A Mulher sem Cabeça

Deve ser o filme de Lucrécia Martel que mais brilha em, chamemos-lhe, "inteligência conceptual". Filme sobre "o que não se viu", ou mais exactamente sobre "o que não se ousou ver", sobre algo que, à mingua de "objectivação", ficou a pairar no espírito da protagonista como uma culpa nebulosa, fundada apenas na sua própria possibilidade (a possibilidade de alguma coisa ter acontecido, ou seja, de alguma coisa ter ficado por ver), "A Mulher sem Cabeça" não só resiste ferreamente a revelar seja o que for - o que esta escondido fica escondido, não se esvaziam piscinas nem se revolve a terra do jardim, o "recalcado" não se confirma pelo regresso - como sistematicamente limita o acesso do espectador à plena visão (toda a planificação, da cabeça "cortada" pelo enquadramento na espécie de gag que antecede o genérico ao "flou" dos planos finais, nega conscientemente o desejo de ver, de ver na integra e de ver com nitidez).


Um universo a ribombar em incerteza e em ausência de respostas, Hitchcock, Bunuel, o "Blow Up" de Antonioni, andam pela vizinhança (como andam, eventualmente, ecos mais relacionados com a historia argentina recente e com a "metáfora social"). Mas é quando nos lembramos deles que melhor percebemos como falta a "A Mulher sem Cabeça" a desenvoltura para transgredir o seu conceito, para ocupar a cabeça do espectador com outra coisa que não seja o ronronar monotono do reconhecimento dos sinais da inteligência do filme. Uma outra relação com as personagens, talvez, mais feroz ou mais compassiva, no mínimo não tão aparentemente desinteressada como aqui. Talvez.

Seja como for, já era assim no "Pântano" e na "Menina Santa": Lucrecia Martel parece que é uma cabeça sem mulher, e os grandes entusiasmos pedem, naturalmente, um corpo inteiro.

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