O vento levá-lo-á

Espécie ameaçada de extinção nos seus filmes, em "Gran Torino" Clint extingue-se. Sempre a sabotar-se, Clint, incorrigível masoquista. Espalhem ao vento: é uma obra-prima.

Entreguem à brisa de Verão, que já sopra, as cinzas de Joe, Blondie, Walt Coogan, McBurney, Harry Callahan, Josey Wales, Bronco Billy ou William "Bill" Munny, estes e todos os nomes com que Clint Eastwood falou do fundo do seu coração de "dinossáurio", individualista que não reconhece o mundo que o rodeia, corpo de outro tempo, em apuros e sempre desejoso de se colocar em apuros.


Enfim, entreguem à brisa de Verão estes e outros nomes a que Clint Eastwood deu o corpo, ferozmente, fazendo dele ecrã de desadequação, raiva. Espécie sempre ameaçada de extinção, em "Gran Torino" extingue-se.

"Requiem" por si próprio, por aquilo que construiu (sempre a sabotar-se, Clint, incorrigível masoquista), este é um adeus às armas. Não por se anunciar aqui a sua última presença, aos 78 anos, como actor (esse é um daqueles "anúncios" que foi sendo espalhado, como que pelo vento, não se sabe bem vindo de onde, e nem se pode jurar pela irreversibilidade da "decisão"), mas por as coisas se darem a ver aqui a partir de uma estação terminal: é um filme em que um viúvo, um reaccionário, um veterano da guerra da Coreia zangado com a vida e com o bairro, que já não reconhece porque está infestado de "gangs", foi invadido pelos imigrantes, já ali não há "americanos" - eis Walt Kowalski/Clint Eastwood -, prepara a sua saída de cena; é um filme tomado por esse clima de antecâmara que precede a rendição final, e é desta forma que Eastwood se despede do(s) seu(s) Kowalski(s): abre o peito à auto-ironia, melhor forma de alguém se desprender do que lhe pertenceu, assume a sua exterioridade face ao mundo e àquilo em que ele se tornou (é ainda a negociação do desprendimento), e, sem ceder à nostalgia, embala a coisa com suaves cintilações. Como uma canção, como a brisa que sopra neste delapidado bairro onde o fulgor do passado, a imagem dourada que dele foi construída - é que a memória pode transformar o inferno no paraíso, e isso aconteceu aos anos 40 e 50 de Kowalski -, é já só fantasma. Mas essa "presença", chamemos-lhe assim, um cineasta como Clint consegue filmá-la. É esse o grande passo em frente de "Gran Torino", consigo levando todo o património de uma "persona" que neste filme desagua: revelar o fantasma que se intromete na imagem, que nela cintila como brisa, indo atrás dele, seguindo-o e passando, finalmente, para o "lado de lá".

(Parecerá absurda a associação, mas aqui vai, é uma associação entre dois filmes invadidos por fantasmas: se "Milk", de Gus Van Sant, mostra os anos 70 para falar do presente, que é, na verdade, o fantasma que se intromete na imagem, "Gran Torino" passeia a câmara pelo presente em ruínas para revelar o mundo que ali está desaparecido.)

Podemos, para encontrar conforto, dizer que "Gran Torino" é a história de uma aprendizagem, de uma passagem de testemunho. Que Kowalski "educa" o seu reaccionarismo e xenofobia quando se encontra mais em família com os seus vizinhos asiáticos do que com a sua própria família. E que por aqueles vai ser capaz do gesto sacrificial, redentor.

Mas por quem se sacrifica, afinal, Kowalski: pela família de adopção ou por si próprio? Quem ajuda quem? A "verdade" de todos os Kowalskis de Eastwood, o seu masoquismo, se quisermos, está na extrema fidelidade à sua natureza. A de Kowalski, e isto desde a primeira sequência, no funeral da mulher, é a de ser fantasma. Condição que ele vai cumprir. E a que Clint Eastwood, cineasta, vai ser fiel: com a personagem, com o filme, está sempre do "lado de lá", feroz, fielmente. É por isso que o plano final chega-nos como teimosa oferenda do outro mundo - servida com canção a preceito - e como cintilação de um cinema de outro mundo: aquele, dos anos 50, o clássico, que já morria quando Clint Eastwood, jovem actor, chegou a Hollywood. Como se a Kowalski pertencesse sempre a última palavra.

Espalhem ao vento: "Gran Torino" é uma obra-prima.

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