Um culto de milhões

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Os Depeche Mode são sobreviventes das crises, das tendências, das mudanças pessoais. Continuam a banda de culto mais popular do planeta. "Sounds Of The Universe" reafirma-o.

Tinham 18 anos quando começaram. Trinta anos depois, quando se preparam para editar o 12º álbum de originais - "Sounds Of The Universe" - continuam com o perfil de grupo de culto mais popular do planeta, capaz de encarnar o papel de super-banda rock de estádio ou de actuar ao lado das novas gerações electrónicas que os adoptaram como modelo a seguir.
Zangas, separações, crises, a chegada de novos competidores e a renovação do modelo de negócio da indústria parecem não ter abalado Dave Gahan, voz, Martin Gore, multi-instrumentista e voz, e Andrew Fletcher, teclista. O novo registo contém até algumas das suas canções mais aliciantes, provando que se reencontraram criativamente. Em Maio regressam às digressões - estarão a 11 de Julho, no Estádio do Bessa, Porto, no Festival Super Bock Super Rock. Há semanas fomos ao encontro de Andrew Fletcher, aquele que é tido como o elemento que gere os estados de alma do trio. 

É muitas vezes descrito como o elemento que equilibra o grupo, entre Dave Gahan e Martin Gore. É uma imagem que rejeita ou faz sentido?

Eles são crescidos, não precisam que lhes diga o que fazer, mas é verdade que se fôssemos um duo não estaríamos agora aqui. Quando se tem tantos anos de história como nós é natural que existam conflitos e momentos de dúvida. Felizmente conseguimos ultrapassar isso.

Com trinta anos de carreira, a espontaneidade ainda é possível ou, nesta fase, cada um limita-se a desempenhar o papel que é esperado no contexto do grupo?

Num grupo como este as coisas tendem a ser mais espontâneas do que se possa imaginar. Claro que existe organização e cada um sabe o que fazer, mas existe espaço de negociação. É incrível o que aconteceu com o Dave nos últimos álbuns, começando a ganhar confiança para compor, depois de ter percebido, a solo, que era capaz de o fazer. Conhecemo-nos bem. Cada um sabe das idiossincrasias dos outros e isso é vivido com maturidade. O Dave e o Martin sabem exactamente o que gosto e não gosto de fazer.

O que é que não gosta de fazer?

Não gosto de entrevistas, por exemplo...[risos]. Não é que não goste, mas a promoção é a parte pior desta actividade. Alguns músicos adoram falar sobre si próprios. Não é o meu caso. Depois também acho difícil acabar um disco e, logo a seguir, falar sobre ele. Às vezes é necessário distanciamento.

Há dias Dave Gahan disse que este tinha sido um dos discos mais fáceis de concretizar. Concorda?

Sem dúvida. Estamos numa fase em que as coisas tendem a correr com naturalidade. Cada um de nós tem outros projectos, o Dave e o Martin com discos a solo e eu já tive a minha editora. Quando nos reunimos há uma vontade de criar saudável. O Martin é uma máquina de compor, escreveu imensas canções para este disco, algumas das quais ficaram de fora e vão sair numa edição limitada. Depois, no estúdio, o produtor Ben Hillier foi duro, um tirano que nos colocou em causa...[risos].

Quando procuram um produtor é isso que desejam dele?

Claro. Não nos interessa alguém que tenha uma atitude reverencial. Queremos alguém que nos conheça, claro, mas que tenha ideias próprias e saiba comunicá-las sem receio do que possamos dizer. Já somos crescidos, mas continuamos a ser os putos que vieram da classe operária e que trabalham das 9h às 5h. Ben Hillier fez-nos lembrar isso. Deu-nos um enquadramento, um modelo de trabalho, onde pudéssemos estar confortáveis. É bom ter alguém por perto com a sua visão e que, ao mesmo tempo, aceita comunicar. É pior quando temos alguém por perto que, aparentemente, está próximo de nós esteticamente, mas depois não tem ideias claras.

Quando falaram com ele a ideia era fazerem qualquer coisa que constituísse um corte com o disco anterior ou que funcionasse como continuidade?

É difícil olhar para as coisas dessa forma. Não é nossa prioridade fazer diferente. A nossa evolução tem sido gradual. É um processo natural procurar não copiar o que se fez no último álbum. Nos Depeche Mode mais do que um conceito existe um processo. Em 2007, depois de uma digressão, o Martin retirou-se durante meses e começou a compor. Ao mesmo tempo o Dave estava a fazer um disco a solo e chegou a pensar em fazer uma digressão, mas recuou. A partir daí era óbvio o que iria acontecer porque estávamos ansiosos por nos voltarmos a reunir.

Vive em Londres, Martin Gore em Santa Bárbara, Dave Gahan em Nova Iorque. Quando não estão em estúdio ou em digressão comunicam regularmente?

Não. Sempre que lançamos um álbum passamos dois anos juntos. É por isso óptimo guardar distância depois do final dos concertos. Temos tendência a ver-nos como uma família - como irmãos - e muitas famílias estão espalhadas pelo mundo. Falo muito com o Martin porque as nossas famílias são chegadas e envio emails, ocasionalmente, ao Dave. Mas é importante quebrar com a rotina quando se esteve tanto tempo com aqueles dois.

Como é que descreveria a sua rotina diária na cidade de Londres?

Tenho uma vida normal. Acordo, levanto-me, dirijo-me a um campo de futebol perto de minha casa e jogo à bola, pela manhã. Depois, sento-me ao computador ou vou ao ginásio. Vou ao pub ao final da tarde com os amigos. Regresso a casa e vou para a cama. É tranquilo. 

Há quatro anos Martin Gore disse-nos que também jogava futebol. É para manterem a forma nas digressões?

Gostamos muito de futebol. Sou do clube [Chelsea] do José [Mourinho]. É um herói em casa, especialmente junto da minha esposa... Desconfio que o acha mais atraente que a mim...[risos].

Voltando ao álbum. O single de lançamento, "Wrong", é uma surpresa para muita gente, porque tem um envolvimento sónico diferente e o videoclip também o é.

Era essa a ideia. Queríamos que a canção e o vídeo tivessem impacto imediato. É como marcar uma posição e dizer: "os Depeche Mode estão de regresso". Sentimos que essa canção tinha essa estranheza e familiaridade que permitia esse efeito.

Os U2 utilizaram a mesma estratégia quando escolheram para single de avanço do seu álbum um dos temas mais enérgicos que já alguma vez fizeram.

Sim, copiaram a nossa estratégia de certeza...[risos].

O fotógrafo e realizador Anton Corbijn foi importante na definição da imagem dos U2 e o mesmo aconteceu com vocês. Pensam muito na imagem que querem projectar?

Pensamos na música. No resto, tivemos sorte em ter uma longa associação com Anton Corbijn, que teve o mérito de nos transformar em banda "cool". Às vezes faz-nos vestir roupas bizarras, mas sabemos que se for ele a fotografar ou a filmar vai dar certo. É relaxante, não termos que nos preocupar com  essas coisas.

Curiosamente, o vídeo de "Wrong", não foi feito por ele.

Anda super-ocupado, não estava disponível, e escolhemos Patrick Daughters. O Dave viu um vídeo dele para os Liars que o deixou maravilhado e pareceu-nos que era uma oportunidade para cortar com o passado e mostrar outras facetas. Já nos perguntaram se o facto de quase não aparecermos no vídeo nos incomoda. Não, isso já acontecia em muitos vídeos com o Anton. Damos total liberdade artística com quem escolhemos colaborar.

Ao lado dos U2 são a última banda dos anos 80 que continua a ter enorme sucesso global. Nos espectáculos, têm consciência dessa renovação geracional?

Sim. É interessante ver que entre as pessoas que gostam de música tecno continuamos a ser populares. Os concertos estão cheios de pessoas das mais diversas idades e é bom ver essa renovação. Somos hoje mais populares do que quando lançamos "Violator" (1990), por exemplo. É um fenómeno de acumulação.

A cultura pop tem quase 60 anos, mas continuamos a olhá-la como se os seus agentes - e o público - tivessem sempre 20, quando realidade é mais complexa.

Concordo. É como se os modelos com que crescemos estivessem desenquadrados com a realidade. E estão. A Radio 1, em Inglaterra, não passa Depeche Mode, argumentando que somos velhos demais. A Radio 2 não passa "Wrong", argumentando que é muito progressivo. Para uns somos velhos, para outros demasiado progressivos...[risos]. É frustrante, principalmente quando se fala das duas maiores rádios inglesas.

Como é que estão a encarar o momento conturbado da indústria? Parecem ter cada vez mais seguidores, mas também devem vender menos discos. Ou um grupo da vossa dimensão não sente a recessão da mesma forma?

Temos sorte. Os nossos três últimos discos venderam o mesmo. É surpreendente, porque a nossa música é descarregada na internet. A única explicação é que há muito mais pessoas a interessar-se. Vamos ver o que acontece com este álbum. As pessoas querem música, mas querem algo mais - canções com que se possam identificar e temos isso.

Voltam a ter canções onde a dimensão espiritual irrompe, como "Peace". Sendo o único que não escreve canções, revê-se nas letras da mesma forma?

Sim, esse elemento é algo que partilhamos e sempre esteve presente na nossa música, daí a influência do gospel e dos blues, mesmo quando estamos a falar de canções electrónicas. Haverá sempre qualquer coisa de negro nas nossas canções. Tem a ver com a nossa interacção e com a forma como vemos o mundo.

São especialistas em títulos de álbuns ambiciosos, como "Music For The Masses" (1987) ou "Songs of Faith and Devotion" (1993). "Sounds Of The Universe" vai pelo mesmo caminho. Ainda sentem esse apelo de criar slogans tão absolutistas?

É um título arrogante, mas deve ser encarado com humor. "Music For The Masses" era mais irónico. O título foi uma ideia do Martin. Um dia passou por uma loja, em Londres, com esse nome e veio-nos com essa ideia. Pareceu-nos bem, existem algumas canções que remetem para esse título. Mas entendo o que quer dizer. Acho que nunca perderemos essa coisa de sermos rapazolas que querem conquistar o mundo.

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