloma humano, falou com o P2 das suas pesquisas passadas e futuras.

Teve sempre a convicção, desde o início da sua carreira científica, de que os agentes infecciosos, vírus e bactérias em particular, deviam estar envolvidos no desenvolvimento de cancros no ser humano. Donde vinha essa convicção?Quando era estudante, aprendi que as bactérias podiam ser infectadas por fagos, ou seja por vírus bacterianos, e que nessas condições as suas propriedades mudavam. A partir daí, especulei que o cancro, em particular, poderia ter a mesma origem - isto é, que a persistência de um genoma viral nas células infectadas por um vírus poderia alterá-las e acabar por dar origem a um cancro. O que eu queria era provar essa ideia - e, de facto, esse tem sido o trabalho de toda a minha vida.
Hoje, qual é o proporção de cancros humanos que se estima serem devidos a agentes infecciosos?
Entre 20 e 21 por cento dos cancros, a nível global, são devidos a infecções. Na Europa a proporção é mais baixa, mas em África ou Ásia é superior a 20 por cento. Em certos países de África, pode atingir os 40 por cento.
Porque o número de infecções é maior nessas regiões?
Não é só por isso; é também porque há menos vigilância, menos rastreio precoce das lesões. É obviamente por isso que o cancro do colo do útero apresenta taxas muito mais elevadas comparadas com as dos países que realizam rastreios.
Para além do cancro do colo do útero, que é a sua especialidade, quais são os outros cancros que são devidos a infecções?
Um número substancial. Por exemplo, o vírus de Epstein-Barr está associado ao linfoma de Burkitt (de facto, eu comecei por trabalhar no linfoma de Burkitt e no vírus de Epstein-Barr), a uma certa percentagem dos casos de doença de Hodgkin, a alguns linfomas que surgem quando existe uma imunossupressão. Depois temos o vírus do herpes humano de tipo 8 (HHV-8), que é responsável pelo sarcoma de Kaposi, principalmente em doentes com sida ou em pessoas que recebem transplantes; também temos, claro, os vírus das hepatites B e C, que são agentes muito importantes do cancro do fígado; temos um novo vírus do polioma humano, descoberto no ano passado, que está associado a tumores da pele, carcinomas das células de Merkel, relativamente raros mas altamente malignos - e cujos números têm estado a aumentar nos últimos anos.
Há ainda agentes que influenciam indirectamente os riscos de cancro, como o vírus da sida, devido à imunossupressão que provocam. Suspeita-se também que os retrovírus endógenos, isto é, que se integraram no nosso ADN ao longo da evolução - e que representam oito por cento do genoma -, poderão estar envolvidos em determinados cancros. Por outro lado, a bactéria Helicobacter pylori é um dos grandes agentes dos cancros do estômago; o parasita Schistosoma haematobium (o agente da bilharziose) é um agente importante dos cancros da bexiga, no Egipto em particular. E os distomas hepáticos, que são parasitas hepáticos, são uma das principais causas dos cancros das vias biliares no Nordeste da Tailândia e na China.
Por que é que estava convencido de que os cancros do colo do útero tinham de ser de origem viral e devidos, especificamente, ao vírus do papiloma humano?
Primeiro, a epidemiologia apontava para isso. O papel dos contactos sexuais neste tipo de doença tinha sido demonstrado já em 1842, em Itália. Em segundo lugar, nos anos 60 começou-se a suspeitar que o vírus do herpes de tipo 2 (HHV-2) estava envolvido nestes cancros. Entretanto, nós tínhamos mostrado, já naquela altura, que o vírus de Epstein-Barr estava presente nas células dos linfomas de Burkitt e em cancros nasofaríngeos que não produziam partículas virais, ou seja, tínhamos mostrado, pela primeira vez, que existiam vírus no estado latente no genoma humano. E pensámos que seria muito fácil encontrar o vírus do herpes nos tumores do colo do útero. Mas isso não aconteceu: não o detectámos em nenhuma das nossas biopsias.
E foi aí que pensaram que podia tratar-se de outro vírus?
Sim. Entretanto, entre finais dos anos 60 e inícios dos 70, eu tinha coligido um grande número de resultados isolados que sugeriam que, por vezes, as verrugas genitais podiam dar origem a tumores malignos. E eu próprio tinha observado, ao microscópio electrónico, que essas verrugas genitais continham partículas do vírus do papiloma. A partir daí, comecei a suspeitar que o vírus responsável pelas verrugas genitais poderia também ser o responsável pelo cancro do colo do útero. Publiquei os meus resultados - e as reacções foram por vezes hostis [ri-se]. Mas em 1979-1980 acabámos finalmente por conseguir isolar o vírus das verrugas genitais, o HPV-6, cloná-lo e caracterizá-lo. E foi então que sofremos a nossa primeira desilusão: o HPV-6 não estava presente nos cancros do colo do útero! Contudo, foi graças a esse vírus que conseguimos isolar outro vírus das verrugas genitais, o HPV-11 - e aí tivemos um pouco mais de sorte, porque este segundo vírus, sim, estava presente, embora em muito baixos níveis, nas nossas amostras de cancro. Isto sugeria que poderia haver vírus parecidos, mas não idênticos, nesses cancros. Confiei então a dois dos meus estudantes a tarefa de clonar esses vírus - e foi assim que, finalmente, descobrimos o HPV-16 e o HPV-18 . A seguir, as coisas correram bem.
Estas são as duas estirpes mais perigosas do vírus em termos de cancro do colo do útero.
Sabemos hoje que o HPV-16 está presente em mais de 50 por cento dos cancros do colo do útero e o HPV-18 em pouco menos de 20 por cento. Portanto, entre os dois são responsáveis por quase 70 por cento dos cancros do colo do útero.
Foi a primeira vez que se provou, do ponto de vista biológico, que um vírus era causador de um cancro humano?
Não foi realmente a primeira vez, porque o vírus de Epstein-Barr já tinha sido descoberto graças à microscopia electrónica em 1965 (como já disse, nós próprios tínhamos trabalhado durante uns tempos na demonstração da sua presença nas células tumorais). E no caso do vírus da hepatite B havia já no início dos anos 80 dados epidemiológicos muito sólidos sobre o seu papel nos cancros hepáticos. Digamos que é o único cancro para o qual há todo um conjunto de resultados que vai da biologia molecular até à epidemiologia - e agora até à prevenção.
Disse que os seus resultados nem sempre foram bem recebidos - e que não encontraram logo as estirpes do vírus responsáveis pelo cancro do colo do útero. Houve alturas em que pensou em desistir?
Não. Tinha a profunda convicção de estar no caminho certo. Nunca pensei em desistir, porque quanto mais trabalhava no tema e quanto mais estudava a literatura sobre o cancro e o vírus do papiloma, mais convencido ficava de que tinha razão. Nunca duvidei.
Portanto, a descoberta essencial foi feita nos início dos anos 80. Depois, encontraram outras estirpes de HPV.
Sim, a descoberta essencial foi naquela altura, quando isolámos esses dois tipos de vírus, mas hoje já foram sequenciados 115.
Mas se já eram conhecidos os dois principais tipos de vírus responsáveis, por que é a vacina não foi desenvolvida mais cedo?
É uma boa pergunta, porque em 1984 contactei uma série de laboratórios farmacêuticos para lhes propor que juntássemos esforços e desenvolvêssemos uma vacina - e até contactei uma empresa alemã, a Behring, fabricante de vacinas e nomeadamente da gripe. O director mostrou-se bastante interessado e concordou em desenvolver uma colaboração connosco. Começámos a trabalhar, mas ao mesmo tempo eles fizeram um estudo de mercado para avaliar se uma tal vacina se iria vender - e os resultados foram negativos. Não havia mercado, concluíram erradamente - em parte devido ao cepticismo dos ginecologistas quanto ao papel do vírus.
Houve também outros dados que tiveram a sua importância, mas desses só vim a saber recentemente, através de um dos directores daquela empresa. Acontece que procuraram anticorpos contra o HPV nas pessoas e concluíram que todas tinham anticorpos contra o vírus - e que, portanto, não fazia sentido imunizá-las, uma vez que já tinham sido infectadas. Enganaram-se aí também: não sei como fizeram para concluir que toda a gente era positiva para o vírus, porque isso é simplesmente falso. Mas o resultado foi que o financiamento do nosso programa foi imediatamente cancelado. Foi um período muito frustrante para mim, confesso.
A seguir, outras equipas começaram a trabalhar no problema e nós fizemos um acordo com uma empresa norte-americana, a MedImmune, e começámos a desenvolver uma vacina. Mas perdemos, na minha opinião, entre quatro e cinco anos. Apesar de tudo, a vacina acabou, como se sabe, por ser comercializada. Houve alguns avanços que facilitaram o seu desenvolvimento, como por exemplo a produção de partículas de tipo viral - ou seja, invólucros vazios do vírus - por Ian Frazier na Austrália e por outros nos EUA. A minha equipa não foi a primeira neste aspecto, mas claro que fico muito satisfeito pelo facto de a vacina estar disponível e de ser bastante eficaz.
Acha que todas as raparigas deveriam ser vacinadas contra o HPV? E as mulheres mais velhas?
Não faz muito sentido propor a vacina às mulheres que já tiveram vários parceiros sexuais, porque a maioria dessas mulheres já foi infectada pelo vírus. Em muitos casos, o organismo liberta-se da infecção - e apenas cerca de um por cento das mulheres infectadas nos países desenvolvidos desenvolvem cancro do colo do útero (nos países mais pobres, a situação é diferente). A vacina apenas tem um efeito preventivo, não é terapêutica, e por essa razão o melhor é aplicá-la a raparigas e rapazes novos, antes do início da actividade sexual.
Raparigas e rapazes?
É a minha forte convicção, sim. Sei que muitos dos meus colegas não concordam comigo, mas também é importante vacinar os rapazes. Primeiro, porque transmitem o vírus às suas parceiras. Em segundo lugar, porque os mesmos vírus estão presentes nos cancros anais, que são mais frequentes nos homens do que nas mulheres - e também nos cancros orofaríngeos, cerca de um quarto a um terço dos quais contêm o mesmo tipo de vírus (e que mais uma vez, são mais frequentes nos homens do que nas mulheres). Por último, as verrugas genitais são uma doença séria e muito desagradável para ambos os sexos. Tudo isto são boas razões para vacinar rapazes e raparigas. Mas os responsáveis dos seguros de saúde não gostam muito da ideia...
Nas pessoas mais velhas, não seria possível determinar se estão ou não infectadas pelo HPV e vacinar as que não o estiverem?
É muito difícil detectar a infecção. As técnicas não são suficientemente sensíveis - e podem dar resultados negativos, apesar de a pessoa ter sido infectada. Não acho que a vacinação faça muito sentido nas pessoas mais velhas. Para estas pessoas, é essencial continuar a fazer o rastreio através do teste de Papanicolaou.
Segundo um estudo recente, 70 por cento de todos os cancros (pelo menos nos homens) seriam devidos ao tabaco. Como é que se articulam os factores de risco ambientais com os factores infecciosos em relação ao cancro em geral?
Existe uma interacção muito forte entre vírus e factores ambientais e, embora duvide dos resultados desse estudo, sabe-se que fumar faz claramente aumentar - duplica - o risco de cancro do colo do útero nas mulheres infectadas pelo vírus do papiloma. O tabagismo facilita o aparecimento de tumores malignos, a transformação maligna das células infectadas pelo vírus.
Existe de facto um certo mal-entendido na imprensa e também no público - e até entre muitos cientistas. Na realidade, as infecções virais nunca conseguiriam provocar cancro na ausência de alterações das células que integraram o ADN do vírus. Por outras palavras, é necessário que se verifiquem também alterações ao nível dos próprios genes das células para produzir cancro. E são os chamados "factores ambientais" que provocam este tipo de alterações nos genes celulares.
Há também leucemias que são provocadas por vírus?
Há uma forma de leucemia de origem viral: a leucemia de células T do adulto, nas regiões costeiras do Sul do Japão. Mas, infelizmente, ainda não foi possível associar as outras leucemias a infecções - embora o problema me pareça muito interessante. Em particular, existem alguns dados que sugerem que as leucemias infantis, em particular, têm alguma coisa a ver com as infecções. Aliás, estamos actualmente a trabalhar nisso.
Pensa que outros cancros acabarão por ser associados a processos infecciosos?
O meu sentimento é que, mesmo naqueles cancros para os quais já foram identificados uma série de grandes factores de risco genéticos, como os cancros da mama, por exemplo, é muito provável que um agente infeccioso também esteja envolvido e que desempenhe, por exemplo, um papel desencadeador, de "gatilho" do cancro. Precisamos de identificar esses agentes infecciosos, o que não é nada fácil - mas vale a pena tentar.
Acha que poderá um dia ser descoberto um mecanismo único, que todos os vírus utilizam para desactivar uma a uma as defesas antitumores das células? E que então será possível imunizar as pessoas contra os cancros de origem viral graças a uma única vacina? Ou vai ser preciso desenvolver uma vacina para cada agente infeccioso, para cada tipo de cancro?
Não me parece possível desenvolver uma única vacina contra todos, porque os mecanismos são diferentes em cada caso. Um dia, vamos provavelmente ter um cocktail de vacinas, pelo menos contra algumas infecções responsáveis por cancros. Para outros agentes infecciosos, como os vírus da sida ou da hepatite C, pode não ser possível desenvolver vacinas.

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