Gaza é uma maldição bíblica?

Foi em Gaza que Sansão destruiu o templo, num acto suicida em que matou 3000 filisteus. Mas foi também em Gaza que judeus, cristãos e muçulmanos coexistiram e se tornaram "os melhores produtores de vinho". Deixem de chamar santa a esta terra e talvez a paz seja possível.

 

Se acreditarmos na profecia de Sofonias, Deus já definiu o desfecho da mais recente guerra entre israelitas e palestinianos: "Gaza será abandonada" (2:4). É este o destino de uma cidade que um peregrino que por aqui passou descreveu, em 570 d.C., como "magnífica e repleta de coisas maravilhosas; os seus homens são os mais honestos, distinguindo-se pela generosidade e hospitalidade em relação a amigos e visitantes"?

Também Amós (1:6), um outro profeta, deixou uma ameaça: "Assim fala o Senhor: (...) 'Porei fogo aos muros de Gaza.' O qual devorará os seus palácios. Exterminarei os habitantes de Azot [Ashdod]. E o que tem na mão o ceptro de Ascalon [Askhelon]."

A primeira referência bíblica a Gaza está no Livro de Génesis (10:19), definida como fronteira de Canaã, "na direcção" de Sodoma e Gomorra. Inicialmente uma "guarnição egípcia", Gaza foi uma das cinco cidades (Pentápolis) dos filisteus, navegadores e guerreiros de origem indo-europeia que chegaram e se instalaram, por volta de 1180 a.C. Cobiçada por muitos, fosse o rei David (o que matou Golias) ou Herodes, Pompeu ou Napoleão, assírios ou aqueménidas, hasmoneus ou selêucidas, por aqui passaram vários povos que deixaram marcas.

Agora, com Gaza mergulhada em mais um banho de sangue, um novo confronto entre cananeus/israelitas e filisteus/palestinianos, o exegeta do Antigo e Novo Testamentos Joaquim Carreira das Neves iliba Deus de responsabilidade.

"Realmente, o profeta Sofonias faz referência a Gaza, mas trata-se de um oráculo", explica o padre católico franciscano à Pública, por telefone.

"No século VII a.C., todo o problema andava à volta do chamado sincretismo, isto é, os judeus viviam como simultaneamente monoteístas e politeístas. Naquele tempo havia casamentos mistos entre judeus e pagãos e isso durou até ao exílio para a Babilónia. Só depois da Babilónia é que os judeus passaram a ser proibidos de casar com não judeus. Antes do exílio, havia o sincretismo em relação aos deuses, fossem de Tiro ou de Sídon."

"Foi isso que levou Sofonias aos oráculos", sublinha Carreira das Neves. "A Bíblia está carregada de retórica e de símbolos. Quando os profetas viam desgraças, no reinado norte, capital na Samaria, ou no reinado sul, capital em Jerusalém, lançavam uma retórica contra os que ajudavam o paganismo. E para os que ajudavam o paganismo na parte de Judá, a região mais importante, Sofonias fez o oráculo em que fala de Gaza, de Ashkelon, de Ashdod. Há realmente aqui uma maldição, mas não passa de retórica, normal naquele tempo."

A mesma explicação é dada pelo franciscano ao que considera "a lenda ou saga de Sansão - mais uma estória que uma história". Naquele tempo, lê-se no capítulo 13 dos Juízes, "os filhos de Israel continuaram a fazer mal diante do Senhor, que os entregou nas mãos dos filisteus durante 40 anos". Para os salvar, Deus "ofereceu" à mulher estéril de Manué, da tribo de Dan, um filho, na condição de "a navalha não tocar a sua cabeça".

A força de Sansão estava nos cabelos, mas havia uma fraqueza que ele não conseguia controlar. "Só gostava de filisteias, embora estivesse sempre a castigar os filisteus", observou Carreira das Neves.

Quando Sansão, que os filisteus humilharam, arrancaram os olhos e acorrentaram, fez ruir as colunas centrais do templo de Dagon, depois de a amada Dalila ter revelado o segredo que o tornava invencível, "foi no contexto dessa luta contra o inimigo".

O mártir suicida judeu

Ainda hoje Sansão, um suicida que matou 3000 filisteus, incluindo mulheres e crianças, ao destruir o templo em Gaza (a terra que, por ironia do destino, se tornou numa fábrica de bombas humanas do movimento islâmico Hamas), é venerado como um herói entre os judeus.

"Sansão matou na sua morte muito mais homens do que antes matara em toda a sua vida", informa a Bíblia (Juízes 16:30). Em 26 de Julho de 2007, uma incursão do exército em Gaza contra o Hamas teve o nome de código de Operação Pilares de Sansão.

Flávio Josefo (ou Yosef Ben Mattityahu), historiador, soldado e sacerdote judeu, nascido em Jerusalém durante a ocupação romana, escreve na sua famosa obra Antiguidades Judaicas: Sansão "merece ser admirado pela sua coragem e força, e magnanimidade na sua morte, e que a sua ira contra o inimigo tenha ido tão longe ao ponto de morrer com eles é de uma virtude extraordinária".

Insistimos: por que é que Deus, supostamente bom, tudo fez para alimentar o ódio entre cananeus e filisteus? Devemos fazer remontar o actual conflito israelo-palestiniano a esse tempo? Carreira das Neves vê o problema por outro ângulo: "Ainda falamos de Terra Santa, mas isso é uma metáfora. Não há lugares santos. O problema é que judeus e muçulmanos sacralizaram a sua terra. Quando isto acontece, a situação torna-se muito complicada. Porque sacralizar é fazer com que uma terra se torne numa ideologia religiosa. É considerar que a terra, sendo sagrada, não pode ser dividida por dois povos. E isso é verdade não só para os fundamentalistas islâmicos como para os judeus ultra-ortodoxos fundamentalistas, estejam eles em Israel ou na América."

Interessante, notou o islamólogo Andrew Rippin, é que a figura bíblica de Sansão não seja mencionada pelo nome no Corão, embora tenha sido incorporada na história profética por teólogos muçulmanos medievais, como Abu Já'far ibn Járir al-Tabari (310-903) e Ahmad ibn Muhammad al-Tha'labi (427-1035).

Al-Tabari e Al-Tha'labi apresentam um "Sansão islâmico" guiado por Deus para afastar o seu povo da idolatria, constatou Rippin num paper da School of Oriental and African Studies (SOAS), em Londres. Na versão de al-Tha'labi, por exemplo, Sansão sobrevive graças à intervenção divina, depois de vencer e matar os inimigos.

Pensadores modernos, como Abdal Hakim Murad, formado em Cambridge e em Oxford, têm uma opinião contrária. Num artigo intitulado Recapturing Islam from the terrorists, e publicado em 2001, após os ataques da Al-Qaeda nos EUA, notou Murad: "Os atentados suicidas são estranhos ao ethos corânico e a prova é que o profeta Sansão está completamente ausente das nossas escrituras."

O conquistador Alexandre

Muito depois de Sansão, Gaza voltou a conhecer destruição quando, em Outubro de 332, depois de três a cinco meses de cerco (há as duas versões), a cidade foi conquistada por Alexandre, o Grande, no avanço das forças macedónias em direcção ao Egipto.

Como castigo pela não rendição do governador local, toda a população masculina foi massacrada. As mulheres e as crianças foram vendidas como escravas. A região foi posteriormente repovoada com beduínos (nómadas) em áreas circundantes.

Gaza, que gozava de relativa independência, não queria ceder o controlo do comércio - era uma importante rota na costa do Mediterrâneo (a 15 quilómetros do mar), ligando o Norte de África (Egipto) ao Levante (Síria). Só à terceira investida contra a cidade fortificada, e depois de um grave ferimento no ombro, Alexandre saiu vitorioso.

Batis, o governador persa, teve o mesmo destino que Aquiles deu a Hector, príncipe de Tróia. Amarraram-lhe uma corda aos tornozelos e foi arrastado, vivo, preso a uma quadriga, pelas ruas da cidade. Ainda que Alexandre gostasse de ser misericordioso com os adversários, terá ficado furioso porque o eunuco Batis não se ajoelhou, permanecendo silencioso e numa atitude de desprezo.

Os egípcios, exultantes com a derrota dos inimigos persas - ainda hoje Cairo e Teerão disputam a influência em Gaza -, acolheram Alexandre como rei e entregaram-lhe o trono dos faraós. Com a coroa do Alto e Baixo Egipto, ele era visto como a incarnação de Rá e Osíris.

Cruzados e otomanos, britânicos e israelitas

Em 1100, a Gaza dos muçulmanos fatimitas (xiitas) caiu nas malhas dos Cruzados que nela provocaram, segundo diversos relatos, "uma grande devastação". Em 1517, a cidade foi integrada no Império Otomano e assim permaneceu durante 400 anos, prosperando com os negócios de especiarias, azeite, ouro e incenso.

Ao contrário dos cruzados, que massacraram a pequena comunidade hebraica, os otomanos acolheram em Gaza os judeus fugidos da Inquisição na Península Ibérica, permitindo que eles e os samaritanos produzissem "os melhores vinhos regionais". Também exportavam cevada para cervejarias na Europa.

Sob os turcos, a convivência entre judeus, cristãos e muçulmanos era pacífica. Em 1965, proveniente de Salónica, chegou a Gaza o falso messias Sabbatai Zevi. O primeiro discípulo chamava-se Natan e a cidade rapidamente atraiu um movimento messiânico.

Durante a I Guerra Mundial, Gaza tornou-se campo de batalha. Os otomanos resistiram a dois ataques ingleses, em 1916 e em 1917, mas neste ano foram derrotados pelas tropas do general Allenby. Após o colapso da Sublime Porta, a administração da Palestina (incluindo Gaza) foi entregue aos britânicos, no âmbito de um mandato da Liga das Nações. Em 1947, depois de sangrentos motins e confrontos envolvendo grupos árabes, milícias judaicas e as autoridades mandatárias, a recém-criada ONU dividiu o território em dois estados - um judaico e um árabe.

O Egipto, desconfiado de que o rei Abdallah da Transjordânia fizera um pacto com os sionistas de David Ben-Gurion e Golda Meir, invadiu e ocupou Gaza. Abdallah, por seu turno, apoderou-se da Margem Ocidental do rio Jordão ou Cisjordânia. Em 1948, egípcios e jordanos (Abdallah, que prometera a Golda Meir uma boa vizinhança, não resistiu à pressão dos "irmãos árabes"), sírios e iraquianos declararam guerra a Israel. Mas Israel venceu.

Gaza, que tinha apenas oito mil habitantes, teve de acolher 200 mil dos 700 mil refugiados palestinianos - alguns deles são originários de povoações sobre as quais o Hamas hoje lança rockets. Aldeias que tinham os nomes árabes de Isdud e Majdal e agora são cidades com os nomes hebraicos de Ashdod e Ashkelon.

Em 1949 foi assinado um acordo de armistício e Gaza, uma das mais antigas cidades do mundo, passou a chamar-se Faixa de Gaza, uma espécie de "linha verde" que separava dois países inimigos. O Egipto nomeou um governador militar sem optar pela anexação e, ao contrário do que fez a Jordânia aos palestinianos da Cisjordânia, não ofereceu cidadania aos palestinianos de Gaza.

Em 1956, Gaza foi ocupada pelos israelitas (apoiados pelos ingleses), depois de o Presidente egípcio, Gamal Abdel Nasser, ter nacionalizado o Canal do Suez, mas o Presidente Eisenhower obrigou-os à retirada - na altura Washington mantinha a neutralidade, Telavive não era ainda aliado estratégico.

Em 1967, os israelitas voltaram, depois de ganharem em "seis horas" a Guerra dos Seis Dias (a Jordânia perdeu a Cisjordânia e Jerusalém Leste, o Egipto perdeu Gaza e a península do Sinai, e a Síria os Montes Golã). Os vencedores instalaram-se na sede do antigo governador militar egípcio e colocaram na parede uma máxima militar romana: "Que aquele que deseja a paz se prepare para a guerra."

A partir de 1971, começou o que a revista The Economist descreveu como "a paixão de Israel pelos territórios" - 8000 colonos em 21 colonatos, espalhados por 40 por cento da terra arável e com controlo sobre a maioria das fontes de água potável. "Uma imoralidade", acentuou o historiador judeu Avi Shlaim (The Guardian).

E depois do Hamas?

Em 1987, quando eclodiu a primeira Intifada, a opressão em Gaza tornara-se insuportável. Israel impedia o desenvolvimento económico e suprimia qualquer actividade política, incluindo os sindicatos que os egípcios haviam permitido. Até o conselho legislativo, eleito em 1962 e presidido pelo respeitado cirurgião Haider Abdel Shafi - um dos raros árabes a aceitar a divisão da Palestina em 1947 -, acabou dissolvido.

Crianças eram mortas só por transporem o portão de casa durante o recolher obrigatório. O exército entrava na intimidade dos lares a qualquer hora, humilhando maridos e mulheres, pais e filhos - vários soldados denunciaram posteriormente estas ordens.

Mais grave: enquanto asfixiava os nacionalistas laicos, Israel deu liberdade de acção a um ramo da Irmandade Muçulmana - o Hamas -, que começou por ser uma associação de caridade dirigida pelo xeque Ahmed Yassin e depois se transformou numa organização terrorista.

Em 1994, porque o Hamas já era uma ameaça existencial, Yasser Arafat foi autorizado a regressar a Gaza depois de assinar os Acordos de Oslo, em que Israel e a OLP se reconheciam mutuamente. Para muitos palestinianos, entre eles Abdel Shafi - mas também para o Hamas e todas as outras facções da OLP, excepto a Fatah -, "foi um erro fatal". Porque Arafat aceitou autonomia (não independência e soberania) sem exigir o fim da colonização.

Oslo agravou as divisões palestinianas: entre seculares e islamistas; entre a velha e a nova guarda; entre os do interior e os do exílio, entre moderados e radicais - entre os clãs pobres de Gaza e as dinastias de elite na Cisjordânia. Arafat ficou na posição esquizofrénica de tentar satisfazer as aspirações do seu povo e garantir a segurança de Israel. Falhou ambas as tarefas.

Incapaz de conter a força crescente do Hamas e sob pressão de Israel, Abu Ammar (como era conhecido o líder histórico palestiniano) começou por prender centenas de opositores de Oslo, fossem activistas de direitos humanos ou combatentes de grupos armados. Depois, sem quaisquer concessões significativas nas negociações, militarizou a segunda Intifada, adoptando a táctica dos islamistas dos atentados suicidas.

Em 2005, um ano após a morte (por doença) de Arafat, Israel retirou unilateralmente todos os soldados e colonos de Gaza, mas continuou a controlar os acessos por terra, mar e ar ao território, que muitos compararam a uma prisão de 360 quilómetros quadrados com 1,5 milhões de reclusos. Mais grave: Israel enviou para a Cisjordânia uma nova vaga de 12 mil colonos, dificultando ainda mais a criação de um Estado palestiniano viável.

Em 2006, num voto de protesto contra a corrupção e inépcia da Fatah, os palestinianos deram a vitória, por maioria absoluta, ao Hamas em eleições legislativas. Em vez de aceitarem os resultados da primeira experiência democrática realmente genuína no mundo árabe (à excepção, talvez, do Líbano), Israel, EUA e Europa impuseram sanções e um bloqueio ao Hamas, quando alguns dirigentes mais pragmáticos (como Ismail Haniyeh) enviavam sinais de que poderiam aceitar uma solução de dois estados (negociando o "direito de retorno") nas fronteiras de 1967. Saíram reforçados os extremistas, os que privilegiam a "ideologia islâmica" em detrimento da "causa nacional palestiniana".

Sim, em oito anos, o Hamas não deixou de lançar rockets sobre as cidades do Sul de Israel - mas abrandou os disparos sempre que uma trégua negociada com o Egipto entrava em vigor. O mesmo não se pode dizer do bloqueio israelita, que não foi aligeirado, nem dos assassínios selectivos, que nunca foram interrompidos. Nem da expansão dos colonatos na Cisjordânia, que foi acelerada.

Com 80 por cento da população de Gaza a viver com menos de dois dólares por dia, com cortes diários de água, luz e combustíveis, o Hamas recorreu à única arma ao seu dispor: o terror. Em Dezembro, anulou o cessar-fogo e lançou dezenas de projécteis sobre Ashkelon e outras povoações israelitas.

A guerra em Gaza começou em Dezembro. O número de mortos aproxima-se dos mil - um terço dos quais mulheres e crianças. Nenhuma das partes aceita um cessar-fogo. Ambas querem clamar vitória. Mas, como Sansão mostrou, se o templo ruir, morrem todos.

Não, não chamem santa a esta terra.

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