Torne-se perito

Da tortura a Guantánamo, um legado já está a ser julgado

A "autorização para torturar e ignorar a lei" vai continuar a ser questionada nos tribunais e investigada no Congresso muito depois da saída da Administração

A George W. Bush tem dito por estes dias que a História julgará as suas decisões difíceis. Tem repetido que manteve a América segura e lembrado mais de uma vez o 11 de Setembro. Mas ainda antes da História, algumas dessas decisões estão a ser julgadas agora mesmo, nos Estados Unidos.Entre discursos e entrevistas de despedida, todos os dias houve notícias sobre as políticas que Bush evitou referir nas suas intervenções. Um juiz de Washington mandou libertar um detido de Guantánamo. O ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, David Miliband, afirmou que a "guerra ao terrorismo" é uma doutrina "equivocada" que uniu os extremistas contra o Ocidente. O attorney general (ministro da Justiça) designado de Obama, Eric Holder, disse no Congresso que waterboarding (simulação de afogamento, que a CIA usou em pelo menos três presos) é tortura.
Pelo meio, Susan Crawford, actual responsável do Pentágono para decidir que suspeitos devem ser acusados em Guantánamo, afirmou que Mohammad al-Qahtani foi torturado e que por isso não ordenou o seu julgamento. Foi a primeira vez que alguém ligado à Administração disse: "Nós torturámos".
As palavras de Miliband sublinham que os ataques aos direitos humanos na "guerra ao terrorismo" produziram um legado de descrédito. O caso de Qahtani, o suspeito de ter planeado ser o 20.º suicida do 11 de Setembro que Bush não pôde julgar, mostra como é também um legado de inconsequência.
"Penso que o Presidente Bush era um homem bom, tão enfurecido pelo 11 de Setembro que pôs umas palas ideológicas e se esqueceu que representamos outras coisas: liberdades civis aqui em casa, uma Constituição, direitos humanos globais", resumiu à CBS o historiador Douglas Brinkley.

Escutas e Abu Ghraib
A guerra no Afeganistão começou a 7 de Outubro de 2001: os EUA faziam os primeiros prisioneiros e o Pentágono decidia que "as luvas tinham saltado". Ainda em Outubro, Bush assinava o Patriot Act, uma lei que aumentava o poder para operações de vigilância e que seria reforçada por uma ordem executiva secreta a autorizar escutas a americanos sem mandado judicial. Entretanto, o Congresso limitou as escutas, revendo uma lei existente, mas a constitucionalidade dessa lei continua a ser questionada nos tribunais.
Antes do fim de 2001, uma ordem de Bush definia que os acusados de terrorismo seriam julgados por comissões militares secretas, mas o Supremo Tribunal considerou-as inconstitucionais em 2004. Novas comissões aprovadas pelo Congresso perpetuaram regras atacáveis e só produziram duas condenações. Em 2008, o Supremo infligiu-lhes um novo golpe, ao dar aos presos a possibilidade de questionarem a legalidade da sua detenção.
Guantánamo abriu em Janeiro de 2002. Fora do país, oferecia o espaço que a Administração queria para invocar que ali não estava obrigada a aplicar a lei. No mês seguinte, o Presidente emitia nova ordem negando aos suspeitos "combatentes ilegais" taliban e da Al-Qaeda as protecções das Convenções de Genebra para os soldados das tropas regulares.
2002 foi o ano dos memorandos: em Agosto, um memorando secreto do Departamento da Justiça concluía que não há limites nos interrogatórios coercivos aos suspeitos; em Dezembro, era o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, que autorizava técnicas agressivas em Guantánamo.
As humilhações de detidos na prisão iraquiana de Abu Ghraib começaram em 2003, o escândalo rebentaria em Abril de 2004. A Administração mantém que tudo resultou das acções individuais dos soldados entretanto condenados. Alberto Mora, advogado-geral da Marinha, disse à revista Vanity Fair que Anthony Tabuga, o general que investigou os abusos, "sente hoje que a causa próxima foram os memorandos a autorizar tratamento abusivo". Mora afirma ainda que Abu Ghraib e Guantánamo foram, como símbolos, de uma enorme eficácia na recruta de jihadistas.

Um novo dia em Washington
"O maior erro foi sancionar a crueldade aos mais altos níveis da Administração como resposta ao terrorismo. A adopção da tortura, as prisões secretas e as rendições [capturas de suspeitos noutros países] reduziram a reputação dos EUA como líder mundial", disse ao PÚBLICO Sahr Muhammed Ally, da Human Rights First. Jennifer Daskal, advogada da Human Rights Watch, concorda que "o mais grave foi a política geral de autorização para torturar e ignorar a lei".
Ambos colocam em Obama a pressão de "agir rapidamente para recolocar as decisões numa linha que respeite os valores americanos e seja eficaz, em vez de contraprodutiva". Daskal lamenta a "erosão das liberdades dos americanos, nomeadamente com as escutas", mas não quer pensar que estas decisões terão consequências de longo prazo. Prefere sublinhar que "é um novo dia em Washington".

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