Natal dos Hospitais

M uito boa gente, e eu, durante anos assistiu a tardes inteiras do Natal dos Hospitais por benevolência e folclore televisivos. O Júlio Isidro apresenta?, o Marco Paulo canta Dois Amores ou Canção Proibida, é hoje que lhe cai o microfone?, o Herman vai ter graça?, o ventríloquo do pato fanhoso e cabeludo conseguirá um dia falar sem mexer a boca? E que plateia para horas de espectáculo na TV, crianças de pijama, velhotes na cama, senhoras de roupão sobre rodinhas, tubos de soro, cateteres nas veias, desgraças ambulantes.Natal no hospital.
Olhos são buracos de filtrar tragédias num fio de luz. Um dia, as nossas.
Quando a maca que me interessava entrou no bloco operatório, saiu outra maca com um morto. Um cadáver que sai dum bloco operatório é um perfil de pano coberto que não se mexe, só nos tremores metálicos da maca, em trânsito para a morgue. Em Santa Maria desce pelo meio da multidão. O homem que leva o morto pede às pessoas que saiam do elevador, faz um sinal vago, autoritário, e elas resmungam, mas quando percebem saltam atrapalhadas no patamar. Um rapaz de boné vermelho, que empurra uma carruagem de toalhas sujas, acha graça ao morto e dá-lhe sede.
- Ah, ah! O que é que eu tenho aqui para molhar o bico?
Tira um sumo da máquina, bebe e canta-me (melodia Ai Destino):
Vai com o morto, vai com o morto
C'o mortozinho pequenino
O mortozinho, mortozinho,
Mortozinho pequenino!
Levanto-me e não o estrangules, não te estrangulo, rapaz, até cantas bem, devias ir ao Natal dos Hospitais, vou só ver os cartazes na parede.
CURSO DE JOELHO EM CADÁVER.
Os especialistas mundiais do joelho humano são convidados a vir a Portugal, a organização garante joelhos para abrir, eu se fosse especialista mundial em rótulas, meniscos, ligamentos cruzados, enfim, joelhos, se fosse essa a tua especialidade, punhas este curso na tua agenda. Também abriu a Base de Dados Nacional das Hérnias, isto no quadro das perspectivas actuais da anatomia clínica da região inguinal e vai haver greve na administração pública, todos unidos contra a política deste Governo.
Repete o Maiakovki na cabeça que o tempo passa,
Se quiserem,
serei apenas carne louca
e, como o céu, mudarei de tom,
se quiserem,
serei impecavelmente delicado
não serei homem, mas uma nuvem de calças!
Repete e o tempo vai passar, digam só o que querem de mim, tu serás o que quiserem, horas e horas depois cai sobre o hospital uma luz da tarde indescritível e um homem fala contigo, é comigo que fala, é.
- Olhe, à minha mulher disseram que tinha uma coisa colada ao rim e que era apenas tirar o rim. Só durou mais um mês. E gastei dez mil contos com ela, mas era maligno. Setenta e cinco contos por dia no instituto de oncologia, ali nas torres de Lisboa. O meu filho morreu num acidente em trabalho, era economista. Ali a subir o Marão, uma senhora despistou-se cem metros e morreu logo ali, não foi culpa dele. A minha filha teve uma peritonite, o apêndice dela era um saco de sangue do tamanho da cabeça dum coelho, assim deste tamanho! A infecção voltou e agora está a ser operada de emergência.
- Vai correr tudo bem.
- E com a sua senhora também.
Numa entrevista ao DN, João Lobo Antunes disse não se sentir Deus ao operar um cérebro, porque "Deus não tem pânico nem medo, e basta pensarmos que não controlamos tudo e que, se temos medo, nunca poderemos ser Deus. E depois apanhamos baldes de humildade periodicamente, quando as coisas correm muito bem e o resultado é catastrófico." O neurocirurgião disse que por vezes se vira de costas para as pessoas, ao ver uma TAC, para não dizer com os olhos o que não poderá negar pelas palavras.
Comigo disse e agradeço-lhe, João, dou importância à verdade.
- Não faça planos, Rui, não faça planos, não sabemos como vai ficar.
Passou um ano e cá em casa (graças a Deus) todos têm a cabeça no sítio, comem de faca e garfo e andam pelo próprio pé. a

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