Uma escola por dentro, das oito da manhã às sete da tarde

Têm vidas ocupadas, empregos absorventes, crianças pequenas. Precisam de deixar os filhos na escola mais tempo do que gostariam. Mas lidam com o facto de formas diferentes. Há quem se sinta culpado, quem esteja conformado e quem acredite que dificilmente os miúdos passariam melhor o seu dia noutro local.

AEscola Básica n.º 159, em Lisboa, é mais do que um local onde se aprende a fazer contas ou a falar Inglês. Muitos dos seus alunos passam aqui mais horas do que em casa. É aqui que almoçam, que fazem desporto e os trabalhos, que brincam e partilham amigos. E afectos. Até que a família possa ir buscá-los. A Confederação Nacional das Associações de Pais já disse que gostaria que os estabelecimentos de ensino do 1.º ciclo passassem a funcionar 12 horas por dia. Mas afinal o que fazem as crianças tanto tempo na escola? Acompanhámos um dia de alguns meninos que já passam mais tempo na escola do que a generalidade dos adultos nos seus postos de trabalho - segundo o Instituto Nacional de Estatísticas, cada português trabalha, em média, sete horas e 48 minutos por dia.8h00
Três bancos compridos de madeira, à frente de uma televisão, e duas mantas vermelhas no chão. É num cantinho improvisado no ginásio que os alunos do 1.º ciclo da Escola Básica n.º 159, nos Olivais, em Lisboa, esperam que as aulas comecem, o que só acontecerá dali a uma hora. À medida que vão chegando, a partir das oito da manhã, pela mão dos pais ou das mães, sentam-se ali. Mas poucos ligam aos desenhos animados. Os filmes são sempre os mesmos, contam a rir.
Luísa Drumond desenha a bandeira portuguesa numa folha A4. Ana Beatriz brinca com um colega. Joana está demasiado ensonada, prefere distribuir abracinhos e espreguiçar-se no banco. Têm todas nove anos. Quando os dias estão soalheiros, vão para o recreio, ao ar livre. Como está a chover, ficam confinadas, com os restantes colegas madrugadores, ao ginásio. Uma monitora toma conta delas.
A mãe de Ana Beatriz, Cristina Carvalho, é empregada de limpeza, tem pela frente uma longa jornada de trabalho, e garante que é impossível poupar a filha às 11 horas que esta passa na escola. "Se a escola estivesse aberta mais meia hora, era ainda melhor... escusava eu de estar sempre numa correria para chegar a tempo para vir buscá-la, porque tudo depende do trânsito", contará afogueada junto ao portão quando forem quase sete da tarde e a cidade estiver em peso nos autocarros e nos automóveis de regresso a casa para jantar.
Como outras crianças, por estes dias, Ana Beatriz sai de casa de noite. E regressa a casa à noite.
A Básica n.º 159 é uma das escolas do país que já têm um horário de funcionamento muito próximo daquele que a Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap) gostaria de ver generalizado no 1.º ciclo: recebe crianças das 8h00 às 19h00. Na prática, isto significa que depois das aulas e das "actividades de enriquecimento curricular" (até às 17h30) as crianças ainda podem ficar até às 19h00.
8h55
A campainha que anuncia o início das aulas ainda não soou, mas os miúdos conhecem de cor as rotinas. São eles próprios que ajudam as funcionárias a arrumar os bancos e as mantas vermelhas. Entre os voluntários, está Leandro, nove anos, olhos em forma de amêndoa. Foi dos primeiros a chegar à escola com a irmã de três anos pela mão, a pequena Jessica de vestido cor-de-rosa e ganchos nos cabelos. E será um dos últimos a sair.
A um canto, Manuel e Diogo, os dois com seis anos, trocam cartas com figuras de monstros. "Esta é a besta do gelo, esta a besta-fantasma." Os vestígios do sono já desapareceram. Ouve-se o toque de entrada. Guardam-se as cartas a correr. Começam as aulas. O silêncio invade o ginásio, que fica deserto.
Luís Fernando, presidente do Agrupamento de Escolas, responde com ironia quando se lhe pergunta se está preocupado com o tempo que alguns dos seus alunos ficam no estabelecimento de ensino. "Acho graça a quem coloca objecções, porque as pessoas partem do pressuposto que a sociedade está organizadíssima. Mas isto não é a Dinamarca onde os pais estão despachados às duas ou três da tarde, vão buscar as crianças à escola e depois vão para casa fazer doces."
Sim, é terrível que uma criança só tenha duas horas por dia para estar com a família ("se estão aqui quase 12 horas, se dormem dez, é porque estão com os pais duas horas", diz Luís Fernando). Mas "e o problema da Quimonda não é terrível?"
A teoria de que a escola está a ficar cada vez mais um armazém de crianças não colhe, acredita. "Aqui, todos os pais têm de justificar que precisam de deixar as crianças das 17h30 às 19h00 na componente de apoio à família, têm de trazer uma declaração da entidade patronal." Se os horários que têm para cumprir os impossibilitam de estar mais tempo com as crianças, a culpa "é da forma como a sociedade está organizada". A escola só tem de dar a melhor resposta.
"É um erro pensar que estamos a falar de uma inevitabilidade, que não há outras soluções", contrapõe Dulce Gonçalves, professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa e coordenadora científica do Lispsi, um Centro de Psicologia constituído por uma equipa multidisciplinar de técnicos.
"Para resolver o problema dos pais que não têm tempo para estar com os filhos, não tem obrigatoriamente que se mexer nos horários das escolas, há outras soluções", diz a psicóloga. Por exemplo? "A nossa sociedade insiste em pôr toda a gente a começar a trabalhar à mesma hora e a sair à mesma hora e não tem de ser assim; os pais têm direito a condições laborais de qualidade, pode haver flexibilização; os casais deviam poder organizar-se de forma a que se um entra mais cedo o outro possa optar por um horário em que entra mais tarde, para que um possa ir levar o filho à escola e o outro possa ir buscá-lo mais cedo."
Mas muitos dos pais com quem falaremos ao longo do dia não vêem as coisas assim.
10h30
Os miúdos da Básica n.º 159 estão quase a descobrir que este dia não será igual aos outros - e não é só porque há jornalistas na escola a quem oferecer mimos (entrevistar um aluno aqui é sinónimo, quase sempre, de ser surpreendido, no final da conversa, com um abraço apertado).
Ouve-se o som estridente da campainha do intervalo. A chuva parou, o que quer dizer que os alunos podem ir para o recreio onde há campos de basquetebol e de futebol, relva para brincar, e... esta é a surpresa: um parque infantil com balouços, escorregas e estruturas diversas para trepar.
As obras no parque já tinham acabado havia alguns dias, mas só agora "veio a fiscalização e deu o OK para que isto pudesse ser utilizado", diz Cristina Lavrador, coordenadora do 1.º ciclo. A boa notícia espalha-se a grande velocidade. Os miúdos engolem a correr o lanche da manhã (é proibido comer no recreio) e correm para a rua, invadem o parque infantil. "São precisos 20 olhos", diz Ilda Francisco, uma das várias auxiliares que tem como missão estar com as crianças no intervalo e nos prolongamentos de horário.
Cristina Lavrador olha com ternura para os alunos. "Nesta escola há de tudo: algumas crianças de famílias mais desfavorecidas, outros com vida muito desafogada, é muito heterogénea, o que é bom." Não há problemas disciplinares, os professores são "incansáveis". "As crianças estão mais tempo na escola do quem em casa. Mas acho que estão bem, e que é preferível que estejam na escola, que é um espaço familiar e seguro, do que noutro lugar."
11h00
Na sala 7, onde a turma de Ana Beatriz volta às aulas depois do intervalo, a professora Cecília Ferreira pede a uma aluna para escrever o sumário no quadro negro: "Interpretação de gráficos." O tom das vozes só se eleva quando a professora pede voluntários para responder a perguntas sobre os exercícios que vão sendo feitos. Todos querem responder: Beatriz, a menina da primeira fila que abana o dedo no ar à velocidade de uma ventoinha; Ana Beatriz, mais tímida, na segunda fila; Gonçalo, "mestre" da Matemática que gosta de explicar as suas "tácticas" para fazer contas...
A poucos metros dali, no refeitório, está tudo a postos para o almoço feito na cozinha recentemente remodelada da escola. Das salas onde funciona o pré-escolar (cerca de 70 crianças dos três aos cinco anos) começam a sair, por volta das 11h45, filas de meninos de bibe. Almoçam mais cedo do que os do 1.º ciclo, sob o olhar das educadoras e das dez funcionárias que trabalham no refeitório. Servem-se aqui, diariamente, cerca de 190 refeições. Poucos alunos vão almoçar a casa.
Por volta das 12h30 começam a chegar à cantina os mais velhos. Raquel, oito anos, almoça tranquilamente. No fim explicará que canta num coro infantil e mostrará algum do seu reportório (um dia alguém lhe disse que ela tinha "voz de cristal"). Por fim contará que gostava de estar mais com os pais. Acha que a mãe "trabalha muito, quase não dorme". Mas gosta do tempo que passa na escola. A conversa daria pano para mangas se a campainha já não estivesse a tocar para mais duas horas de aulas.
"As crianças são todas diferentes, têm diferentes necessidades", diz Dulce Gonçalves. Se calhar, para algumas, "15 minutos de qualidade com os pais" compensam um dia inteiro passado longe deles. Mas para muitas outras não chegará.
"Quando estamos na escola, estamos diluídos num grupo, comemos a mesma comida, partilhamos o mesmo equipamento, os mesmos cheiros, a mesma energia de um espaço, que é público; há uma tendência para a igualização; as crianças podem estar a ser muito estimuladas, mas estão em regime de comunidade." Este contexto, explica, é fundamental para aprender a socializar. Mas precisa de ser complementado por outro: "Ir para casa, para o espaço familiar, para o meu quarto, para os meus brinquedos." Aprender a estar sozinho, "a estudar sozinho, a resolver problemas sozinho". Ter um "contacto individual com uma pessoa familiar". Usufruir, em suma, de "um espaço de descoberta de si próprio, de construção da sua própria identidade".
Dificilmente uma criança que passe 11 ou 12 horas numa escola tem esse tempo e esse espaço. "Temo que estas crianças que venham a passar 12 horas na escola se tornem pessoas com mais dificuldades em estabelecer relações pessoais, únicas e íntimas com outras pessoas."
15h15
"Professor, por que é que não me deixa dançar à vontade?" Na sala C do jardim-de-infância está a decorrer uma "aula" de dança. O miúdo de quatro anos que não gosta de ter de obedecer a coreografias vê o seu desejo satisfeito em dois minutos. Lá fora, no recreio, os do 1.º ciclo estão outra vez no intervalo. Para eles, a chamada componente curricular (o Português, a Matemática, o Estudo do Meio) acabou. Começa o período das "actividades de enriquecimento curricular" (Inglês, Educação Física, Expressões, conforme os dias), até às 17h30. Não são "aulas" obrigatórias, nem contam para a nota. Mas apenas dois alunos da escola as dispensam.
Hoje, a turma do Leandro vai para a Sala de Matemática fazer jogos com elásticos, enquanto a turma da Luísa, a menina que de manhã estava a desenhar uma bandeira, e de Ana Beatriz tem uma aula de 45 minutos de voleibol no ginásio. Passa das quatro da tarde, numa altura em que segundo David Dias, professor de Educação Desportiva e Física, os miúdos começam a ficar mais excitados. "Quanto mais cansados mais hiperactivos. Às sextas-feiras, nem queira saber!"
16h45
Depois do exercício físico e de mais um intervalo, um pouco de Inglês. A turma de Ana Beatriz faz fila à porta da sala de aula onde teve aulas durante o dia. "Hello teacher, may I come in", perguntam, um a um, à professora Elizabete Fonseca. "Yes you can."
Nos próximos 45 minutos vão repetir em coro os nomes das diferentes partes de uma casa - "bedroom, kitchen" - das diferentes partes do corpo - "hand, head, leg, shoulder..." -, os dias da semana, os meses do ano... Vários levantam o dedo, pedem para ir beber água. Têm os rostos vermelhos da ginástica e da brincadeira no intervalo. Estão um pouco irrequietos.
"Acordaram cedo, tiveram um dia cheio, uma aula de ginástica, estão cansados", diz a professora. Que não se entusiasma muito com o tema "alargamento do horário de funcionamento das escolas": "As crianças desta idade precisam muito dos pais. Há muitos que trabalham imenso e que se esforçam muito para estar com os filhos. Mas também há alguns que, creio, podiam vir buscá-los mais cedo e preferem deixá-los..."
17h35
A maioria dos alunos vai-se embora agora: são cinco e meia da tarde. No portão principal da escola, pais, avós e irmãos mais velhos vão chegando para levar as crianças. Gonçalo, sete anos, espera impacientemente pela mãe porque ainda tem uma aula de natação. "Vamos embora", grita quando ela chega. Patrícia Sousa, a mãe, auxiliar de acção educativa, pede-lhe paciência: "Sei por experiência própria, porque também trabalho numa escola, que a certa altura já não se consegue controlar as crianças. O ideal era que estas actividades de enriquecimento curricular, entre as três da tarde e as 17h30, fossem integradas nas aulas normais, para eles poderem ir mais cedo para casa, com mais calma." Como acontecia antigamente.
Mas, apesar das suas convicções, Patrícia acaba por ceder à vontade do filho. "Ele entra na escola às oito da manhã, venho-o buscar a esta hora e ainda tem a natação, nuns dias, futebol, noutros... é ele que quer."
Os pais das crianças que ficam na escola a partir das cinco e meia têm de pagar a chamada "componente de apoio à família" - a mensalidade é definida em função dos rendimentos, mas será sempre mais baixa do que a que seria necessário pagar a uma ama particular, por exemplo. Garantir cuidados adequados às crianças a preços comportáveis é, de resto, uma das preocupações da Confap. Dos cerca de 150 alunos do 1.º ciclo da Básica n.º 159, cerca de 30 ficam depois das 17h30. E ainda há os do jardim-de- infância.
É a Associação de Pais, em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa e o Agrupamento de Escolas Fernando Pessoa, que contrata e paga as monitoras para esta componente - que se traduz na guarda das crianças no início e no final do dia. A maioria das monitoras tem experiência de trabalho em ATL ou são estudantes, diz Cristina Lavrador.
18h00
Joana, a menina que pela manhã dava abracinhos ensonados, vai ao encontro da irmã mais velha, que aguarda no portão. É ela que costuma vir buscá-la. Enquanto alguns especialistas se dedicam a questionar se uma geração de crianças que passa 12 horas por dia longe da família poderá vir a ser feliz, Joana diz que por vontade dela só ia embora mesmo quando a escola fechasse. E a razão é simples: a avó, com quem fica até os pais chegarem do trabalho, "está um bocado doente, com dores nas pernas". Já na escola, há sempre amigos a correr e a brincar sem parar. E ela gosta de correr e brincar sem parar.
Depois das 17h30 os miúdos fazem os trabalhos de casa com a ajuda de uma monitora, numa salinha à parte. Ou brincam, vigiadas por outras duas, no ginásio. Não há qualquer actividade programada. "Não é possível dar-lhes mais actividades depois de um dia tão cheio", explica a professora Cristina Lavrador.
"As crianças precisam de brincar sozinhas, de escolher os seus jogos, de ver televisão, até, se não têm tempo para o fazer em casa", diz Dulce Gonçalves. "Ficaria preocupada se houvesse actividades estruturadas 12 horas por dia."
Mesmo assim, a psicóloga não esconde o receio de uma sociedade que procura resolver os problemas dos adultos mexendo no horário das crianças (em tempo de crise, quantos pais não cederão à tentação de arranjar mais um emprego para compor o orçamento se souberem que os filhos podem ficar mais tempo na escola?). "Provavelmente, vamos ter mais depressões, mais jovens com problemas alimentares, com dificuldades de comunicação e de expressão..."
18h30
Chove outra vez, os miúdos (cerca de uma dúzia, são os que restam) têm mesmo de ficar no ginásio. Há música. Jessica e o irmão Leandro de olhos em forma de amêndoa pulam e dançam como se estivessem ligados à corrente. A mãe de Raquel, a tal que "trabalha muito e quase não dorme", acaba de chegar para levar a filha. Chama-se Célia Sales, é professora universitária e psicóloga. E não concorda que as escolas estejam abertas mais tempo do que aquele que já estão. "Corremos o risco de estar a criar pessoas que daqui a dez anos, quando tiverem 18 anos, vão saber muito, mas que do ponto de vista emocional podem estar completamente desequilibradas."
Reconhece que o prolongamento de horário facilita a vida aos pais - ela própria dá aulas e nalgumas alturas só sai às oito da noite. "Mas, se calhar, não precisamos tanto dessa facilidade. Se calhar, mais flexibilidade dos horários das escolas vai permitir aos pais poderem trabalhar mais um bocadinho, quando o que devíamos estar a fazer era tentar reclamar mais tempo para dedicar à família."
Recentemente, o neuropediatra Nuno Lobo Antunes desdramatizou o debate que se gerou desde que a Confap divulgou a sua proposta: "Imensa gente frequentou colégios internos, portanto muito mais longe da família, e não me parece que isso lhes tenha tirado capacidade de imaginação ou autonomia."
Nuno Ferreira, pintor de automóveis, pai de Leandro e de Jessica, acaba de chegar ao portão. Uma das monitoras conduz as duas crianças ao pai. "Os miúdos só devem ficar na escola o tempo necessário", defende. "Às vezes, ela [Jessica] está tão cansada que adormece no carro, chega a casa e já nem janta: dorme até ao dia seguinte." A questão é que o "tempo necessário" depende "dos empregos das famílias", continua o pintor. E não há nada a fazer, diz, se os pais têm horários longos.
19h00
Hoje, António e Afonso, gémeos de três anos, e Maria, sete, são os últimos a ir embora. Estão nos braços das duas monitoras, sentados no chão do ginásio, a brincar, enquanto as auxiliares da escola tratam da limpeza, lavam o chão, preparam o cantinho dos bancos corridos e das mantas vermelhas onde, amanhã de manhã, uma vez mais, os meninos que chegarem às oito poderão passar o tempo até as aulas começarem.
Fernando Costa, engenheiro de telecomunicações, toca à campainha da escola. Espera que os três filhos apertem os casacos, digam adeus às monitoras. Nota que todas as medidas têm aspectos positivos e negativos. A generalização de um horário de funcionamento de 12 horas, a todas as escolas do 1.º ciclo, não é excepção. "Dificilmente hoje em dia as pessoas não têm de trabalhar até às 18h30-19h00."
Mas, definitivamente, este não é um assunto simpático para se debater no final de um dia de trabalho. Quase todos os pais falam-nos com uma expressão no rosto que pode bem querer dizer: "Eu não tenho de me desculpar por trabalhar!" a
Matemática e Português de manhã, Inglês à tarde. E ginástica, dança, trabalhos para casa. E no final brincadeiras. E a espera pelos pais. Texto Andreia Sanches
Fotografia Enric Vives-Rubio
"Não há aqui nenhum sentimento de culpa"
Aos seis anos, Maria do Mar é das melhores alunas da escola, conta o pai, Nuno Santos, vendedor de uma marca desportiva e "de tudo o que tem a ver com surf". Nuno fala à Pública numa tarde de sábado na Costa da Caparica: está sol, a praia está cheia de famílias com crianças que aproveitam uma breve pausa neste Inverno chuvoso. Ele, a mulher Vanda, consultora financeira, e Maria tentam fazer o que dificilmente podem fazer nos outros dias da semana: passar algumas horas seguidas juntos.
De segunda a sexta-feira, Maria do Mar entra na Escola Básica da Costa da Caparica às 8h00 e o pai costuma ir buscá-la perto das 19h30. Às vezes é a avó, mas só quando ele não consegue: "Isto é gerido ao momento, se estou no escritório e começo a ver que não consigo despachar-me, peço ajuda. É só quando estou mesmo na red line."
As manhãs estão por conta de Vanda. É ela que leva Maria à escola, o que significa levantar às sete, tratar de tudo "um bocadinho a correr", deixar Maria à porta do estabelecimento de ensino "no máximo às oito e cinco" para entrar no trabalho às nove e meia e só regressar a casa dez horas e meia depois.
Não é preciso fazer mais contas: não há volta a dar. Maria do Mar tem mesmo de passar 11 horas na escola, dizem os pais. Às vezes, a criança ressente-se. "Por vezes sinto algum cansaço nela, um bocadinho de ansiedade, por vezes ela diz: 'O pai nunca mais chegava para me ir buscar'."
"Não há aqui nenhum sentimento de culpa da nossa parte, nada disso", garante Nuno. "Tentamos compensar a Maria com carinho e afecto quando estamos com ela. É uma criança feliz, boa aluna, e também há dias em que chego à escola e ela me pede: 'Vá lá pai, deixa-me brincar mais um bocadinho!'" Essa é a melhor prova de que ela está bem onde está.
Nuno e Vanda não gostam de ver as coisas a preto e branco e não se sentem ansiosos. A infância deles, por exemplo, foi completamente diferente daquela que vêem a filha ter. "Depois do colégio, eu ia para casa e a minha mãe lanchava comigo, fazíamos juntas os trabalhos de casa e depois era a brincadeira", recorda Vanda. "Eu andava na escola de manhã e passava o resto do dia na rua a jogar à bola, ao berlinde ou ao pião", conta Nuno. Os miúdos têm hoje menos liberdade, mas em compensação são estimulados de outras formas: "Eu fui ao cinema pela primeira vez aos 11 anos, ela foi pela primeira vez aos três..."
De resto, o casal está contente com a forma como a escola da filha organiza o tempo das crianças: há aulas de manhã, actividades extracurriculares depois de almoço, atelier de tempos livres a partir das 17h30 - esta última etapa do dia é paga: 101 euros, com almoço incluído. As actividades são planeadas pela associação de pais, em parceria com a escola e a Câmara Municipal de Almada, e incluem karaté.
Nuno e Vanda sabem que a Confederação Nacional das Associações de Pais está a negociar com o Ministério da Educação para que todas as escolas do 1.º ciclo possam estar abertas 12 horas, com actividades de qualidade e subsidiadas, promovidas, por exemplo, pelas associações de pais. O ministério não se compromete para já. Mas os pais de Maria não só concordam como dizem que se não houvesse já escolas públicas, como a que a filha frequenta, a funcionar assim, não saberiam o que fazer.
"Não assisti nem ao primeiro passo nem à primeira palavra"
Acha que está tudo mal. Acha que as crianças acordam cedo de mais - "É um crime ele ter de se levantar, todos os dias, às sete da manhã." Que o Governo devia criar condições para que os pais com filhos pequenos pudessem ter horários mais reduzidos - sem com isso sofrerem grandes penalizações nos salários. E que os miúdos deviam poder fazer os trabalhos de casa com a ajuda dos pais - o que não acontece porque poucos pais têm tempo para isso. Teresa Sousa, 40 anos, acredita em tudo isto, mas vive uma realidade bem diferente. E não esconde a angústia.
Tem dois filhos - Rodrigo, sete anos, e Raquel, 12 -, que passam horas a fio na escola ou, quando esta fecha, na casa de uma avó. "Graças a Deus que ainda posso contar com a instituição-avó."
Serve-lhe de pouco consolo. "Gostava de poder acompanhar mais o Rodrigo. Já não acompanhei como queria a irmã. Vejo-os a crescer e sinto-me um bocadinho culpada. Perdi tudo, o primeiro passo da minha filha, a primeira palavra dela e isso é uma mágoa muito grande." Enquanto todas essas coisas aconteceram, estava a trabalhar.
Teresa diz tudo isto com lágrimas nos olhos. E revolta-se: "Liguei para o Ministério do Trabalho e perguntei o que acontecia se quisesse reduzir o meu horário de trabalho para dar atenção aos meus filhos, uma vez que essa possibilidade existe para quem tem filhos até aos 12 anos... disseram-me que podia reduzir o horário em 50 por cento, mas o ordenado seria reduzido também em 50 por cento, o que significa que ia trazer para casa pouco mais de 300 euros... só isso era a prestação da casa. E depois? Comia pão e água todos os dias? Não é possível."
Não é possível, dirá várias vezes ao longo da conversa com a Pública. Teresa vive na Margem Sul e trabalha em Lisboa - no call center do posto médico da TAP. Tem um horário rotativo (numa semana sai do trabalho às 16h30, noutra às 18h00 - "o pior é quando é às 18h00, porque só chego a casa depois das oito da noite").
Depois do jantar e do banho das crianças, ainda espreita, por vezes, os trabalhos de casa que o Rodrigo fez no atelier de tempos livres que funciona na escola entre as quatro e as seis e meia da tarde. "Por muito bom que seja o ATL, não é a mesma coisa ser eu a ajudar... lá ele não tem uma pessoa só para ele." Mas o tempo escasseia. "Às nove e meia da noite, ele já está cheio de sono. Acabo por estar com ele uma, duas horas por dia... é muito pouco."
O marido de Teresa, que faz manutenção eléctrica num hospital, por turnos, também tem horários de trabalho incompatíveis com um acompanhamento mais próximo dos filhos. E há anos que é assim. Teresa é das que não têm dúvidas do impacto negativo que esta ausência pode ter nas crianças e lembra o que se passou com Rodrigo, no jardim-de-infância: "Aos cinco anos, tentou fugir da escola, bateu nas auxiliares, andava muito revoltado. Não reconhecia o meu filho. Era uma escola com meninos com vários problemas. Se eu tivesse estado mais em casa e se ele pudesse ter estado mais tempo comigo, ele não tinha passado por aquilo... e nós também não."
Em vez de escolas abertas mais tempo, preferia que o Governo investisse na redução dos horários dos pais.
"Nas aulas aprendem, no ATL brincam, desanuviam"
Henrique Rodrigues, 42 anos, é um homem tranquilo que tem a cargo os dois filhos: Henrique, de sete anos, e Ana Carolina, de seis. É ele que os prepara de manhã, que os leva à escola às oito meia, que os vai buscar dez horas depois, que lhes faz o jantar à noite e os apoia nos trabalhos escolares. Sozinho. Tem a convicção de que a sua vida não é muito diferente da vida da maioria das famílias portuguesas. "Trabalho oito horas por dia, mais uma hora de almoço pelo meio, mais uma hora passada no carro para ir para o trabalho e outra hora para regressar a casa... são 11 horas", contabiliza.
"Acho que a maior parte dos pais precisa de ter os filhos ocupados 10, 11 horas, em segurança, a fazer coisas positivas. Eu sou técnico comercial. Mas na maioria das profissões há a mesma necessidade. Por isso, concordo que todas as escolas estejam abertas 12 horas por dia", continua. Sobretudo porque não falta quem, como ele, não tenha meios para pagar a uma ama. Ou quem, como ele, não tenha sempre algum familiar disponível para ir buscar as crianças à escola depois de as aulas acabarem.
Ana Carolina e Henrique (o filho) andam na Escola Básica n.º 19 do Agrupamento de Escolas Francisco Arruda, em Lisboa - um dos estabelecimentos de ensino públicos que já funcionam quase 12 horas por dia.
"Foi a Junta de Freguesia [da Ajuda] que criou a Componente de Apoio à Família", onde se inserem as actividades para ocupar as crianças depois de as aulas terminarem e antes de estas começarem. Henrique paga 36 euros por mês, pelos dois filhos, por estas actividades. "Fazemos desenhos, às vezes jogos", conta Ana Carolina.
Henrique diz que gostaria de passar mais tempo com os filhos, mas não vive com angústia a inevitabilidade de ter, de facto, de trabalhar. Pelo contrário. Acha que todo o tempo que passam na escola é importante. "Acaba por ser nesse período de ATL que eles brincam, que desanuviam a pressão e o stress do dia e da sala de aula, acho que é nessa altura que criam laços mais fortes com as outras crianças. A nível geral, a minha avaliação acaba por ser positiva."
Henrique valoriza muito a socialização. "Vejo algumas crianças que passam horas em casa, fechadas no quarto, ligadas à Internet, à televisão, acho que as crianças estão cada vez mais fechadas no seu mundo e não é isso que pretendo para os meus filhos. Quero que estejam em contacto com pessoas, com outras crianças, que façam desporto. Por isso, mesmo que tivesse alguém que os pudesse ir buscar às 17h15 ou era para ocupar o resto do dia a fazer desporto ou outra actividade lúdica (porque gostava que eles fizessem mais)", ou então não colocaria sequer essa hipótese.
"Acho que eles estão bem." a

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