Sonho com fúria

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Os americanos Elevator Repair Service regressam à Culturgest com "O Som e a Fúria (7 de Abril de 1928)".

Meteram-se numa aventura de sete horas com "Gatz", espectáculo a partir do livro de F. Scott Fitzgerald, "O Grande Gatsby", que em 2007 esteve na Culturgest, em Lisboa. Antes já tinham entrado no universo de uma certa literatura americana com espectáculos a partir da obra de Henry James, Jack Kerouac.

Esta companhia de Nova Iorque que em 1991 resolveu chamar-se Elevator Repair Service, e que os jornais identificam como ERS, entrou agora no vórtice do rapaz idiota de William Faulkner, levando para o palco a primeira secção de "O Som e a Fúria" (1929) - é por isso que o espectáculo se chama "O Som e a Fúria (7 de Abril de 1928)".

John Collins, fundador e encenador dos ERS, diz que aqui, na mais experimental das quatro secções, está todo o livro (dividido em quatro, cada uma com o seu narrador e o seu ponto de vista sobre os acontecimentos). E o que se pensa é: não será difícil levar para o palco o declínio de uma família aristocrata do Sul, será é impossível levar para aí um narrador, Benjy Compson, 33 anos, mudo, que não sabe o que é o tempo. Será é impossível transpor este fluxo de consciência que na escrita se vai tentando penetrar. Fazê-lo é um risco que Collins, ao telefone no aeroporto de Chicago, vindo de uma produção com o Wosster Group, assume. Hoje, amanhã e depois na Culturgest, em Lisboa.

"Life's but a walking shadow, a poor player
(...). It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury
Signifying nothing"

"Macbeth", William Shakespeare

"O Grande Gatsby" e a primeira parte de "O Som e a Fúria" passam-se num período de tempo não muito distante (o primeiro em 1925, o segundo em 1928), e pouco antes da era da Grande Depressão. São duas obras que olham para a América. Que América é a sua?

São as diferentes Américas, apesar de serem do mesmo período, e dizem qualquer coisa sobre o quanto isoladas são algumas das regiões americanas. Em "O Grande Gatsby" é um homem do Midwest que vem para Nova Iorque e que no fim regressa ao Midwest. Em "O Som e a Fúria" são as pessoas que ficam enredadas no Sul americano, nas partes recônditas, é a herança da escravidão e de uma certa cultura desmoronada.

As obras representam duas faces, um país dividido. No Sul é uma zona que, mais de 60 anos depois da Guerra Civil [1861-1865], vive como se fosse noutro país. Faulkner queria representar esta parte da América desmoronada que tinha perdido a sua identidade e a sua grandeza. Eu cresci lá e quis sair exactamente por a cultura ser tão diferente do resto da América. "O Grande Gatsby" representa os Estados Unidos mais exuberantes, prósperos, em celebração contínua e onde as pessoas têm muito dinheiro. Nas duas histórias as pessoas têm fantasias de escapar do que são: em "Gatsby", a sua própria reinvenção falha, e em "O Som e a Fúria" é uma história sem perdão, as personagens têm vontade de escapar mas é sobre a sua incapacidade de o fazerem.

Interessa-me a literatura desse tempo, não sei o que dizer da América agora. Umas das coisas que os dois espectáculos mostram é a complexidade demográfica e cultural do país. A América está sempre a discutir consigo própria sobre aquilo que é e estes dois romances representam diferentes facetas dessa discussão.

Lembra-se de quando começou a sua relação com "O Som e a Fúria", de Faulkner?

Na universidade. Cresci no Sul dos EUA, não muito longe do sítio onde se passa o romance [um território inventado, o condado de Yoknapatawpha, no Mississipi] e tinha uma ligação com a literatura do Sul. Tive um professor obcecado por Faulkner, lemos "O Som e Fúria". A minha primeira impressão foi achar confuso, mas uma das coisas que aprendi é que "O Som e a Fúria" não é para ser descodificado, não se pode tentar perceber tudo. Quando se lê, é-se tomado por ele. E à medida que a informação se acumula, começa-se a perceber. De frase para frase por vezes não faz sentido, ele [Benjy, o narrador da primeira secção] está sempre a fazer saltos no tempo.

Gostei de ler o romance, mas não do mesmo modo que se lêem os outros romances. É como um sonho, estar na cabeça de alguém que está a dormir e a sonhar. É daqueles livros que posso ler e ler e ler e descobrir sempre coisas novas. Uma das coisas que se nota é o quão trágico, triste, depressivo é. Depois de fazer pesquisa sobre o que motivou Faulkner a escrever percebi que a sua beleza é a inocência. No fim, é o mais interessante.

Em que tipo de inocência está a pensar?

A extrema inabilidade de Benjy para reconhecer a passagem do tempo - o que está muito ligado à estrutura da obra. Na sua cabeça não há idade. Há as personagens à volta dele - a mãe sempre a falar da morte, a queixar-se de estar velha e doente - mas ele tem uma espécie de... não direi felicidade mas contentamento, beleza na ignorância da idade. Há um facto trágico que são as saudades da irmã [mais velha, Caddy, uma das suas paixões, expulsa da propriedade por ter engravidado de um homem que não era o marido]. Porque não faz essa distinção temporal entre passado e presente, ele pode até recuperar o que perdeu. O passado está muito activo na sua mente. É o mais entusiasmante na história. Faulkner criou esta ideia de uma pessoa tão inocente, incorruptível... Quando escreveu o livro teve a imagem de crianças a brincarem fora de casa enquanto decorria o funeral da mãe e elas não percebiam o que era o funeral, a morte. Isso levou-o à ideia de inocência. Daí Beny, alguém eternamente criança.

Foi escolher logo a secção "mais difícil", "7 de Abril de 1928", pelo menos a mais experimental da obra, porquê?

Por essa mesma razão! Porque foi a que me impressionou mais. Depois de "Gatz", quando decidimos que íamos fazer outro romance, queríamos uma coisa completamente diferente, não queríamos usar as mesmas ferramentas. Era uma oportunidade de trabalhar com Faulkner.

Há coisas em comum entre as duas obras - são ambas modernistas e têm uma espécie de simplicidade e clareza no estilo, na prosa. A razão por que escolhemos a primeira secção é pelos problemas que apresenta. Procuramos problemas interessantes para resolver. Não sabíamos como seria a estrutura mas queríamos pô-la em palco. Das quatro secções é a que cobre a maior parte da história: as memórias de Benjy vão dos três aos 33 anos. Essa secção contém a história da família e eu não queria fazer outro espectáculo de sete horas. Havia razões práticas para o escolher. Pelo modo como Faulkner o escreve acho que não seríamos capazes de manter a atenção do público se passássemos o livro todo para o palco. Além disso, Faulkner pensou parar aí, ele disse que escreveu o resto para ajudar a compreender algumas personagens.

Falou em problemas que a obra apresenta, quais?

Especificamente no problema dos saltos temporais. Em cada página o cenário pode saltar 30, 10 anos de um parágrafo para outro. Tínhamos que arranjar modo de representar diferentes personagens e esses tempos. Tínhamos que ensinar o romance a nós próprios.

Quando decidiu que um actor ia representar mais do que uma personagem achou que isso ia iluminar a compreensão da obra ou fê-lo por outra razão?

Sim. Não queríamos simplificar o romance. O que o torna grande e o que lhe dá identidade é a estrutura complexa. Escolher vários actores para representar a mesma personagem em idades diferentes pode tornar mais difícil a identificação das personagens. Mas traz a complexidade estrutural do romance, mantém este tipo de sonho que queríamos preservar e amplificar. Experimentámos muitas coisas. Simplificá-lo era o menos interessante. Tivemos consciência de que era uma má ideia explicá-la. De alguma forma as opções que tomámos têm complexidade e são fiéis à complexidade de Faulkner. É um risco. O espectáculo é bem-sucedido de uma forma que o romance também o é, tem várias camadas de interpretação.

Antes de ser encenador foi estudar Direito, queria até fazer qualquer coisa na política. Isto reflectiu-se nas suas escolhas como encenador?

Há uma parte de mim que acredita ser racional, que se guia pela razão, e outra que é o oposto. Acredito que há qualquer coisa de irracional em qualquer artista. Acho que haverá sempre complexidade em qualquer boa obra de arte e uma certa verdade. Em ambos os casos [no Direito e na arte] a procura da verdade é complicada.

Nas vossas produções combinam objectos que encontram na rua com textos literários ou textos "encontrados", e o vosso processo de trabalho começa com leituras à mesa. O método é devedor da sua colaboração como responsável pelo som e luz com o Wooster Group [o grupo de Nova Iorque fundado pelo actor Willem Dafoe]?

Aprendi muito a trabalhar com eles. Acho que Elizabeth LeCompte [directora] é a encenadora mais corajosa que conheci. Aprendi muito com a liberdade dela de ter o tempo de que precisa para fazer os seus espectáculos e com a forma como trabalha com o grupo. Aprendi a liberdade que podemos ter quando trabalhamos no teatro, usando qualquer material, qualquer meio.

É um processo de trabalho vasto e isso foi importante na criação da minha estética. Começamos com problemas e o modo como chegamos às soluções é de forma colectiva. Sou eu que escolho os projectos e fazemos muitas experiências que não usamos. E tenho a sorte de trabalhar com pessoas muito talentosas, que têm paciência e curiosidade para construir um espectáculo.

É por isso que se vê mais como compositor do que como encenador?

Acho que é um trabalho de compositor, editor... Não me vejo como intérprete mas como criador. Durante muito tempo não trabalhávamos textos que já existiam. Decidimos encenar estes textos porque não pertenciam ao palco.

O que é que os romances trazem ao teatro?

Desafiam o teatro. Para o teatro ser essencial tem de ser forçado a reinventar-se e por isso é bom lidar com material que não foi feito para ele. Ao criar estes espectáculos, quando temos textos ou qualquer material que não foi feito para o palco, temos que resolver o problema e aí aprendemos coisas que são importantes para o teatro. Não tomamos nada por garantido.

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