Sean Riley & The Slowriders, diário de um álbum "maior"

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"Farewell", a celebrada estreia de Sean Riley & The Slowriders, tinha ambiente de madrugada e era povoado de solitárias personagens em fuga. Daí para cá algo mudou. São uma "banda gangue" à antiga e com coros, secções de cordas e um som mais pormenorizado, ambicionam gravar um álbum "maior". Sairá em Maio e o Ípsilon apanhou-os em estúdio, no final do processo

Se quiserem saber o que se passa nos bastidores da gravação do novo álbum de Sean Riley & The Slowriders, dispensem este texto e dirijam-se ao diário que a banda mantém no seu MySpace. Eis uma recomendação que nos pareceu adequada ainda antes de irrompermos estúdio dentro para recolher uma primeira impressão sobre o sucessor de "Farewell", um dos álbuns de destaque na discografia portuguesa de 2007. Esta, afinal, é uma banda que se construiu sobre deambulações narrativas, uma banda cujas canções são histórias com mitologias dentro: a de uma trágica Americana que transborda rock'n'roll e surge pintalgada de romantismo beatnick. Assim era "Farewell", álbum feito de despedidas, de um seguir em frente sem perder tempo a olhar para o que se abandonava - tudo impulsionado pelo cavalgar do órgão Hammond, pela guitarra convocando folk e country para garagens poeirentas, pela voz que cantava como se fosse ela, totalmente ela naquelas canções.

Voltemos ao início. O diário. Não é normal assistir a uma mitificação rock'n'roll em tempo real. Sean Riley & The Slowriders aproveitaram a net para o fazer, inadvertidamente, e ficámos a saber de sessões de gravação que o guitarrista Bruno Simões passou esparramado no sofá, culpa de jogos de póquer prolongados até ao dia raiar. De encontros com bizarras personagens em roulottes de bifanas, que empunham facalhões enquanto ameaçam atirar pimenta aos olhos dos clientes, de corridas contra o tempo para encontrar a harmónica que salvará uma canção (ouvimo-la e sim, aquele sopro era imprescindível), de gente a aparecer pelo estúdio, como Paulo Furtado (um dos convidados no disco) ou os membros dos Born A Lion, rock'n'rollers da Marinha Grande, enquanto Nélson Carvalho, o produtor, se queixava das dificuldades em fazer o que quer que seja com a sala repleta de pessoal efusivo.

Estas histórias, passadas entre Paço d'Arcos, nos Estúdios da Valentim de Carvalho, e o apartamento de Odivelas que serviu de centro de operações da banda (os seus membros são de Coimbra e Leiria), eram a única ponte que tínhamos para o novo álbum. Uma ponte que, de resto, fazia todo o sentido. A música do primeiro álbum de Sean Riley & The Slowriders, envolta em nevoeiro e mistério, tinha ambiente de madrugada e espírito rock'n'roll - mesmo se o rock'n'roll não se declarava com a excessividade habitual (digamos que era música de cantautor, devidamente amplificada e electrificada).

Daí para cá, algo mudou. Dizem-no as novas canções que ouvimos, confirma-o Afonso "Sean Riley" Rodrigues ao afirmar que a intenção primeira passava por gravar um "álbum maior". Ou seja, com "coros e secções de cordas, com uma série de arranjos enriquecedores que não tínhamos antes".

Uma "banda gangue" à antiga

Eis-nos então no estúdio de Paço de Arcos, quando a noite já desceu sobre a cidade. Subíramos pelos corredores e pela história dos corredores, exposta através de velhas mesas de mistura ou teclados vintage. A iluminação que pouco ilumina denuncia a actividade reduzida no edifício, àquela hora. Abre-se a pesada porta que dá entrada para o estúdio. Lá dentro, o produtor Nélson Carvalho e Pisco, o novo baterista da banda (no passado, pertenceu aos shoegazers Phase ou aos All Star Project), estão debruçados sobre a mesa de mistura. Saindo da sala de gravação, depois de fazer um take de voz, vemos Afonso Rodrigues. E espalhados pelo local, sinais exteriores de devoção à música popular urbana. Uma revista "Uncut", aberta em páginas dedicadas aos 13th Floor Elevators, e um portátil exibindo um documentário sobre JJ Cale ("uma pechincha a 5 euros na Worten aqui a lado", informa Afonso).

Sobre os botões da mesa de mistura, um pequeno cavalo de brinquedo, com sela de velho Oeste, controlando as operações. Pisco há-de dizer-nos que está ali como figura tutelar e inspiradora - a cultura musical americana concentrada num equídeo de plástico. Tira-lhe uma foto com o telemóvel e ameaça propô-la como capa do novo álbum, ainda sem título e com edição prevista para Maio, cuja gravação se aproxima do seu final - Filipe Costa e Bruno Simões estão ausentes porque o seu papel na gravação está terminado, Afonso e Pisco cuidam com Nélson dos pormenores finais.

Será um disco diferente da estreia. Como o diário ilustra, Sean Riley & The Slowriders são agora, romantizemos, uma "banda gangue" à antiga e isso teve consequências. Houve a entrada de Pisco, baterista que permitirá a Filipe Costa, que até agora acumulava as funções de teclista e percussionista, concentrar-se exclusivamente no seu instrumento base. E houve uma ideia de álbum construída de raiz, contraponto a esse "Farewell" criado a partir das canções que Afonso "Sean Riley" Rodrigues discretamente acumulara ao longo do tempo.

Brilho na escuridão

"No primeiro álbum", diz-nos, "eu e o Filipe [Costa] assumimos a opção de o termos como teclista-baterista. Nesta altura, como já sabíamos que teríamos um baterista, as canções já tinham isso em conta, tal como já tinham em conta o desejo que tinha de fazer um álbum 'maior'". Maior significa a brisa californiana que atravessa "Houses & wives", canção de uma melancolia pintada com textura de Super 8, guiada pelo stomp da bateria, pelo baixo pulsante e pelo "pretty girl, the world is going insane" ouvido algures. Maior é "Yellowstone" e a imagem que convoca de um Neil Young tocando harmónica em fervilhante "hit" garage de 1968. Maior, resumindo, é este som mais cheio e pormenorizado que irradia um brilho, digamos, clássico. Era isso que procuravam Afonso Rodrigues, Filipe Costa e Bruno Simões, os fundadores da banda. Por isso puseram de parte a ideia de gravar com Kim Fowley, mítico produtor de Los Angeles, autor de "The trip", clássico do garage rock, e personagem contra-cultural por excelência. Neste caso, a mitificação deu lugar ao pragmatismo: "Tivemos resposta positiva da parte dele, mas indo para a Califórnia, o orçamento disponível para o disco não nos permitiria conseguir o som que pretendíamos, não nos permitiria ter os músicos que queríamos que participassem", explica Afonso.

Aqui, tiveram Nélson Carvalho, no mínimo a caminho de mítico produtor português, tiveram o Faith Gospel Choir onde encontramos Selma Uamusse, dos Wray Gunn (ouvimo-lo numa canção "Springsteeneana", movida a piano e guitarra slide), tiveram Paulo Furtado, Filipa Cortesão (violinista dos Belle Chase Hotel) e Pedro Vidal (dos Blind Zero e dos Demitidos, a banda suporte de Jorge Palma). E ainda Paul Hall, percussionista dos Cornershop que tocará algures tablas indianas.

O que temos, por agora, e resumidamente é isto: um álbum cuja base foi gravada "live on tape" (ou seja, todos os músicos em conjunto em cada take) e que nasceu em 15 dias, num regime de nove horas em estúdio seguidas de bem-vinda e imprescindível descontracção rock'n'roll. "A cumplicidade que se cria em quinze dias é maior que a que terão muitos músicos com vários anos de estrada, mas que tocam juntos, arrumam as suas coisas e vão para hotéis separados". Tal rotina é para eles inconcebível.

Em "Farewell", acompanharam as movimentações de solitários em fuga de qualquer coisa. Iluminaram-lhes o caminho, mas apenas o suficiente para que lhes apercebêssemos os contornos. Agora, pelo que ouvimos, não têm contemplações. Revelam-se e revelam-nos totalmente. Pode ser que continuem envoltos em nevoeiro e mistério, mas vêem brilho na escuridão.

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