Ao alcance de todas as mãos

Passados seis anos, novas pinturas de Ângelo de Sousa

Esteve quase seis anos sem pintar. Há cerca de três semanas - a inauguração foi no sábado - ainda não existia nenhum dos quadros agora expostos nos dois espaços da galeria Quadrado Azul, no Porto.

Em 15 dias, Ângelo de Sousa (1938, Maputo), pressionado pela proximidade da exposição, decidiu regressar aos acrílicos, às telas, a um território em pousio desde 2003. Desse esforço, surgiram dois conjuntos de trabalhos, a série "Mibom", que dá título à exposição e se relaciona directamente com os desenhos realizados pelo artista para o pavimento da renovada Rua Miguel Bombarda, e um grupo de obras que, de alguma forma, dão continuidade às últimas pinturas reveladas. É como se Ângelo nunca tivesse parado - e, de facto, nunca esteve propriamente imóvel, basta pensar nos papéis e esculturas, algumas públicas, feitos nos últimos anos.

O título "Mibom", algo desconcertante, resulta da contracção do nome Miguel Bombarda. Contudo, o resultado não deixa de ter o humor muito próprio de Ângelo, uma característica que, de alguma forma, passa para os seus trabalhos.

É de desenho que se deve falar em primeiro lugar quando se aborda a dupla exposição agora proposta. Tudo começa no exterior, na rua, onde o transeunte, se optar por uma atitude algo "shoegaze" - os olhos postos no chão -, é confrontado com dezenas de "carantonhas". Os esquemáticos rostos gravados em pedra - eles reduzem-se a traços e pontos que definem os olhos, o nariz, a boca e as sobrancelhas, sendo o contorno definido pela forma quadrada das pedras onde se inscrevem - procuram tipificar uma série de expressões faciais, formando uma espécie de arquivo de possíveis estados de espírito de quem por ali anda, potencializando um inesperado efeito de espelho, até mesmo por oposição ("eu hoje não me sinto assim").

Publicado no catálogo que acompanha a exposição, há um texto no qual Ângelo explica todo processo de encomenda e realização do pavimento da Miguel Bombarda, onde são visíveis as "carantonhas". O artista, que realizou o seu trabalho "sem qualquer remuneração", dá-nos conta das dificuldades, dos atrasos e dos boatos associados a uma obra projectada em 2000 e só agora finalizada. Diz-nos: "Pela minha parte, nunca tive conhecimento, oficial ou não, do que estava a acontecer (ou ia acontecer)." A renovada artéria ficou pronta, com oito anos de atraso, para as inaugurações de 7 de Março, tal como as pinturas foram terminadas em tempo contra-relógio de modo a serem reveladas na mesma ocasião - os acrílicos foram fixados com recurso a um secador de cabelos de 1800 watts -, ficando apenas a dúvida se estas são já séries encerradas, porque elas acrescentam novos desdobramentos ao trajecto prolífero de Ângelo, restando portanto saber se vão ser continuadas.

A desmultiplicação das formas é mesmo um dos núcleos centrais do trabalho do artista. Tudo começa num traço, que depois foge por todos os lados, em infinitas possibilidades. Por isso, a obra de Ângelo parece nunca acabar, acabando por desconcertar quem a observa cuidadosamente. Se, num primeiro instante, tudo parece estar no lugar certo - e isto também é verdade - existe, contudo, um outro facto que deve ter sido em conta e que é o permanente deslocar do centro de gravidade de cada quadro, como se cada pintura sofresse sucessivas e ligeiras tonturas - provocadas por uma linha, uma cor, um espaço em branco -, mantendo o espectador num permanente estado de atenção. Há, portanto, subtis efeitos ópticos visíveis, quer num mesmo quadro, quer na relação das telas umas com as outras - por exemplo, no espaço mais antigo da galeria, fora da zona pedonal, o amarelo nunca se repete, há sempre uma variação dada pelo uso de um azul ou de um castanho por baixo, por isso é que muitas das pinturas de Ângelo são tão vibrantes, intensas.Uma leitura apenas formal reduz em demasia a forte personalidade destas obras - tudo podia ser reduzido a analogias preguiçosas, vendo-os apenas enquanto representações de cruzes ou de uma casa. As pinturas constituem antes manifestações, quer de uma rigorosa geometria, quer de um desarmante desprendimento conceptual. Puro e humorado prazer visual, os trabalhos de Ângelo. Não se vêem hesitações; encontram-se, sim, instantes em que a tinta salpicou, desfocou, gotejou, derramou, borrou mesmo. E tudo assim ficou, como marcas da rapidez de um processo - por contraste com a lentidão da renovação da rua. O artista parece estar a jogar - e aqui as peças são não só as "carantonhas" mas também algumas outras formas simples, que podem ou não desdobrar-se - sendo que a grelha presente nos trabalhos mais próximos dos desenhos visíveis no piso de Miguel Bombarda acentua a dimensão lúdica dessas telas. Tudo parece regressar a um princípio, às primeiras obras do artista, ao seu "Catálogo de Algumas Formas ao Alcance de Todas as Mãos", um desenho de 1970-71. Até porque esta dupla exposição - em cada uma é ainda incluído um espelho, memória de outras instalações - é, antes de tudo, sobre desenho, sobre o desenhar, lugar no qual tudo se inicia, na rua ou nas galerias.

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