Esse corpo que não vemos

Através do desenho, Themlitz continua a sua pesquisa pessoal sobre a imagem própria

Trata-se de uma exposição exclusivamente de desenho, o que não é habitual na obra desta artista. E de desenhos surpreendentes: cada peça exibe uma profusão de personagens, objectos, seres híbridos, fragmentos de paisagem, plantas e outros motivos que nos recordam o universo onde coabitam instalações, esculturas, pinturas, fotomontagens, colagens e fotografias de Themlitz .

Inseridos na série "Parallel landscapes / In search of the mirror neurons", estes desenhos possuem a capacidade de desvendar um pouco mais das obsessões de Susanne Themlitz, e sobretudo com a que se prende com a definição da identidade própria.

Em algumas das suas anteriores séries a artista criava máscaras que envergava ou seres estanhos cujo aparecimento parecia obedecer a uma lógica de clonagem. Essas máscaras e esses seres construíam-se por deformação das feições e dos membros humanos, um pouco à maneira dos extra-terrestres de BD ou da ficção científica de série B. A máscara, com outros atributos (cogumelos, animais), acabava por se dar a perceber como alter-ego da artista; foi o que sucedeu na série de diapositivos e fotografias realizados para uma das edições do Prémio BES-Photo (2006), onde a imagem do corpo próprio como alteridade se reforçava com a indicação da função biológica e social desse corpo: em algumas destas imagens, surgia também uma criança, a filha da artista, igualmente provida de máscara.

Na série que agora nos ocupa a reflexão sobre a identidade pessoal estende-se à enumeração de tudo aquilo que ela não é: seres de rosto alongado, lugares imaginários (porque não existe corpo sem paisagem que lhe dá a medida e a escala), perspectivas inusitadas (de olho de pássaro ou animal), criaturas vindas do gótico flamengo, como a reprodução de uma ave infernal de Bosch que se passeia de funil na cabeça, e sobretudo órgãos desenhados e pintados com uma técnica que lembra a do desenho de anatomia: corações, vísceras e outras carnes que não conseguimos identificar. Em todas as obras, tudo parece pairar no espaço, sem ponto de apoio possível: estamos num domínio onde não há certezas, apenas a constante interrogação do que pode ainda acontecer, e do que faltará para completar esta demanda sem fim.

O nome da série esclarece-nos melhor sobre este processo. O carácter "paralelo" da paisagem que aí é referido terá que ter o seu ponto de referência num corpo situado face a face com a superfíce do papel, que neste caso é inicialmente o lugar vazio, em branco, onde o espaço se vem inscrever. Paralelo é também o espelho - liso ou deformante - que permite esse trabalho sobre a imagem própria que já mencionámos. Contudo, a última parte desta frase ("In search of the mirror neurons"), para além de mencionar esse espelho, indica também uma suposta inteligência no automatismo que gera as imagens. Porque o espelho é, antes de mais, uma máquina de imagens. Como todas as máquinas, não possui um "cérebro" nem um "coração" humanos. Sendo assim, como poderá ter neurónios?

Na realidade, estes desenhos, embora a artista nos afirme que a série ainda não está terminada, abrem a porta à sua própria conclusão: não é difícil imaginar que, a partir do espelho, Themlitz indague o modo como outras máquinas podem, repentinamente, tornar-se vivas e começarem também a criar mundos tão ou mais estranhos do que este. Estamos em pleno mito do Golem, esse ser de barro que, na fábula judaica, se tornou vivo e ameaçador. Resta a melancolia que um texto de sala que acompanha a exposição também refere. Mas sendo a melancolia o sinal de uma falta profunda (da forma humana definitiva, de referências no espaço e no tempo), ela é talvez o motor que permite ao artista continuar o seu trabalho de forma consistente.

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