A camisa às bolinhas de Marcelo Caetano

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Na sua biografia de Caetano, a jornalista Manuela Goucha Soares descobriu um homem brilhante, mas encurralado no seu sentido de obediência à hierarquia que não foi capaz de modernizar o país

Manuela Goucha Soares folheia o seu livro até encontrar a fotografia que considera mais reveladora: Marcelo Caetano com uma camisa às bolinhas. Vem no último capítulo e data de 1980, poucos dias antes da sua morte, no Rio de Janeiro. Em Portugal, Marcelo nunca vestiu uma camisa como aquela. "Seria impensável. Nunca usou nada parecido", diz a sua biógrafa. "Para mim, esta camisa é simbólica".

A vida do ex-presidente do Conselho no Brasil, depois da sua partida forçada, em Abril de 1974, foi uma das surpresas da jornalista na investigação que realizou para "Marcelo Caetano, O Homem que Perdeu a Fé - A Biografia Completa" (Esfera dos Livros). Ao contrário do que se pensa, "não foi um exílio desgraçado, deprimido. Ele foi bem acolhido, integrou-se, trabalhou, teve uma vida confortável em termos financeiros. E uma pessoa para se manter produtiva como ele se manteve, para dar conferências, tinha de ter algum equilíbrio. E já não era um jovem. Foi um sobrevivente".

No Brasil, Marcelo libertou uma parte de si que durante toda a vida mantivera prisioneira do dever. "É a sua fase mais distentida. Deixa de sentir o peso da responsabilidade. Já tinha muito poucas pessoas de quem cuidar. E aqueles que o rodeavam só esperavam dele que fosse professor e conferencista. Mais nada".
Essa faceta, que os portugueses nunca lhe conheceram, é mais do que uma curiosidade biográfica: mostra que Marcelo foi uma personalidade reprimida e pode explicar muito do seu comportamento enquanto colaborador de Salazar e, desde 1968, como líder de um regime obsoleto que não conseguiu transformar.

Lealdade cega

Entusiasta, desde cedo, das ideias do Integralismo Lusitano, desenvolvidas nas revistas Nação Portuguesa, depois na Ordem Nova e pelo filósofo António Sardinha, Marcelo foi um desses jovens "anti-modernos, anti-liberais, anti-democráticos, anti-bolchevistas e anti-burgueses" que apoiaram o golpe de 28 de Maio de 1926. A Revolução Nacional e depois o Estado Novo eram vistos como o início de uma era de ordem e progresso, depois do instável período republicano.

Caetano foi, desde a juventude, um homem do Estado Novo, de uma forma tão apaixonada e dogmática que, quando, mais tarde, os seus ideais foram traídos, não conseguiu manter o sentido crítico que seria consentâneo com a sua estatura intelectual. E mesmo nos momentos em que percebeu que era necessário tomar uma atitude contra o regime, foi impedido pela sua lealdade cega a Salazar.

"Ele acreditou no modelo do Estado Novo como única forma de salvar o país. E essa crença sobrepôs-se sempre às dúvidas que foi tendo", explica Goucha Soares. "Em certos momentos, pode ter pensado que era do interesse do país que ele se opusesse a Salazar. Mas o seu dever de lealdade era mais forte. Isso tinha a ver também com a educação, a maneira de pensar de certos grupos daquela geração, onde a fidelidade pessoal, a lealdade e o respeito pelas hierarquias eram fundamentais".

A contradição entre estes princípios e a própria inteligência política de Marcelo foi evidente em 1951. Com a morte do Presidente Óscar Carmona, surgiu, entre várias figuras do regime, a ideia de fazer Salazar candidatar-se à chefia do Estado, assumindo Marcelo as funções de Primeiro-Ministro. O ditador hesitou, chegando a admitir a hipótese de restaurar a monarquia. Marcelo, que sempre defendera o ideal monárquico, mudou de posição, disponibilizando-se para garantir a chefia Governo, se Salazar assumisse a do Estado. "Nessa altura, ele teve realmente a ambição de chefiar o Governo. E teria provavelmente um núcleo de apoio para isso. Ainda insistiu com Salazar para que ele se candidatasse à Presidência da República... mas entendia que deveria ser Salazar a tomar a iniciativa, e ele nunca a tomou".

Craveiro Lopes seria apontado como candidato à Presidência e Marcelo, que era presidente da Câmara Corporativa, foi nomeado ministro da Presidência. Tentou recusar o convite, mas acabou por não ter coragem de dizer "Não" a Salazar. E com toda essa docilidade ter-se-á perdido a única oportunidade de modernizar o regime. Caetano tinha 44 anos, prestígio como jurista e ideias para o país e para uma descentralização do sistema colonial. Ainda não tinha começado a guerra em África e Portugal não estava tão isolado internacionalmente.

Quando teve oportunidade de agir, substituindo Salazar, em 1968, já era demasiado tarde. O regime estava num beco sem saída e as próprias vontade e determinação de Caetano tinham amolecido. Ainda teve um impulso de modernização do país e um projecto de longo prazo para a autodeterminação das províncias ultramarinas. Mas já ninguém podia esperar. A Primavera Marcelista foi uma desilusão e um fracasso.

O efeito de almofada

A abertura económica e política que ocorreu nesse período serviu no entanto para fazer emergir uma série de ideias e de pessoas que assumiriam, depois da Revolução, a defesa de posições democráticas moderadas e que impediriam a radicalização absoluta do regime. "É possível admitir a hipótese de o 25 de Abril ter sido uma revolução tão tranquila por causa dessa 'almofada'. As eleições de 1969 já tinham sido diferentes, com cartazes da CEUD [Comissão Eleitoral de Unidade Democrática) e da CDE (Comissão Democrática Eleitoral]... Se tivéssemos passado directamente do Salazar para o novo regime, tudo poderia ter sido muito mais violento".

Mas apesar desse possível "efeito de almofada" da Primavera Marcelista, a verdade é que o sucessor de Salazar, apesar de ser um homem mais moderno, mais humano, mais viajado e mais lúcido, não conseguiu fazer evoluir o regime, democratizando-o, nem resolver o problema colonial. Esse é o grande enigma da personagem.

"Ele tinha esse espírito de obediência à hierarquia", explica Manuela Goucha Soares. Quando António de Spínola escreveu o seu livro "Portugal e o Futuro", Caetano foi apresentar a sua demissão ao Presidente, Américo Thomaz. Mas este recusou-a e aquele acatou a decisão, com o mesmo espírito de obediência hierárquica que o faria, mais tarde, em 1974, aceitar render-se, não aos capitães de Abril, mas ao general Spínola.

Esta disciplina reverencial, coexistindo com as suas abertura humana e extrema competência jurídica, tornaram a vida de Caetano plena de contradições. "Ele gostava de ser professor. Mas tinha ao mesmo tempo uma relação complicada com a política: tenta sempre recusar todos os cargos, mas acaba por aceitar. Por sentido do dever, mas também porque não resistia ao apelo do exercício do poder".
Em várias ocasiões, no entanto, sentiu-se indignado com atitudes ou posições do Governo. Foi o caso das intervenções policiais nos momentos de contestação estudantil. "Como professor, tem o princípio de que a polícia não tem nada que ir à Universidade. Como jurista, tem o princípio de que é preciso respeitar a legalidade. E depois tudo aquilo entra em zona de choque com um regime que nem sequer respeita a legalidade".

Para a biógrafa, Marcelo suportava estas contradições porque era "um homem compartimentado". Mas não deixava de as viver "com enormes tensões". Mais fortes quando o choque de valores ocorria na esfera da sua vida pessoal. Quando, por exemplo, alguém que admirava era preso pela polícia política. Alguém do seu círculo familiar ou de amizades, como aconteceu várias vezes. Amigos seus, ou pessoas que respeitava intelectualmente, pertenceram à oposição. Tratava por "tu" Abranches Ferrão, que foi advogado de Humberto Delgado; o melhor amigo do seu filho Zé Maria, Pedro Ramos de Almeida, ingressara no MUD Juvenil e depois no PCP; o sogro, João de Barros, pai de Teresa e proeminente político da Primeira República, foi toda a vida merecedor da admiração de Marcelo.

Complexo de culpa

Além de das tensões e decepções, que levariam o antigo aspirante à carreira sacerdotal a perder mais tarde a fé católica, terá sido ainda Teresa e a sua doença psiquiátrica a "quebrar" Marcelo.

Após muitos anos de neurose incurável, Teresa Barros Caetano foi submetida a uma leucotomia, por decisão do marido, aconselhado por uma junta médica de grande prestígio científico. A leucotomia era uma técnica cirúrgica desenvolvida pelo Nobel português Egas Moniz, segundo o qual a eliminação de uma determinada zona do cérebro extinguiria os sintomas da doença mental. A curto prazo, teresa melhorou, de facto. Mas morreu pouco depois, devido ao envelhecimento rápido causado pela operação.

Marcelo "deve ter ficado com um sentimento de culpa", pensa Goucha Soares. "Ele unca disse isto a ninguém", mas garantiu a vários amigos que nunca voltaria a casar. "Foram 15 anos muito difíceis da vida dele. São muito importantes para compreender a sua personalidade".

Várias fontes próximas entrevistadas para o livro disseram à jornalista que foi a morte de Teresa que "quebrou" Marcelo.

"Mas não concordo que ele tenha perdido a razão de viver". A prova é a sua recuperação profissional e pessoal, nos tempos do exílio brasileiro. Aí, nunca perdoou o que lhe fizeram no seu país, e nunca aderiu ao novo regime. Mas também não fez nada para o derrubar ou criar algum movimento saudosista. "Percebeu que aquilo já não fazia sentido, que era um tempo que tinha acabado". E viveu intensamente mais seis anos, como se lhe tivessem tirado um peso de cima.

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