Razão sem fúria

Este é um filme de um Clint que trocou o instinto profundo que alimenta os seus melhores filmes pelas boas maneiras que dominam os seus filmes assim-assim.

Nos tempos heróicos em que os miúdos dos "Cahiers" tomaram em mãos a tarefa de resgatarem Samuel Fuller ao opróbrio do ogre-vermelho Georges Sadoul (e à indiferença dos americanos), o mais miúdo deles todos, Luc Moullet, estabeleceu uma tipologia definitiva: havia dois Fullers, um Fuller "temperamental" e um Fuller "racional", e o primeiro era mais interessante do que o segundo.

Fora, eventualmente, o plágio, não incorremos em nenhum crime se transpusermos essas categorias para Clint Eastwood, pela boa razão de que elas nos vêm à memória durante o visionamento de "A Troca". Este é um filme de um Clint em modo razoável (digamos, uma razão sem fúria), um Clint que trocou o instinto profundo que alimenta os seus melhores filmes (o instinto que, como em Fuller, originou não poucos equívocos) pelas boas maneiras que dominam os seus filmes assim-assim (se quiserem, "As Cartas de Iwo Jima" versus "As Bandeiras dos Nossos Pais"). Um Clint que prestou menos atenção às suas tripas e mais àquela conversa do "último dos clássicos" em que teria que acabar por acreditar de tanto lha repetirem aos ouvidos. Inteligente e competente, mas também disperso e decorativo (e coisa rara em Clint, com planos a mais, cenas que se prolongam sem outra razão aparente que não seja fazer brilhar os actores), "A Troca", se não for o filme mais indistinto que Clint fez desde "The Rookie" (em 1991), é o que tem mais momentos indistintos, mais redondos, que mais se contenta com a eficácia melodramática, que mais cultiva o bem-acabado pelo bem-acabado. Falha até a relação directa com a Hollywood clássica (tudo se passa em Los Angeles nos anos 20 e 30, fala-se de Óscares, de Tom Mix e de filmes de Capra e de DeMille), esboçada mas reduzida a rodapés referenciais nunca verdadeiramente integrados. Isto deixado claro, podemos abrir a porta da ambivalência. Nem tudo é indistinto em "A Troca". Quase subrepticiamente vislumbram-se "flashes" de um trabalho que vem de trás, continuidades "eastwoodianas".

Marcas de "autoria", que são diferentes de simples marcas de "reconhecimento". Tal como não se trata de resgatar o "todo" pela "parte", antes de reiterar uma verdade óbvia: entre um filme pouco convincente de um bom cineasta e um filme pouco convincente de um cineasta qualquer é sempre preferível o filme pouco convincente do bom cineasta. Se, apesar do exposto, não conseguimos fazer "fine bouche" a "A Troca" isso acontece pelas duas razões que tentaremos explicar a seguir. Uma, a insistência, tremendamente "eastwoodiana", num conflito entre o indivíduo e um grupo, conflito que a lei, bloqueada, deixou de poder regular. Richard Schickel, na entrevista concedida ao Ípsilon há semanas, lembrava que em "Dirty Harry" o confronto fundamental não era entre a personagem de Eastwood e o assassino, mas entre Eastwood e a corporação policial a que ele pertencia. A polícia de "A Troca" lembra a polícia de "Dirty Harry", sendo como é um paroxismo de corrupção e incompetência, incapaz de aplicar a lei sem ser de forma deturpada, e em função de interesses próprios. Ou seja, como em tantos filmes de Eastwood, tudo está "fora da lei". O desenho deste estado de coisas e a sua preponderância como conflito essencial mantêm o filme coeso durante boa parte da sua duração, tanto que, quando desaparecem (essa parte da intriga "resolve-se" a uma boa meia-hora do final), "A Troca" perde força, e se esvai em diversos "falsos epílogos", como um longo apêndice justificado apenas pela necessidade de continuar a conduzir o melodrama sentimental (Angelina Jolie à procura de sinais do filho desaparecido) e o melodrama de crime e castigo (toda a história com o "serial killer", espécie de Scorpio dos anos 20 com uns pozinhos de "Mystic River").

Neste cenário, neste território "sem lei" que está muito próximo do do "western" ("genuíno" ou "urbano"), a personagem de Angelina Jolie é um equivalente óbvio de várias personagens de Clint. Sozinha e obstinada, ela é um pouco a "cowgirl" forasteira que chega a uma cidade corrupta e, por efeito directo ou indirecto da sua acção, a mete na ordem ("mutatis mutandis", é o momento em que a corrupção policial é desmascarada e condenada). É a narrativa que a põe nessa situação, certo; mas é a construção visual da sua personagem que a reforça, como se o seu modelo fosse o próprio... Clint Eastwood, o "cowboy" dos anos 60 e 70 (o sorriso desafiador, o sobrolho franzido, os grandes planos com a aba do chapéu a cair sobre a testa). É a verdadeira versão feminina do "Clint-ícone", com, no lugar da cigarrilha e da barba por fazer, uns lábios muito vermelhos, uns olhos muito azuis, um chapéu cor de azeitona (sempre tudo da mesma maneira, como se fosse de uniforme).

Espécie de cúmulo de um narcisismo temperado por um impulso pigmaleónico: Clint cria uma versão de si mesmo, um "travesti ao contrário", numa das mulheres mais bonitas do mundo. É a segunda razão.

De qualquer modo, não desesperemos: "Gran Torino" chega num par de meses, e pelo seu temperamento juramos nós.

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