Juristas consideram atitude da PSP um "erro grave"

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A Polícia de Segurança Pública deveria ter limitado a sua intervenção a uma advertência, considera ex-bastonário Rogério Alves

A atitude da PSP de Braga ao apreender vários exemplares de livros sobre pintura, no domingo passado, em resposta a queixas de cidadãos chocados com a imagem de um célebre nú artístico nas capas, foi um "erro grave", um "atentado à liberdade de expressão" e "uma falha monumental no campo da cultura", consideram  quatro juristas em declarações ao PÚBLICO.

A imagem reproduzida respeita a uma obra do pintor oitocentista francês, Gustave Coubert (1819/1877), considerado o fundador do realismo na pintura. O quadro (na foto), pintado em 1866 e denominado A Origem do Mundo, está exposto no Museu D'Orsay em Paris.

No caso da apreensão dos livros com esta imagem, "não está em causa a ilegalidade mas a sensibilidade de alguns que a polícia não tutela", resume o advogado Rogério Alves, ex bastonário da Ordem dos Advogados. 

Confrontada com queixas de cidadãos a PSP  "deveria limitar-se a advertir os mais sensíveis que, na ausência de uma norma expressa a proibir a exibição deste tipo de imagens, teriam de se conformar e não se aproximar", diz Rogério Alves.

E se estivesse em causa a tranquilidade pública, mais teriam de advertir as pessoas de que seriam obrigados a actuar sobre quem perturbasse a ordem, já que "a exposição do nú artístico não é ilegal e não pode ser reprimida", acrescenta. O advogado nota ainda que  o artístico e o estético não podem ser confundidos com o pornográfico.

Esta é, aliás, uma diferença consagrada no decreto lei de 1976 promulgado pelo então Presidente da República, Costa Gomes, que nem sequer foi invocado pela Polícia de Segurança Pública de Braga, mas ao abrigo do qual o Ministério Público determinou a retirada, na semana passada, de uma das construções do carnaval de Torres Vedras que satirizava o computador Magalhães.

Este decreto que estabelece medidas "relativas à publicação e comercialização de objectos e meios de comunicação social de conteúdo pornográfico" refere, na sua introdução, que foi  elaborado para fazer face "à exploração mercantil" do  pornográfico e obsceno" e não "do erótico ou do nu artístico".

"Atentado à liberdade"

A confusão entre imagens pornográficas e de conteúdo erótico pode "configurar um erro grave da PSP" também no entender do juiz desembargador António Martins notando que "o facto ilícito tem de ser algo fácil de enquadrar". 

O que se passou em Braga numa feira de livros em saldo é "absolutamente inadmissível" na opinião do bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho e Pinto. "É um atentado à liberdade de expressão que lembra os piores tempos de antigamente", diz.

O bastonário da Ordem dos Advogados lembra, aliás, que a competência para tomar uma decisão deste tipo pertence aos tribunais e não à PSP. Referindo também o recente episódio registado no Carnaval de Torres Vedras, Marinho e Pinto defende que, os responsáveis máximos por estas acções, o procurador-geral da República, neste caso, e o ministro da Administração Interna, no caso de Braga, "devem explicar ao país o que se passou".

Para o juiz desembargador António Santos Carvalho, a apreensão dos livros em Braga traduz-se, sobretudo, num "erro grave" na aplicação da lei "que identifica o baixo nível cultural generalizado" demonstrado pelo desconheciumento da obra de Coubert.

Falha cultural 

Notando que, para ascender ao lugar de comandante da polícia já é necessária uma licenciatura e conhecimentos culturais mais vastos, o juiz considera a decisão tomada pelo Comando da PSP "uma falha monumental no campo da cultura", além de um "atentado à liberdade de expressão" e "uma forma de descriminação desproporcionada".

Estes recentes episódios somam-se a outros mais antigos, como o que se registou em Viseu, em 2004. Dois agentes da PSP entraram numa livraria para avisar os seus responsáveis que deveriam retirar da montra um ensaio sexual em banda desenhada da autoria do espanhol Alvarez Rabo. Segundo um então colaborador da livraria, os polícias justificaram a sua atitude pelas várias queixas que tinham recebido da parte de cidadãos, justificando-se com a explicação de que Viseu era "uma cidade muito especial e aquele livro não ficava bem na montra".

Sinais preocupantes no entender do juiz António Martins. "Estamos a dar sinais errados em termos de sociedade", salienta.

O magistrado António Martins considera que as situações e os alertas registados recentemente de interferência nas esferas da liberdade de expressão e da liberdade sindical levantam a ideia referida por Orwell de uma sociedade "altamente vigiada e limitadora do sentido crítico das pessoas que se deve querer em democracia", nota.

Ao longo do dia de ontem, o PÚBLICO tentou sem êxito obter uma posição do ministro da Administração Interna, Rui Pereira, ou de alguém do ministério.   

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