O bom, o mau e o filão

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"Watchmen", versão cinematográfica da novela gráfica de Alan Moore e Dave Gibbons, e projecto amaldiçoado durante mais de 20 anos, é a confirmação do momento de transcendência do género no cinema.


120 milhões de dólares, mais de 200 cenários, efeitos CGI, recursos slow/stop-motion, heróis mascarados e mitologia. "Watchmen - Os Guardiões" é isto, condensado em 2h41m, mas almeja ser muito mais. Baseado numa obra seminal dos "comics" emancipados sob a capa lustrosa de novela gráfica, "Watchmen"-livro nasceu num ano em que tudo mudaria no reino da BD "made in America". Em 1986, a ironia, o questionamento e a subversão das convenções do super-heroísmo arrastava consigo uma carga de transcendência: os heróis queriam-se com fissuras morais e rodeados de referentes filosóficos.

Os leitores eram convidados, muitas vezes à (força) bruta, a mergulhar em mais do que nas dicotomias bem/mal, herói/vilão. A psicologia, a ontologia e a "realpolitik" imiscuíram-se nas possibilidades do género, indo para além das máscaras, questionando-as, confrontando a noção (neo-conservadora) de impor, à margem da lei, a ordem na cidade. Quem melhor para o fazer do que vigilantes, mascarados até, não necessariamente super-heróis, que envelhecem, que cometem actos impensáveis, sem moral?

Em "Watchmen" (livro e filme) há uma irmandade de heróis travestidos que funcionam como perfis psicológicos-tipo. São analogias dos cromos dos "comics", mas constantemente questionadas. Como o Comediante, "o herói da América, mas também o segredinho sujo da América", como diz o seu intérprete no filme, Jeffrey Dean Morgan. É uma imagem distorcida dos arquétipos da BD, que consumimos sem a alegria de quem vê o Super-Homem voar.

Gajos lixados

Tudo se passa em torno de uma segunda geração de "caped crusaders" e numa realidade alternativa. Estamos em 1985, Richard Nixon é Presidente pelo quinto mandato consecutivo e o relógio do "doomsday" aquece inexoravelmente a Guerra Fria. Times Square ainda é pútrida, as Torres Gémeas ainda lá estão mas o holocausto nuclear parece inevitável com governos irredutíveis a gerir a crise com políticas do medo.
Neste cenário, os heróis "respondem à questão: 'E se houvesse vigilantes?'; 'Quem são estes tipos que põem as máscaras?' E descobrimos que não vivem na casa das tias e que não bebem copinhos de leite. São gajos lixados e retorcidos para além do normal", comenta Jeffrey Dean Morgan, que esteve em Londres com o elenco do filme de Zack Snyder a dar entrevistas à imprensa.

"Watchmen" integra o filão encontrado há 30 anos em Hollywood e justificado pelo "box-office": "Watchmen" é o 83º filme, desde 1978, que nasce de uma adaptação de BD. Desse filão, cerca de 50 títulos são filmes de super-heróis, respectivas sequelas ou semelhantes. E desses, cerca de 30 foram feitos nos últimos dez anos por Hollywood. O mais rentável de sempre é "O Cavaleiro das Trevas", com o mítico milhar de milhões de dólares de receitas de bilheteira. Zack e Debbie Snyder, realizador e produtor, respectivamente, não se esquecem do que Christopher Nolan desbravou. "O Cavaleiro das Trevas", com o seu sucesso e temática obscura, deu boleia a "Watchmen". Snyder acha que os "man movies" ("Superman", "X-men", "Spider-man") deram ao espectadores os códigos básicos do super-género, para que possam identificar o que "O Cavaleiro" tinha de diferente e perceber a ironia de "Watchmen".
"Os públicos abriram-se muito nos últimos anos", acrescenta Patrick Wilson ("Pecados Íntimos"), que no filme interpreta Nite Owl II. "As sensibilidades das pessoas estão a mudar, por causa de 'O Cavaleiro das Trevas' ou 'Homem de Ferro'".

A transcendência do nicho

É que algo aconteceu. A cultura da BD, que era um nicho no final do século XX, transcendeu-se. "Watchmen" começou como uma edição limitada de doze livros da DC Comics, depois compilada na novela gráfica homónima. No mesmo ano, em 1986, a DC lançava "The Dark Knight Returns" de Frank Miller e pouco depois viria "Killing Joke", novamente de Alan Moore, ambos versando sobre Batman e Joker, ambos mais filosóficos do que Capitão América, Super-Homem, Homem-Aranha. Todos tinham uma coisa em comum: "a noção progressista de que seria fantástico se as pessoas se envolvessem com 'comics' que as tornassem mais adultas, mais crescidas, mostrando o tipo de temas com que eram capazes de lidar", disse Moore há dias, em entrevista à "Wired", sem mencionar uma única vez o filme de Snyder. (Moore está divorciado de Hollywood, acha o cinema um meio "demasiado imersivo" e está furioso com o mercantilismo que leva à transformação de um livro num filme. O seu nome não aparece no genérico do filme, mas Dave Gibbons desenhou as últimas cenas, alteradas em relação ao livro, e fez os cartazes).

Quando chegou à DC Comics, Moore pensava que estava a escrever para adolescentes. Mas, "o público médio dos 'comics' hoje, e isto passa-se desde os anos 1980, está provavelmente nos 30 e muitos e vai até aos 50 anos e pouco". Não é uma brincadeira de crianças, tal como "Watchmen - Os Guardiões" não é um filme de crianças. (Está classificado para maiores de 17 anos nos EUA, para maiores de 18 no Reino Unido e para maiores de 16 em Portugal).

"Watchmen" entrou na lista da "Time" dos cem melhores romances do século XX, facto sempre invocado para validar a transcendência do género no meio literário, dando-lhe crédito (intelectual?) adulto. "Com o advento de livros como 'Watchmen', penso que estas pessoas [os leitores adultos] foram 'autorizadas' pelo termo novela gráfica", que soa a algo muito mais "sofisticado", deslinda Alan Moore.

Um segundo momento da transcendência do género chega quando o cinema se apropria dele e o torna acontecimento de fácil absorção pela cultura pop. Agora, no cinema "estamos no mesmo lugar em que os 'comics' estavam quando a novela gráfica ["Watchmen"] saiu", nota Debbie Snyder. Este outro cinema de BD, que foi buscar os autores de culto e de títulos menos massificados, com as suas coreografias e violência ritualizadas à la Quentin Tarantino, e com temáticas arriscadas ou cenas explícitas, está num percurso paralelo ao da comédia americana dos últimos anos, especialmente a que tem a marca de Judd Apatow ("Superbad", Virgem aos 40 Anos"). Leia-se: ir mais longe, à escatologia e ao politicamente incorrecto, à brutalidade e à insanidade do que o cinema "mainstream" e mesmo do que algum cinema "indie" vão.

O filme impossível

"Watchmen" glorifica as convenções do género - elas estão lá, mesmo que seja para jogar com elas. O próprio acto de vestir um fato, que "às vezes [nos faz sentir] incrivelmente poderosos e fortes", como descreve Patrick Wilson, convida ao meta-olhar. Os "Watchmen" pensam no significado da sua máscara e por isso Wilson sempre olhou para ela "através dos olhos do Dan [Dreiberg, o alter-ego do herói Nite Owl]". Vemos os heróis envelhecer, sabemos das suas fraquezas, sabemos que o super-homem americano, Dr. Manhattan (o único com verdadeiros super-poderes), está cada vez mais longe do seu lado humano. Por tudo isso, este guião foi mais apelativo para os actores.

Pensemos em Jackie Earl Haley, nomeado para o Óscar pelo seu pedófilo acossado em "Pecados Íntimos", e que confessa que o seu Rorschach, o mascarado que narra o filme, "é a personagem mais inquietante" que interpretou. Billy Crudup (Dr. Manhattan): este tipo de filmes "normalmente não subvertem as minhas expectativas, não são muito interessantes para mim. As personagens não estão delineadas de forma elaborada e a viagem psicológica não é grande coisa". Mas com "Watchmen", "passada uma página e meia, soube que estava a fazer uma coisa completamente diferente".

Os temas de "Watchmen" vão da futilidade do heroísmo à corrupção dos heróis face ao males do mundo que não dominam. Esta novela gráfica significou o "coming of age" de toda uma geração, com fãs famosos como Kevin Smith ("Clerks") ou Damon Lindelof (um dos co-criadores de "Perdidos", que diz que os "flashbacks" da sua série vêm da leitura adolescente de "Watchmen") e milhares de "fanboys" de dedo rápido no gatilho - e que serão os primeiros a coroar ou a condenar, na Internet, a versão de Zack Snyder sobre uma dos mais esperadas adaptações de sempre.

Durante anos, esta foi uma obra tida como impossível de filmar. Terry Gilliam achou isso mesmo nos 80s, Darren Aronofsky trocou-o por outro filme, Paul Greengrass queria actualizá-lo para os tempos Bush da guerra ao terrorismo e Joel Silver queria Arnold Schwarzenegger como Dr. Manhattan. Depois houve o conflito legal que opôs a Warner e a Paramount em 2008.

Mas a dificuldade era sobretudo a sua amplitude. "O livro é uma história de 60 horas, e o nível de complexidade e sofisticação, nesta forma aparentemente pagã, é o mais interessante nele. O que é que se retira disso? Como é que se destila isso? Como é que se transforma um romance num poema?", pergunta Billy Crudup. Matt Selman, argumentista de "Os Simpsons" e reverente fã de "Watchmen", já viu o filme e devolve a pergunta: "Já houve alguma adaptação de um 'comic' (ou de um livro-livro) tão próxima do seu material base?"

Ao menos no caso de "Watchmen", uma coisa parece certa: não há espaço nem vontade para outro cliché do género, a sequela.

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