Frederico Gil, quando deu nas vistas foi a sério

Na escola, tinha média de 14 valores
Cada época custa-lhe entre 75 e 100 mil euros
No futebol é benfiquista, na Playstation roda o Golf PGA Tour

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Ainda jovem, o melhor tenista português debateu-se com um tumor benigno num joelho Rui Gaudêncio

Não foi nenhum talento precoce, nunca chamou a atenção na adolescência, nem mesmo nos primeiros anos no circuito profissional obteve resultados que augurassem um futuro brilhante. Mas Frederico Gil sempre acreditou que podia ir mais longe e a perseverança foi premiada, na semana passada, com o actual 83.º lugar do ranking mundial [no fim de Março, ocupava já o 74.º lugar], que lhe dá o estatuto de melhor tenista português de sempre. O trabalho contínuo e a enorme determinação em alcançar os seus objectivos são o seu segredo, que foi bem guardado durante anos pela sua família.

"O Frederico sempre foi uma criança muito vocacionada para o desporto e o ténis surgiu porque temos um campo na casa de férias e ele quis imitar os pais e ia para dentro do campo com uma raqueta. Começou a jogar, a entusiasmar-se com aquilo, mas nada de relevante, nunca ganhou nada de jeito, um torneiozinho aos sete anos e pouco mais, mas gostava de competir", conta o pai do atleta nascido em Lisboa, a 24 de Março de 1985.

Na terça-feira passada, Frederico Gil interrompeu a preparação para o próximo torneio para uma conversa com os jornalistas. E reconheceu que "nem há um ano, nem há duas semanas" imaginava estar tão bem classificado.

Para o pai, Rui Gil, houve dois episódios que marcaram a vida do filho. "Aos 10, 11 anos, teve um problema, um osteocondroma [tumor benigno, desenvolvido na superfície de um osso longo, na vizinhança de uma cartilagem de conjugação] no joelho, uma coisa complicadíssima, que na altura se pensou que fosse maligna." Durante a inevitável intervenção cirúrgica, o médico retirou uma parte significativa do fémur. As análises posteriores revelaram que era benigno, mas o médico disse logo que, de desporto, só natação, cartas... "Ténis, nem pensar nisso, e ele ficou muito abatido, porque sempre quis fazer desporto."

Mas ao fim de um ano e meio Frederico ficou completamente restabelecido daquilo, quase um milagre. Como estava em fase de crescimento, a cartilagem preencheu aquele espaço do osso e calcificou. "Foi uma experiência que o marcou muito - o facto de, de um dia para o outro, as coisas se poderem alterar radicalmente. Deu-lhe uma maior tenacidade, maior agressividade em relação à situação de poder ter uma coisa e depois não ter nada", explica o pai Gil. Frederico pôde voltar a jogar e começou a treinar-se com mais regularidade.

O segundo episódio registou-se em meados de 1998, quando a família Gil - pai (Rui), mãe (Carlota), Frederico e a irmã mais nova (Ana) - foi convidada a albergar em sua casa, no Banzão (Sintra), uma equipa de jovens tenistas espanhóis que vinham fazer um circuito satélite (torneios do escalão mais baixo do circuito profissional), porque a Expo lotou os hotéis. Entre esses jogadores estavam Juan Carlos Ferrero (n.º 1 mundial em Setembro de 2003) e Santiago Ventura (65.º no ano passado), ambos então com 18 anos e orientados pelo treinador António Cascales. "Não o conhecia de lado nenhum, foi apresentado na altura - estávamos completamente alheados da modalidade. E foi durante esses dias que o Frederico bebeu aquilo tudo: viu como eles treinavam, o que comiam, todo o rigor", lembra Rui Gil.

Skype e Playstation

Como agradecimento por essa hospitalidade, Cascales convidou Frederico a passar uns meses na sua Academia, perto de Valência. E no Verão Frederico viveu três meses num regime de internato. "Pensei que, quando ele regressasse, nunca mais iria querer ser jogador de ténis. Pelo contrário, disse-me: 'Pai, é isto exactamente o que eu quero. Aquilo ali é a sério, têm na porta do frigorífico um horário com tudo o que têm para fazer, o que comer...'", recorda Rui Gil antes de frisar: "Porque desde miúdo que o Frederico sempre precisou de ter alguma coisa para fazer. Se tivesse um programa em branco, ficava em pânico."

A ida para o Centro Nacional de Treino (CNT) - no Estádio Nacional, onde a Federação Portuguesa de Ténis reuniu alguns dos melhores jovens tenistas portugueses - tornou a ambição de Frederico mais séria. Os pais deram todo o apoio, apesar da descrença em relação a uma carreira de sucesso como tenista profissional. "Nunca pensei que houvesse ali algum futuro. A minha perspectiva foi a de ele fazer o 12.º ano, com a ideia de 'vamos ver o que isto dá'. Fizemos tudo para compatibilizar os horários da escola com os treinos. No 10.º ano, mudou para a escola pública, em Colares, e aí foi mais fácil conciliar com os treinos, porque tinha um horário menos carregado, podia faltar a algumas aulas, a alguns exames, até porque tinha um estatuto especial por estar no CNT."

Frederico Gil sempre foi um bom aluno, com uma média de 14 valores, apesar das exigências competitivas. "A partir dos 15 anos, foi-se tornando complicado financeiramente, porque ele fez durante três anos o circuito mundial de juniores, com viagens para todo o lado, às vezes com treinador, às vezes sozinho. Cheguei a financiar a viagem de toda a selecção de juniores que foi disputar a primeira fase em Espanha. Não com a perspectiva de poder vir a ter algum retorno, mais porque era algo que lhe dava muito prazer e felizmente eu conseguia suportar isso, ainda que com alguns sacrifícios, porque trabalho numa companhia de seguros, a minha mulher é professora de liceu e, nalguns momentos, tivemos de vender coisas pessoais e de família, nomeadamente terrenos, para financiar a actividade. Houve meses que despendi cinco mil euros - cada época fica em 75-100 mil euros. Mas, como todos os pais, se temos possibilidades, fazemos o que podemos pelos nossos filhos", continua o pai de Frederico.

Os resultados não eram muito famosos e o próprio treinador, João Cunha e Silva, com quem Frederico Gil começou a trabalhar em Agosto de 2002, não estava muito entusiasmado, pois era preciso melhorar muito em muitas áreas. "Mas passados dois anos o João começou a olhar com outros olhos e a pensar que tinha matéria-prima para ir mais além. Isso ajudou-me a sentir que ele [Frederico] poderia conseguir realizar um sonho", completa Rui Gil.

Ao tornar-se mais forte fisicamente, Frederico Gil foi revelando, talvez, a sua característica mais importante. "Ele tem a capacidade de se manter concentrado durante muito tempo, muito acima da média", diz Cunha e Silva, que o acompanha na maioria das viagens ao estrangeiro. "Quando está em competição, é algo fechado, tenta mentalizar-se na sua missão. Não é muito extrovertido, mas quando vai ganhando confiança, vai-se abrindo."

Durante as cerca de 25 semanas que passa fora de Portugal, Frederico Gil mantém o contacto com a família através do telefone, seja em chamadas, sms ou e-mail. "Nem todos os dias falamos, para minimizar custos ao máximo, mas às vezes também por causa das diferenças horárias. Ainda agora, ligou-me de Joanesburgo todo contente por ter ganho, eram quatro da manhã e eu levanto-me às seis...", conta Rui Gil, que acompanhou os encontros através da Internet, junto da mulher e da filha.

No círculo familiar mais íntimo de Frederico contam-se ainda os primos direitos, José Miguel e Gonçalo Garrido, que, pontualmente, o acompanham a vários torneios. Gonçalo tem a mesma idade de Gil, que completa 24 anos dentro de um mês. Cresceram e começaram a jogar ténis juntos na casa do Banzão, onde passavam as férias. "Falamos sempre através do skype, sobre como ele se sente, o seu estado de espírito, se está confiante... e da vida privada dele. Gosta imenso do João [Cunha e Silva], mas isso já não é segredo. Claro que também fala dos encontros; se for bem perdido, admite que errou aqui e ali; se for mal perdido, demora um pouco mais a ligar. Mas passa rapidamente à frente", afirma Gonçalo, desde Janeiro a viver nos EUA. "Falamos também de negócios e economia, porque cada um de nós tem os seus pequenos investimentos."

Quando conseguem estar juntos, Frederico e Gonçalo passam muito tempo a jogar Playstation. "É um fanático da tecnologia, tem sempre a última novidade em jogos e acessórios como volantes, gadgets... É competitivo, mas não tem mau perder." Na Playstation de Frederico, o jogo do momento é o Golf PGA Tour. "Às vezes, vai com o pai para o campo e já bate umas bolas. São ambos perfeccionistas: quando se dedica a alguma coisa quer ser o melhor. Foi buscar isso ao pai e ao avô [futebolista do Benfica nos anos 40]", conta José Miguel, nove anos mais velho. Em relação ao futebol, Frederico liga mais à Champions League e à selecção do que ao Benfica. "Gosta de futebol, mas não é fanático como eu. Só gosta de ver bons jogos, e por isso eu ensino-lhe umas coisas", frisa Gonçalo.

Apoio familiar

Devido à idade, José Miguel é como um irmão mais velho. "O Frederico precisa muito da família (avós, pais, primos...), de sentir apoio familiar. Pede-me conselhos, nomeadamente quanto às relações, como conciliar namoradas com o ténis, conjugar a vida pessoal com a profissional", revela José Miguel. "É um miúdo humilde, determinado, esforçado e muito batalhador. Fora dos courts é como os outros: adora gadgets. Quando quero saber alguma coisa sobre tecnologia, falo com ele."

Os gadgets são mesmo a única extravagância de Frederico, que, desde cedo e com o desenrolar da sua carreira, se revelou muito rigoroso na contenção das despesas. "Ele herdou isso da família da mãe: é muito criterioso e poupado", resume o pai. Quando está em casa, o ténis fica à porta. "Não falamos de ténis e é isso que ele quer. Ele tem falta de contacto social, vive num círculo muito fechado e é carente destas situações normais numa família. Gosta de se pôr a par das novidades familiares, comentar a actualidade, falando de tudo, política, economia, futebol, questões sociais...", explica o pai de Frederico.

As saudades também se fazem sentir no estômago de Frederico Gil. Quando está em Portugal, são imprescindíveis as visitas a casa da avó paterna, para saborear uma boa carne assada; e a casa da avó materna, que faz uns bifes na frigideira bem a seu gosto. Outra opção: os jantares com os amigos, poucos, todos eles de infância. "Gostamos muito de ir a um restaurante na Praia das Maçãs, o Búzio", conta Gonçalo. "É o nosso restaurante de eleição."

Texto originalmente publicado no P2 de 23/02/2009
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