Torne-se perito

Entrevista Rui Nunes

A morte da mulher italiana apressou o calendário do presidente da Associação Portuguesa de Bioética. Esta semana Rui Nunes propôs ao Governo aprovação do testamento vital em Portugal. Entretanto, quer preparar a sociedade portuguesa para um referendo sobre a eutanásia que, defende, só deverá acontecer daqui a dois anos

a Escolheu o tema do testamento vital para fazer as provas de aptidão que servem de porta de entrada para a carreira docente - a criação de um documento com instruções sobre os tratamentos que a pessoa aceita ou recusa receber no fim da vida, caso esteja incapacitada de exprimir a sua vontade. Hoje preside à Associação Portuguesa de Bioética, que decidiu lançar o debate sobre a eutanásia há dois anos, juntamente com o Serviço de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. A morte de Eluana - a mulher italiana que esteve durante 17 anos em estado vegetativo persistente e a quem, por decisão do tribunal, foi retirada a alimentação - acabou por acelerar o calendário que Rui Nunes tinha imaginado. "Às vezes, são estes casos que nos fazem pensar", nota. Assim, temendo o aproveitamento político em ano de eleições e que se passe "do obscurantismo para a confusão total", o especialista defende que se fale agora na Assembleia da República de testamento vital e se deixe para mais tarde, daqui a dois anos, um referendo sobre a eutanásia e o suicídio assistido. Segundo alega, o testamento vital e a ordem para não reanimar é uma questão unânime e indiscutível. Já no campo da eutanásia a questão complica-se: "Há-de haver sempre alguém mais pró-vida e alguém mais pró-liberdade ética da pessoa." Rui Nunes acredita que a ética médica evolui e que os portugueses estão preparados para falar sobre eutanásia, mas não ainda para decidir.
Por que decidiram lançar esta discussão sobre a eutanásia?
As pessoas não se querem confrontar com a ideia da morte e os profissionais de saúde também têm dificuldade. A medicina nas últimas décadas tem uma dimensão muito intervencionista e muito triunfalista. Mas a sociedade portuguesa não tem nada a menos do que as outras. Este assunto estava a ser discutido em muitos países. Por outro lado, sobretudo com o problema do referendo nacional à prática do aborto, gera-se aqui o que nós doutrinalmente chamamos "movimento moral". As pessoas têm uma determinada preocupação, discutem-na, há uma participação social e depois isto acaba por ter um efeito paradoxal em temas que também têm um elevado índice de complexidade ética e moral. Como a eutanásia. No início, há dois anos, havia poucas pessoas que quisessem discutir o assunto, a eutanásia era praticamente tabu. Foi preciso partir pedra.
Mas a vossa agenda não previa discutir a eutanásia tão cedo...
Tentámos segmentar o debate e começámos por falar do testamento vital e nas directivas antecipadas de vontade. Depois falámos das questões da suspensão ou abstenção de meios desproporcionados de tratamento, nomeadamente as ordens de não reanimar, e depois entrámos na questão mais específica da morte medicamente assistida, seja na forma de eutanásia, seja na forma de assistência ao suicídio. Fizemos vários estudos e inquéritos, junto da comunidade médica e de idosos internados. Com isto acho que também prestámos um contributo à sociedade e creio que agora está muito mais preparada do que há dois anos para discutir este conjunto de temas.
Já está preparada?
Para a discussão.
Não para um referendo sobre a eutanásia como propõem?
Não. Porque quem está no meio, os médicos, os enfermeiros, os especialistas em biodireito etc., sabem fazer as distinções. Entre o testamento vital, o que é a ordem de não reanimar... Mas o cidadão comum ainda não sabe definir as fronteiras entre estes conceitos. Até porque teoricamente elas não são fáceis. Nesta fase, em que se avizinha um acto eleitoral, é fácil o aproveitamento político disto. E isso ainda vai ser pior. Nós estivemos 50 anos no obscurantismo nesta matéria e agora em dois meses queremos falar de tudo, legislar tudo, fazer propostas... Vai ser o descalabro total, porque vamos meter no mesmo saco questões diferentes. Vai haver sobreposição de conceitos e com isso acontece a contaminação de conceitos, das respectivas conclusões e soluções legislativas.
A palavra eutanásia é muito pesada...
É sobretudo ambígua. Não é pesada, se for devidamente interpretada, de acordo com aquilo que é a prática e a lei internacional. Nós não temos de inventar a roda. A questão da morte medicamente assistida é muito fracturante. Não pode ser debatida nestes dois ou três meses. Vamos mais longe: como é uma questão que remete para a consciência individual de cada um de nós, incluindo a dos senhores deputados da AR, defendemos que a legitimidade, tal como o aborto, carece de um referendo popular. Depois de resolvido o problema do testamento vital... a eutanásia é uma questão para ser decidida longe de actos eleitorais e confusões.
O que é a eutanásia "devidamente interpretada"?
Na ordem jurídica e ética internacional, a eutanásia tem uma definição hoje clara, transparente e cristalina. Refere-se apenas e tão-só à morte de uma pessoa a seu pedido expresso, com a ajuda de um profissional de saúde que depois concretize esse acto. Tem de haver a voluntariedade e uma terceira parte (médico ou enfermeiro) que concretizam essa vontade, terminando a vida através de um método. Há vários métodos. Tudo o que não encaixa aqui deve ser discutido à parte.
Dentro do conceito da morte medicamente assistida existe ainda o suicídio assistido.
É algo de parecido mas diferente. Aí é o próprio doente que tira a vida. O médico ou o enfermeiro facilitam os instrumentos para. Por exemplo: põe na mão do doente... um comprimido. Num caso estamos na moldura legal de assistência ao suicídio e noutro estamos no homicídio privilegiado, a pedido da vítima. Há aqui muitas questões diferentes. Uma coisa é o tema fracturante da eutanásia, e outra coisa intervenções no fim da vida de um doente, praticamente unânimes em todo o mundo ocidental. A própria ética médica aceita pacificamente este tipo de soluções.
Quais?
Por um lado, a suspensão ou abstenção de tratamentos fúteis, aquilo a que também chamamos "extraordinários" ou "desproporcionados" ou "heróicos". É preciso que as pessoas percebam que há inúmeras circunstâncias da prática médica onde o que deve ser feito, clínica, ética e juridicamente é dizer: "Calma, vamos abster-nos de intervir. Porque no cômputo geral estamos a acrescer ao dano. Estamos a gerar mais prejuízo do que benefício." Isto não pode ser considerado eutanásia. Senão, vamos chamar eutanásia a tudo. Todos os doentes que morrem... se não clarificamos bem os conceitos, há sempre eutanásia. A medicina pode ir sempre mais além, nem que seja 30 segundos.
Há muita confusão ainda na definição dessas fronteiras...
Os termos hoje têm um significado próprio na ordem ética jurídica internacional. Temos de ter uma linguagem comum. A suspensão ou abstenção de tratamentos fúteis é boa prática médica, está nos códigos de ética e deontologia médica. Está consonante em todas as convenções e declarações internacionais que Portugal subscreveu e portanto não há nada a acrescentar do ponto de vista doutrinal. A única coisa que falta é regular, regulamentar e harmonizar práticas. E é essa a nossa proposta. Dou-lhe um exemplo: ninguém discute hoje as ordens de não reanimar, do ponto de vista ético, clínico e jurídico. Mas se me perguntam o que se passa neste hospital do Porto, ou em Lisboa ou em Coimbra, ninguém sabe ao certo. Portanto queremos que pela via legislativa ou pela via regulamentar (Ministério da Saúde) se estipulem regras uniformes para estas práticas de suspensão e abstenção de tratamentos em todo o país. Fizemos há alguns anos uma proposta de orientações sobre isto. O poder político mostrou-se entusiasmado na altura, fui até contactado pela Direcção-Geral de Saúde... e até hoje ficou tudo em águas de bacalhau.
E por que é que agora retomou essa proposta?
Porque nos apercebemos que havia um grande alvoroço no país...
Por causa do caso de Eluana em Itália?
Mais por causa das propostas que se sucederam à morte de Eluana apresentadas pelos deputados de alguns partidos. Perante isso, pensámos: calma. Nós vamos passar do obscurantismo para a confusão total. Sentimos que tínhamos a responsabilidade, já que fomos nós a iniciar o debate, de sugerir que se ponha aqui algum bom senso.
Qual é a sua posição relativamente ao caso de Eluana?
Vou pôr-lhe o problema ao contrário. Se a prioridade máxima que eu sugeri esta semana - que é a legalização do testamento vital neste ciclo legislativo, antes do Verão - tivesse já acontecido, o problema da Eluana seria muito mitigado.
Já não se colocava?
Não.
Se ela tivesse deixado por escrito...
Se ela tivesse deixado por escrito através de um testamento vital, não seria mais submetida àquele tipo de tratamentos. E se não tivesse um testamento vital e se aquela intervenção fosse considerada desproporcionada ou fútil, também não aconteceria. Por uma das duas vias...
Era fútil?
Neste momento, em Portugal ou em Itália, não há regras. Depende muito da conjuntura. O que é que aqueles médicos pensam, aqueles pais pensam. O que é que aquele magistrado pensa. O que pensa o poder político...
Acha compreensível falar-se de homicídio?
Com certeza que não. O que está em causa é uma instrução por parte de um tribunal. Nunca pode ser considerado homicídio.
A Eluana era uma vítima de distanásia, a prática pela qual se continua através de meios artificiais e a todo o custo a vida de um doente que, à partida, não tem hipóteses de viver sem esses meios?
Numa determinada perspectiva era. Para quem considera que aquela situação era desproporcionada, aquilo era distanásia. Mas a ideia central a reter é que os países onde há legislação e orientações nesta matéria são países onde se quer combater a distanásia e o encarniçamento terapêutico, onde se quer aliviar o sofrimento das pessoas na fase terminal da vida.
E onde isso não existe...
Fica ao critério do bom senso dos médicos e dos familiares.
Mas admite que em Portugal se pratique a eutanásia, ainda que seja à porta fechada?
Em princípio admito tudo. Não estou em todas as enfermarias, de todos os hospitais portugueses. Ninguém lhe vai apontar casos específicos, sendo ela ilegal.
Mas sabe-se que é praticada...
Toda a gente sabe que ela sempre foi praticada pela medicina, em Portugal e em todos os países do planeta. Isso é sabido.
Muitas vezes pode ser encarada como a única atitude eticamente correcta...
Para algumas pessoas é encarado assim, por isso é que há um grande divisão nesta matéria mesmo na classe médica. Esta é uma questão fracturante em todos os países e também em Portugal. A classe médica está hoje muito mais predisposta a discutir este assunto.
De acordo com os estudos que fez, qual é a posição oficial da classe médica?
É contra a prática da eutanásia. Mas a ética médica também evolui. A ética médica holandesa é a favor.
Há sempre uma divergência...
Há sempre aqueles que são mais pró-vida e aqueles que são mais pró-liberdade ética da pessoa. Mas isso é uma ambiguidade que é insanável na sociedade democrática. Quando nós propomos um testamento vital, sabemos que há muita gente que não vai fazer. Ninguém é obrigado a fazer nada. Quem se sentir bem com o statu quo, nomeadamente poder ficar dez anos, ou 20 anos, ligado a um tubo... perfeito. Estamos em democracia. É suposto ser assim.
O testamento vital pode ser feito nesse sentido? Podemos pedir que nunca desliguem a máquina?
Sim. É uma manifestação de vontade. Pode ser no sentido negativo, "não quero ser submetido a..." ou no sentido positivo... mas no sentido positivo pode ser estancado pela legis artis. O campo de manobra é menor. O pedido do doente é balizado pela legis artis. Se o que é pedido é perfeitamente surrealista, então esse pedido não tem de ser respeitado. Agora, há casos na fronteira.
Há os tais casos de distanásia, de obstinação e encarniçamento terapêutico...
Aí estamos a pôr o dedo na ferida. Por que é que surge a problemáticas do testamento vital e das guidelines sobre a suspensão ou abstenção de tratamento em doentes terminais? Precisamente porque, ainda que idealmente não devesse existir, a distanásia e o encarniçamento existem.
Qual é a vossa proposta?
Partimos de um pilar fundamental: numa sociedade pluralista, o direito elementar é o direito à liberdade ética da pessoa, à liberdade de autodeterminação. Nesse sentido o nosso país, como outros países democráticos, já perfilhou um direito alienável dos doentes que é o direito à recusa do tratamento. Nós simplesmente queremos estender esse direito a pessoas incompetentes. Como? Através do testamento vital, por um lado, e através do um conjunto de linhas de orientação que permitam decidir de acordo com regras previamente estipuladas.
Acredita que o testamento vital pode reduzir o número de possíveis casos de eutanásia?
O problema da eutanásia põe-se porque a pessoa não quer ser submetida a tratamentos e situações degradantes desumanas e quer ter algum sentimento de controlo no fim da vida. A legalização do testamento vital tem esse benefício acrescido é que, indirectamente, ao dar este controlo às pessoas, o problema da eutanásia tende a ser mais residual.
Podemos mudar de ideias? Podemos contradizer o que escrevemos no testamento vital quando confrontados com uma situação real?
O testamento é livremente revogado a qualquer momento. Eu faço hoje e logo à noite desfaço.
Podem ser claramente definidos os critérios em que se decide que aquela pessoa está mesmo determinada a pedir a eutanásia?
Pode. Na Holanda estão definidos os critérios há 15, 20 anos. Estamos sempre a falar da vontade do doente. Não está em discussão em nenhum país do planeta a eutanásia involuntária. Um acto arbitrário da família, dos médicos, dos enfermeiros...
Isso chama-se o quê?
Isso chama-se homicídio, quando não é a pedido do doente.
E, voltando atrás, o caso de Eluana foi, na sua opinião, uma suspensão de um tratamento fútil.
Exactamente. O mesmo se passa relativamente a uma ordem de não reanimar. Ninguém diz que é homicídio. Nós no extremo podemos chamar tudo a qualquer coisa.
Admite que este caso instale alguma confusão nesta matéria...
Não vale a pena nenhum especialista ou pseudo-especialistas vir agora tentar deturpar a realidade. Para mim, no caso de Eluana estávamos perante um tratamento fútil. Mas admito que uma pessoa mais arreigada ao prolongamento da vida a qualquer custo entendesse de maneira diferente.
Ironicamente, a morte de Eluana serviu para lançar a discussão sobre estas questões.
É sempre assim. O testamento vital foi legalizado na Califórnia nos anos 70 e nos 50 estados americanos em grande medida por causa de um caso parecido. Karen tinha 20 anos, entrou num estado vegetativo persistente, foi ligada a um ventilador e os pais recorreram a um tribunal para que o desligassem, alegando que era a vontade dela. O supremo tribunal acabou por autorizar perante os abundantes testemunhos de que essa seria a vontade dela. Ou o caso de Ramón San Pedro em Espanha. Às vezes, são estes casos que nos fazem pensar.
A sociedade portuguesa está preparada para o testamento vital e não está para a eutanásia.
Está preparada para discutir a eutanásia. Mas não acho bem que se legisle sobre isso a correr. As pessoas estão preparadas para começar a discutir, mas não para o fim do debate. Não está preparada para a legalização. Eu já vi propostas de lei quando o debate ainda nem sequer se iniciou. Isto é completamente surreal.
Quando o referendo?
Daqui a dois anos.
E qual acha que será o resultado nessa altura?
A generalidade das sociedades é favorável à prática da eutanásia. Quando se dá voz às pessoas, por regra, são a favor. Há um grande perigo na legalização da eutanásia que tem de ser mencionado: é que da eutanásia voluntária se entre em eutanásias involuntárias e isso implica um controlo muito rigoroso do sistema. Por isso é que o debate tem de ser feito atempadamente. Não podemos pôr no saco da eutanásia coisas que não são eutanásia.
Por exemplo?
Uma pessoa que está com uma depressão, que está sozinha, que quer morrer. Isso implica uma batalha firme e consistente a favor dos cuidados paliativos. Temos de assegurar a prestação dos melhores cuidados aos doentes terminais.
Quando fez o estudo junto dos idosos internados, percebeu que muitos queriam morrer...
Encontrei muitos a favor da legalização da eutanásia. Em Lisboa 60 por cento, no Alentejo 63 por cento. Mas é preciso ver uma coisa: os críticos subversivos escondem um facto. Na Holanda, desde que foi legalizada a eutanásia, diminuíram os casos - ao mesmo tempo foi melhorado o sistema de saúde e criou-se uma grande rede de cuidados paliativos. São um por cento das mortes na Holanda, quando já foram dois e três por cento. A legalização da eutanásia pode ter este efeito paradoxal. O poder político se souber que vai haver debate da eutanásia vai querer criar a rede de cuidados paliativos.
Acha?
Acho. Porque se não vai ser responsabilizado pelos casos de eutanásia que não sejam verdadeiramente dependentes da vontade da pessoa.
Que podiam ser evitáveis?
Precisamente. A eutanásia evitável.
Se o referendo da eutanásia fosse hoje, qual seria a resposta?
Seria aleatória. Dependia dos grupos de pressão. Podia ser o sim ou o não. Se a sociedade portuguesa for chamada a decidir agora, vai decidir por paixão e não com a razão.
Já fez o seu testamento vital?
Ainda não porque não tem valor legal. Vou fazer seguramente. Aguardo pacientemente que seja aprovado para, nesse mesmo dia, dar esse passo importante. Como julgo que muitos portugueses o farão.

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