Revolta, medo e vingança andam de mãos dadas na Quinta da Laje

São pobres, negros e dizem-se vítimas de perseguição policial. A morte de "Kuku", de 14 anos, reacendeu temores nos bairros problemáticos da Amadora, onde a PSP redobrou as cautelas

a Há um misto de revolta e medo no olhar de quem circula. A Quinta da Laje é mais um dos muitos bairros abarracados que ainda subsistem no concelho da Amadora. Até há pouco tinha apenas a pobreza a uni-lo ao outro casario que, na linguagem política e policial, é "problemático". A morte de um jovem de 14 anos, no dia 4, após disparo de um polícia, lançou agora os tons do ódio. Há uma espécie de rezas surdas, prometendo vingança. Os agentes andam de sobreaviso e aguardam por sábado, data prometida para uma acção de protesto frente à 60.ª esquadra."Kuku" morreu com um tiro de pistola na cabeça. Junto ao corpo apareceu uma pistola que, diz a PSP, terá apontado aos agentes que o tentavam interceptar por suspeita de ter furtado um carro. Desde essa madrugada que os bairros clamam inocência e vingança. "Os polícias também têm filhos", diz Sabina, mulher já entrada na idade, enquanto passa, a mancar, pela vereda ladeada de canas que conduz ao bairro. Não quer muita conversa, porque "cada um sabe dos seus", mas garante que nunca viu "Kuku" ou outros miúdos do bairro com pistolas. "Lá que alguns precisam de malagueta na boca, isso sim. Mas pistolas? Não, nunca vi."
A desconfiança é comum a todos os que se juntam no bairro. À noite cai ali gente de outros sítios pobres. Vêm brancos e pretos conversar com os pretos e os brancos que habitam na Laje. Vem gente da Brandoa, da Ponte de Carenque, de Santa Filomena e da Cova da Moura. "Kuku", apelido que Elson ganhou nas ruas, era sobejamente conhecido e apreciado. "O puto não fazia uma coisa dessas", "a pistola era dos bófias", "fizeram merda e, para se limparem, puseram lá a pistola", dizem alguns jovens que ainda comentam esta morte.
Seis jovens mortos
Raul - que faz "uns biscates aqui e ali, conforme há" - tem uma dúvida. "Quero saber se posso andar sossegado na rua ou se levo um tiro nos cornos porque sou preto." A vingança começou a ser exigida pouco depois da morte do menor. Horas depois de "Kuku" ter sucumbido no Hospital São Francisco Xavier já circulavam rumores ameaçadores. Falou-se, e ainda se fala, num ataque a uma esquadra da PSP. Dois dias depois do disparo, faltou a electricidade numa outra zona da Amadora e, de imediato, se acenaram fantasmas.
Na Divisão da PSP da Amadora, as ameaças a polícias não são novidade. São mais uma trivialidade que se repete a cada detenção, a cada zaragata, a cada morte. Nos últimos anos, em consequência de disparos da polícia, terão morrido cinco jovens negros (Angói, Tony, PTB, Tete e Corvo, segundo diz o blogue Brutalidade Policial), e também nessas ocasiões se ouviu falar de "olho por olho, dente por dente". "O problema são as calhoadas contra os carros-patrulha", diz um agente, lembrando, contudo, que sempre que há problemas se tomam algumas cautelas. Desta feita, todos os polícias que andam nos carros são obrigados, a partir das 19h, a utilizar colete à prova de bala.
No blogue em causa, são postas a nu as misérias de quem vive nos bairros "problemáticos" da Amadora. Ali se lembram as acções de solidariedade para com a família de "Kuku", através da venda de
T-shirts e CD, para desse modo se conseguir algum dinheiro e pagar despesas. Convocam-se também os interessados a reunirem-se em dois jantares, a 24 e a 30 deste mês, para juntar mais algum dinheiro para a família carenciada.
A acção mais imediata terá lugar já no sábado. "Basta. Dia 17 de Janeiro, sábado, às 16h, vem protestar contra a brutalidade policial. Contra a violência do Estado. Vem exigir justiça. Concentração em frente à 60.ª esquadra, na Rua 17 de Setembro, no Casal da Boba", refere o blogue. Os autores - anónimos - do texto fazem ainda um apelo "a todos os irmãos, tropas, guetos e organizações solidárias" para que "se juntem nesta jornada de uma luta que é de todos e esteve calada muito tempo".
Quatro polícias mortos
Ontem, o texto do blogue era ainda desconhecido da PSP. Diversos polícias que trabalham na Divisão da Amadora limitam-se a escutar. Não acreditam em mais acções violentas, como a que teve lugar sábado no cemitério de Benfica, no funeral de "Kuku", e que resultou em agressões a diversos jornalistas que faziam reportagem. A imprensa é, de resto, responsabilizada no Brutalidade Policial, por muitas das agressões atribuídas à polícia. Entre outras acusações fala-se de "opinião pública manipulada pela propaganda racista dos media".
"Morreu uma pessoa. Agora há um inquérito [um da PSP e outro conduzido pela secção de homicídios da Polícia Judiciária] e, no final, se houver culpas do agente, então terá de haver uma condenação", refere um dos polícias contactados. Outro, pouco preocupado com a concentração marcada para a porta da sede da divisão (quase paredes-meias com a Câmara Municipal da Amadora), até aplaude a iniciativa. "Podemos [PSP] aproveitar e identificar todos os que aparecerem. Talvez consigamos encontrar alguns que são procurados há muito tempo, que têm mandados e que andam com armas... É uma óptima ideia..."
Aos que acusam os polícias de terem dedo ligeiro no gatilho, estes respondem lembrando os quatro agentes da divisão abatidos a tiro nos últimos anos, bem como diversos outros que foram baleados, apedrejados e espancados. Na Amadora, zona apontada como das mais violentas do país, concelho de "bairros problemáticos" e de multidões de pobres, subsiste ainda um lema passado de boca em boca entre polícias: "Prefiro que a minha mulher me leve cigarros à cadeia do que flores à campa".

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