Torne-se perito

Queijo da Serra

Desde que D. Manuel I assinou o édito de expulsão dos judeus, em 1496, que na Península Ibérica não se fazia um queijo kosher. Além de próprio para a alimentação, segundo os preceitos judaicos, o produtor assegura que está também mais macio e aveludado para o gosto dos portugueses. É feito em Peraboa, na Covilhã, e a notícia já chegou a Israel

a Porque é que uma pequena aldeia da Beira Alta tem sido notícia em praticamente todos os jornais de Israel? Peraboa, no concelho da Covilhã, é uma localidade em tudo idêntica a muitas outras da região, com as casas de pedra maioritariamente voltadas para a estreita rua que atravessa o povoado, mas é o queijo que por ali se produz que desperta a curiosidade do povo judeu. E o caso não é para menos. Há mais de cinco séculos que na Península Ibérica não se fazia queijo kosher, produto que sai agora duma queijaria local para ser consumido pelas comunidades judaicas de todo o mundo. A queijaria Braz & Irmão só existe há quase duas décadas como estrutura industrial, mas o negócio desde sempre constituiu a principal ocupação da família. Antes, já os pais dos actuais proprietários se dedicavam ao comércio do queijo da Serra, depois de os avós terem assegurado o sustento com as ovelhas e o leite que igualmente aproveitavam para a confecção artesanal de queijos. As notícias que correm em Israel enfatizam o facto de José Agostinho Braz, o homem que está actualmente à frente do negócio, ter antepassados judeus. "Ele acredita que a sua família descende da comunidade de judeus portugueses dos séculos XIV e XV que, como muitas outras, foi forçada à conversão para escapar à perseguição no período da Inquisição", relata o diário Ha'aretz na edição do passado dia 16 de Fevereiro, numa notícia idêntica à que seria publicada dias depois no influente Jerusalem Post.
O rótulo de cristão-novo até parece ajudar ao negócio da empresa, mas José Braz não quer criar confusões com os valores locais. "Acho que todos aqui, nas Beiras, temos umas feições, no nariz, o rosto, os dentes, dentro dos judeus. Mas isso é especular", distancia-se. "Sou católico e até há bem pouco tempo tive aqui o bispo da Guarda a visitar as instalações", relata, acrescentando que "era preciso uma pesquisa genealógica" para saber se é ou não um cristão-novo. "Não me parece que seja muito viável ou que valha a pena", remata, deixando claro que, muito mais que as suas origens, o que verdadeiramente lhe interessa é o negócio dos queijos.
Crenças à parte, o facto é que desde 1496, quando o rei D. Manuel I publicou o édito de expulsão dos judeus do nosso país, que na Península Ibérica não se fazia um queijo de ovelha com as características que o tornam próprio para consumo à luz dos preceitos judaicos. E aquilo que em Israel é visto como o apelo das origens ou a procura do reencontro com as suas raízes ancestrais, para José Braz parece ter surgido apenas como uma oportunidade de incremento da facturação. Será essa, porventura, a mais firme revelação da sua costela judaica, mas a ideia central era, de facto, a expansão do negócio.
Apropriado para semitas
Depois dos vinhos, azeites e das compotas com certificação kosher que desde 2004 começaram a ser produzidos naquela região beirã, esta pareceu-lhe uma boa porta para a abertura a novos mercados. "Falei ao presidente da Comissão de Turismo da Serra da Estrela, que começou por me dizer que para o queijo a coisa não deveria ser nada fácil." Em todo o caso, optaram por avançar com a proposta junto do líder da comunidade judaica em Portugal, o rabino do Porto, Daniel Litvak. "Ele que viesse cá ver o que tínhamos e a forma como o queijo era feito e depois se veria", explica José Braz, acrescentando que o rabino lá acabou por se deslocar a Peraboa cerca de ano e meio depois.
Quando um produto recebe a designação kosher, isso quer dizer que é apropriado, que segue as leis dietéticas do kashrut, a norma que vigora para as religiões semitas. Não se trata de bens exclusivos para os judeus, mas têm que obedecer a determinadas características para que por eles possam ser consumidos. "O kashrut vigora há 3200 anos, pelo que pode dizer-se que é o mais antigo regulamento de higiene alimentar que existe", explica Paulo Vitorino, gerente da Kosher Sefarad (koshersefarad@sapo.pt), que presta assessoria às empresas que pretendam comercializar produtos aptos a serem consumidos pelas religiões semitas. E o conceito tanto é válido para bens de consumo como para os de utilização, como é o caso do vestuário ou dos estabelecimentos hoteleiros.
No caso do queijo, é necessário que o leite provenha de animais puros para a alimentação, que a lei religiosa judaica, a Halacha, impõe que sejam ruminantes e de casco fendido.
Na visita à fábrica, além das instalações e da forma como era feito o controlo de qualidade, o rabino quis saber qual a origem do leite, os rebanhos e a forma como era feita a recolha. As primeiras conclusões não eram animadoras. Para fazer queijo kosher seria necessário parar a linha de fabrico e proceder a uma completa limpeza/desinfecção de todos os espaços e maquinarias, processo que seria necessário repetir a cada produção. Não era viável, mas numa segunda visita o rabino lançou o desafio: em vez de um queijo kosher, porque não a kosherização de toda a produção, não havendo assim necessidade de qualquer interrupção?
"O processo demorou cerca de nove meses", explica Paulo Vitorino, tendo passado essencialmente pela alteração do layout da fábrica, de forma a reduzir ao mínimo o contacto humano com as massas lácteas. Passou a ser usado exclusivamente um coalho de origem vegetal, com certificação kosher e oriundo de França, assim como o sal é também certificado. "É como se tivesse um complemento de certificação, o que dá uma garantia acrescida para o consumidor", assegura o responsável da Kosher Sefarad, ao passo que José Braz diz que "foram adaptados os ingredientes para ir ao encontro do gosto dos judeus". Além de um toque mais temperado e um maior tempo de cura, há também um mais prolongado trabalho de massas que dá uma maior consistência final ao produto. "O engraçado é que também o consumidor português passou a gostar mais do queijo", diz José Braz, explicando que o queijo é agora "mais compacto, macio e aveludado".
Além das comunidades judaicas de Espanha, França e Brasil, para onde exporta, a Braz & Irmão quer sobretudo aumentar as vendas nos EUA e em Israel. As notícias já chegaram, as encomendas já não devem tardar.

O contacto humano com as massas lácteas quase desapareceu e "foram adaptados os ingredientes para ir ao encontro do gosto dos judeus", diz José Braz, na foto em cima à direita

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