Um laboratório musical chamado LX Taster

Enquadrado nas actividades da iniciativa lançada em 1999, em Berlim, o LX Taster reuniu em Lisboa 50 músicos numa universidade informal e sem hierarquias. Trocaram-se experiências, criou-se música, aprendeu-
-se e ensinou-se com Bonga, Rão Kyao e Mulatu Astatke

a Ao entrar na Lx Factory, em Alcântara, recente e dinâmico centro de indústrias culturais criado num antigo complexo industrial degradado, destaca-se o colorido de um velho reservatório de água. À sombra da Ponte 25 de Abril, pintado numa estética de revolução cultural chinesa, tem destacada a seguinte frase: "Alegria no trabalho". Imaginamos que seja expressão adequada ao quotidiano da Lx Factory. Temos por certo, porém, que tem sido absolutamente certeira nestes últimos dias. Mais propriamente, desde a passada quinta-feira, dia em que se iniciou o Lx Taster 2009, organizado pela delegação local da Red Bull Music Academy, que encerra hoje o seu programa.
Durante quatro dias, o espaço de uma antiga gráfica - até ao seu encerramento, há cerca de oito anos, o PÚBLICO era ali impresso - transformou-se em laboratório musical. Cinquenta criadores (a organização chama-lhes "audioperários") interagiram entre si, trocaram sons e experiências, produziram novos temas e entregaram-se a improvisadas sessões de DJing. Nesta academia que é uma universidade informal e sem hierarquias, os jovens audioperários em início de carreira assistiram a conferências de gente com saber de História. Toda a tónica numa ideia simples: a música, sem mais e com tudo o que a rodeia.
Na sexta-feira, dia em que o P2, passe a redundância, foi provar o Taster, Rão Kyao falou da música como algo que se propaga no infinito e que nunca conseguiremos explicar devidamente - foi o humanista que nos guiou do jazz ao fado, das margens do Douro à Bollywood indiana. Depois dele, o canadiano Deadbeat, produtor que transfigurou o dub para as paisagens digitais do século XXI, dissertou sobre a técnica que conduz a visão criativa. E, por fim, Bonga, nome maior da música lusófona, contagiou os 50 audioperários como exímio contador de histórias, músico de talento e coração enormes, que ultrapassou todas as barreiras para impôr uma cultura musical (a sua, a angolana) vista como "menor" no Portugal colonial. Acabou aplaudido de pé por músicos que esperavam longos anos para nascer quando os históricos Angola 72 e Angola 74 foram editados (mas que os audioperários conhecem de trás para a frente).
A conferência do antigo recordista nacional de atletismo - nos anos 1960 e 1970, quando o conhecíamos por Barceló de Carvalho - resume na perfeição o ideal da Red Bull Music Academy. Um intercâmbio profícuo onde se cruzam gerações para estimular a criatividade do presente.
Arquitectura sonora
As conferências são apenas parte da equação. Enquanto decorrem, o ruído não chega à sala que as acolhe. Assim que terminam, o bulício torna-se permanente. Num dos três módulos-estúdio disponíveis, um guitarrista puxa pelo wah-wah da guitarra, um produtor prepara o ritmo, um MC as rimas - horas depois, sai um inspirado pedaço de nu-soul. Do outro lado, aperfeiçoa-se a paisagem sónica que dará corpo a uma batida techno e, por todo o espaço, nos seus dois pisos, há portáteis debitando som e pessoal puxando das MPC para erigir arquitecura sonora.
Neste ambiente, acontecem coisas como vermos Mulatu Astake (um dos conferencistas de ontem), lendário músico etíope que trabalhou com mitos como Duke Ellington, a acompanhar entusiasmado os audioperários que trabalham na remistura de um tema seu. Não se perde tempo. Ao final da tarde, o espaço é invadido pelo som de música nova: DJ Ride põe a rodar a remistura de Mulatu que começara a preparar horas antes.
Alex Klimovistky, nova-iorquino há muito residente em Portugal, antigo membro dos Three And a Quarter, actualmente nos Youthless, não contém o entusiasmo. Contagiado com o ambiente de colaboração e partilha, fala em criar um colectivo com todos os presentes e, minutos antes de Bonga iniciar a sua conferência, moderada, tal como a de Rão Kyao, pelo jornalista Rui Miguel Abreu (a de Deadbeat foi da responsabilidade de Emma Warren, do Guardian), anda num corrupio, guitarra em punho e acompanhado de Violet, das A.M.O.R., a ultimar o esqueleto rítmico de uma música pensada para a voz do autor de Angola 72. Isto enquanto Núcleo e Nerve se entregam a uma talentosa jam de scratch, enquanto alguém avisa Tamin, cantora de várias edições do hip hop nacional, que "aquela" canção já tem o toque soul que tão bem serve a sua voz.
Com a primeira edição realizada em 1999, em Berlim, a Red Bull Music Academy selecciona músicos de todo o mundo e de todas as áreas, reunindo-os durante duas semanas em espaços onde tudo lhes é disponibilizado: estúdios e material, figuras históricas com quem aprender, técnicos experientes para auxiliar em qualquer questão. A participação não garante qualquer diploma. Oferece uma experiência enriquecedora - ou "um paraíso para quem gosta de música", como nos dizia Violet, participante portuguesa, a par de DJ Ride ou DJ Kaspar, na Red Bull Music Academy de 2008.
A próxima edição terá lugar em Londres, em Fevereiro e Março de 2010, e o LX Taster, que conta aqui a sua segunda edição, surge como forma de a viver localmente.
Durante o dia, os músicos selecionados pelos "ouvidos" nas ruas portuguesas da Red Bull Music Academy - nomes como Maze, dos Dealema, ou DJ Ride -, criam, aprendem e ensinam. À noite, a experiência abre-se à cidade. Entre quinta e sábado, Deadbeat, Ty (o MC britânico que esteve numa das conferências da tarde de ontem), Kaspar, Vasco Fortes, Maze, Violet e DJ Ride dividiram-se em actuações e DJ sets no Minimercado e no Musicbox, em Lisboa, e no Plano B, no Porto.
A melhor analogia quanto ao impacto de uma experiência como esta está talvez no próprio edifício que acolheu esta segunda edição, aumentada e melhorada, do LX Taster. Recuperado ao longo de dois meses, integrando a imensa rotativa no espaço e com paredes e pilares alvo de intervenção pelos artistas visuais da agência Who, não se tornará peso morto quando esta tarde, após o workshop de Patrick Pulsinger, às 16h00, der por terminados os quatro dias de actividade: ali abrirá a nova Livraria Ler Devagar. Intervir no espaço e estimular a criatividade. Assim com o edifício, assim com a nova música e novas colaborações que criarão os participantes no evento.

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