The show must go on

Christophe Barratier promove com êxito o encontro entre os musicais da Metro e o realismo poético francês dos anos 1930.

É uma grande surpresa e o que tem de melhor é ser um filme com 70 anos. Ou, explicando melhor, "Paris 36" não é um filme dos nossos dias - a matriz evidente são os musicais de segunda linha da MGM dos anos 1930, os célebres "putting on a show" com Judy Garland e Mickey Rooney, revisto pelo prisma de um cinema popular francês que já não existe.

Christophe Barratier (realizador de "Os Coristas", um dos maiores êxitos de sempre do cinema francês) não quis mesmo fazer um filme de hoje - e essa honestidade, o seu refúgio num classicismo quase antediluviano, torna "Paris 36" num filme que invoca uma memória do cinema demasiado esquecida, homenageando-a e recriando-a ao mesmo tempo. Sem sequer procurar actualizá-la, mas sem por isso tombar numa nostalgia serôdia pelos tempos que já lá vão - tanto mais irónico quanto a nostalgia, a incapacidade de recapturar o momento passado, é um dos temas do filme.

Os tempos que já lá vão, no filme de Barratier, são os momentos de glória do Chansonia, um velho teatro de music-hall comprado por um especulador imobiliário. Estamos em 1936 e a vitória da Frente Popular de Léon Blum nas eleições, com o seu sonho de uma utopia comunitária popular, chega aos técnicos e artistas desempregados do Chansonia, que ocupam a sala e a decidem reabrir em gestão cooperativa, com vista a comprá-la e mantê-la como um teatro. Pigoil, o contra-regra que apenas viveu para o teatro, cansado de levar pancada da vida e sonhando com o impossível regresso ao passado, criado com delicadeza por Gérard Jugnot, torna-se no motor da cooperativa. Mas mesmo que o que se siga seja decalcado do livro de estilo da comédia musical clássica (sem faltar sequer um triângulo amoroso heroína-herói-vilão que vimos, mais recentemente, no "Moulin Rouge!" de Baz Luhrmann), Barratier tempera esse lado efusivo convocando abertamente o "realismo poético", popular e trágico, que nomes como o argumentista Jacques Prévert ou os realizadores Marcel Carné ou Jean Becker cristalizaram no cinema francês da época.

Com uma absoluta honestidade de processos, rodando num espantoso décor construído de raíz em estúdios checos pelo cenógrafo Jean Rabasse (desvendado num plano único tourde- force logo na abertura e fotografado com carinho por Tom Stern, habitual colaborador de Clint Eastwood), Barratier faz de "Paris 36" um filme admiravelmente modesto, ao mesmo tempo definitivamente anacrónico e resolutamente moderno. Nem os filmes de Prévert, Carné ou Becker tinham a energia fervilhante aqui impressa ao lado dos bastidores, nem os musicais da Metro tinham a melancolia triste e tocante dos momentos dramáticos (ou, sobretudo, acabariam na nota triste e resignada com que o filme encerra). E hoje dificilmente um musical se faz sem introduzir uma qualquer dose de pós-modernidade que o torne relevante para audiências não habituadas ao género, mas a mensagem de "the show must go on" deste filme propositadamente alheio a modernices parece particularmente apropriada, pelo acaso das circunstâncias, a este "zeitgeist" de crise e incerteza (não tão longe assim da França de 1936...).

É um difícil jogo de equilíbrios, que Barratier nem sempre resolve a contento (algumas das soluções narrativas são demasiado convencionais, mesmo sabendo que é suposto assim ser) mas leva a bom porto com inteligência, entusiasmo e sinceridade, bem ajudado pela impecável produção técnica e por um elenco que imprime personalidade aos arquétipos concebidos pelo realizador. E, a par de "Austrália" e "O Estranho Caso de Benjamin Button", "Paris 36" é a terceira acha para o regresso de um certo fôlego romanesco do cinema clássico à produção contemporânea.

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