James Symington, um britânico do Porto

Nasceu no Porto, fugiu da guerra para o Canadá, lutou contra os Mau Mau no Quénia, trabalhou em Londres no vibrante final dos anos 1950. E regressou para sempre ao ponto de partida. É um dos últimos representantes de uma comunidade que deixa há 400 anos as suas marcas na identidade portuense.

Se perguntarem a James Symington quem é ele, esperem o olhar tenso que antecipa uma breve hesitação. Compreende-se. Nasceu no Porto, passou parte da infância entre os Estados Unidos e o Canadá, estudou num colégio beneditino em Inglaterra, serviu o Exército de Sua Majestade a rainha no Quénia e regressou ao Porto em 1960 para desenvolver a vida profissional na empresa familiar que se dedica ao vinho do Porto há mais de um século. Quando faz o balanço da sua vida agitada, cede à evidência e lá chega à fórmula que melhor define a sua condição. "Sou um britânico do Porto. Vivo aqui há tantos anos que o meu lar acaba por ser este, embora vá a Inglaterra muitas vezes", diz. Aos 72 anos, James Symington decidiu pôr em livro uma boa parte da sua vida, encomendando a edição da obra ao norte-americano Isaac Oelegart, que não é propriamente um editor, mas um fazedor de livros. Não o fez por vaidade, nem sequer por acreditar que a sua biografia é de tal forma singular que mereça ser cristalizada em tinta e papel; antes porque acredita que as suas memórias são o testemunho de um século agitado e de um negócio que passou do marasmo do pós-guerra ao momento mais fulgurante da sua existência de três séculos.
Nos dias em que nasceu, a próspera comunidade britânica do vinho do Porto vivia ainda em circuito fechado. "Era muito mais numerosa do que é hoje e passavam os seus tempos livres no Golf Club, no British Club ou nos encontros promovidos pela Feitoria Britânica", lembra James. As suas primeiras memórias não são deste mundo, nem sequer do Porto. "Recordo-me bem dos dias que passava com a família na Quinta do Bomfim, ao lado do Pinhão, junto ao Douro, onde passávamos temporadas todos os anos. Talvez por causa dessa experiência continue a ser uma pessoa que adora antes de tudo a vida rural", acrescenta no seu português onde se vislumbra ainda um leve sotaque.
Quando chega à idade escolar, a sua família debate-se com um dilema: o que fazer por esses dias em que a Werhmacht da Alemanha nazi parecia capaz de dominar toda a Europa? Portugal ficava ainda longe da França ocupada, mas o colaboracionismo tolerante de Franco em Espanha e de Salazar em Portugal levaram o embaixador britânico em Lisboa a recomendar a todos os cidadãos ingleses para deixarem o país o mais cedo possível. Grande parte da comunidade que vivia no Porto optou por embarcar para as ilhas britânicas. Na viagem pelo menos duas famílias quase desapareceram vítimas dos torpedos de submarinos alemães. Os pais de James optaram pela separação: Ronald, que já tinha estado na I Guerra Mundial como oficial de ligação ao Corpo Expedicionário Português, decidiu oferecer-se como voluntário no exército britânico e a mãe, James, o irmão mais velho e a irmã mais nova partiriam para os Estados Unidos tendo como destino final o Canadá, onde já estavam refugiadas outras famílias inglesas do Porto.
Como as viagens marítimas entre a Europa e os Estados Unidos eram perigosas pela constante acção dos submarinos alemães, os Symington decidiram fazer a travessia do Atlântico por avião. Depois do colapso da França e do consequente isolamento da Inglaterra, Lisboa tornara-se um ponto de fuga - uma nova linha assegurada por hidroavião havia sido criada entre Lisboa e Nova Iorque via Açores e Bermudas. "Fomos para Lisboa e como os hotéis estavam todos cheios com refugiados, tivemos de esperar dez dias numa pensão pela chegada do hidroavião." Nesse compasso de espera, James e o irmão apanharam um sapo numa quinta da família Reynolds (hoje mais conhecida pela posse da Herdade do Mouchão) junto à Rua Braancamp, que acabaria por se tornar famoso na América. Um dia antes de a aeronave descolar da doca de cabo Ruivo, o pai adoeceu gravemente. James lembra-se de o ver dizer-lhes adeus do cais, até que uma enorme onda lhe tapou a visão no momento da descolagem. O pai regressaria ao Porto e teve de ficar seis meses em repouso por causa de uma nefrite. Nunca iria juntar-se ao exército britânico, como previra.
James lembra-se bem do interior do Dixie Clipper, o hidroavião que, em 1943, transportaria Franklin Delano Roosevelt da América para a Cimeira de Casablanca com Winston Churchill. "Tinha várias cabinas como as dos comboios", diz. Lembra-se também das escalas nos Açores, onde freiras que prestavam assistência aos viajantes o assustaram pela envergadura desmesurada dos seus toucados. Ou da paragem nas Bermudas, quando as cortinas tiveram de ser fechadas para não se poderem ver as movimentações militares no aeroporto. Quando chegaram a Nova Iorque, "o cais estava cheio de jornalistas à espera de relatos sobre o que se estava a passar na Europa em guerra". James e os irmãos seriam notícia de primeira página nos jornais locais não por terem algo de épico a contar mas porque conseguiram fazer passar um sapo pelos controlos sanitários da alfândega. "No dia seguinte a notícia era que 'Sapo cruza o Atlântico e aterra em Nova Iorque'", ri-se James. O bicho ainda andaria na companhia da família durante mais alguns dias até fugir.
"Não sei muito bem porque fomos para o Canadá. Talvez porque estivessem lá famílias do Porto, como os Cobb", diz. Pararam em Montreal e o desconhecimento da língua francesa tornou-se um problema. "Na escola eram um bocado brutos para mim", diz. A entrada dos Estados Unidos na guerra após o ataque japonês a Pearl Harbor, em Dezembro de 1941, agravaria a periclitante situação da família. "Tornou-se impossível receber dinheiro da Europa. Sobrevivemos dois anos à custa do dinheiro que o agente comercial da nossa empresa no Canadá nos emprestou." O final da guerra significou para a família o final das privações, embora a distância os tenha protegido das suas mais duras consequências. Estava na hora de regressar. Num dia da segunda metade de 1945, os Symington deixam o exílio e sobem a bordo do paquete Serpa Pinto, em Filadélfia. "O barco tinha escrito o nome de Portugal com letras enormes. Era para ser devidamente identificado e evitar ataques dos submarinos alemães no Atlântico Norte", conta James.
Após o regresso, a próxima etapa não passa pelo Porto, mas por Carcavelos, onde estuda durante três anos na St. Julian School. Seguem-se mais sete numa escola beneditina em Ampleforth, na Inglaterra. Aos 18 anos, tem pela frente duas opções: ou ingressa na universidade ou alista-se no exército. O regresso a Portugal e ao negócio do vinho do Porto estava fora de causa. "Nessa altura, viviam-se tempos duros e as empresas limitavam-se a resistir. As exportações estavam longe de se comparar com os valores anteriores à guerra", justifica James. Após os testes, abrem-se-lhe condições para ingressar em Oxford. "Mas a minha família não tinha tradições nos estudos superiores. Optei então pelo exército e depois de fazer o curso de oficial tinha duas opções: ou ia para a Alemanha ocupada, ou para o King's África Riffles. A ideia de uma aventura em África foi para mim mais forte", recorda.
Ao aterrar no Quénia, James dá conta da adversidade que o esperava. Em 1953, o movimento Mau Mau pega em armas para contestar o colonialismo britânico e até 1955 o conflito alastra a todo o país numa escalada de violência que acabaria por chocar o mundo. O seu regimento era composto quase integralmente por africanos, muitos dos quais não sabiam uma palavra de inglês. "Fiquei com uma boa impressão deles. Eram rapazes muito simpáticos e quanto mais primitivos mais simpáticos e mais capazes de sobreviver na selva", recorda. Desses dias ficou até hoje uma paixão por África, onde regressa a cada passo. É nestes momentos que tenta evitar o esquecimento da língua swahili, que teve de aprender para comunicar com os seus homens. O regresso serve ainda para evocar os momentos de tensão que teve de enfrentar com os ataques dos rinocerontes ou dos búfalos, que na altura lhe inspiraram muito mais medo do que os guerrilheiros Mau Mau. Ou para reencontrar companheiros de armas.
Acabada a comissão de serviço no Quénia, em 1956, James parte para Londres à procura de um emprego. Durante três anos, reparte a sua vida entre a agitação de uma cidade que começa finalmente a enterrar as memórias dolorosas da guerra e os escritórios da Iraq Petroleum Company, na qual a Fundação Gulbenkian tinha cinco por cento do capital. "Por esses dias a cidade era muito animada, havia sempre muitas festas", precisa James. Foi numa dessas festas, à custa de uma garrafa de whisky, que conheceu a mulher, Penny. "Havia um amigo que tinha uma garrafa de whisky, um bem muito raro na altura, e convidou-me para me juntar a um grupo que a iria beber num apartamento. Foi aí que a vi pela primeira vez", conta.
Nos alvores dos anos de 1960 o negócio do vinho do Porto começa finalmente a dar sinais de franca recuperação. Mantendo a fidelidade ao espírito de clã que marca os Symington, o pai de James, Ronald, diz-lhe que está na hora de voltar a casa. Esperava-o um lugar na sala de provas de vinho do Porto cujas exportações começavam a superar os efeitos da guerra nos hábitos de consumo. Por essa altura, casou-se com Penny, para quem a habituação ao Porto "foi difícil, embora a cidade fosse nessa altura uma cidade muito agradável". Depois de 1963, o sector entra na fase de rápido crescimento, que durou praticamente aos nossos dias, e a prosperidade regressou ao seio dos Symington, uma família que acusava já três gerações de dedicação integral ao negócio. Durante 11 anos, James aprendeu as artes da enologia do vinho do Porto até se tornar no principal responsável pelas marcas da casa após a reforma do pai, em 1965. "Não tinha qualquer preparação para isso. Mas a ciência não era tão necessária nesses tempos como nos dias de hoje. Bastava ter experiência, nariz apurado e paladar", diz. Alguns dos grandes Porto vintage do século XX, como o Graham's de 1970, têm a sua assinatura.
A chegada ao grupo familiar de novos descendentes e o crescimento mundial do negócio levam-no a mudar de funções no princípio dos anos 70. A partir dessa altura, viajar tornou-se o seu modo de vida. Pela Europa, principalmente. A supervisão global das exportações leva-o a irradiar as marcas da família a todo o mundo. Nomeia representantes em lugares remotos como as Maurícias. Muda agentes na Escandinávia. E percebe que "o mercado dos Estados Unidos é uma grande oportunidade que merecia ser explorada". É nestas tarefas de promotor das marcas da casa que o 25 de Abril o encontra - "estava em casa a dar uma entrevista a um jornalista da Decanter quando a minha mulher me avisou que havia uma revolução na rua". Nesses dias turbulentos, nunca teve medo pessoal, embora houvesse o receio de perder o negócio familiar. No final, a revolução abriu portas a novas oportunidades: "Houve quem abandonasse o sector e nós aproveitámos o que os outros deixavam."
Nos anos que se seguiram, James deu o seu contributo para afirmar os Symington como o mais poderoso grupo do negócio do vinho do Porto. Hoje são os maiores exportadores de categorias especiais. Com o passar dos anos, tornou-se o rosto mais conhecido da casa. Quando foi tesoureiro da Feitoria Britânica no Porto, coube-lhe receber o príncipe Carlos e Diana, que o espantou por ser "muito mais bonita ao vivo do que nas fotografias ou na televisão". Foi também o anfitrião do ex-primeiro-ministro britânico John Major nos dois verões que passou no Douro. Até à reforma, viveu entre memórias e confirmações de muitas das suas apostas. Hoje olha com nostalgia para o Dixie Clipper, cultiva ainda o seu lado irreverente e aventureiro nos safaris que faz em África ou nos passeios que dá no seu Alvis Speed 20, um carro desportivo de 1936, no qual transportou o então Presidente Mário Soares. O Douro continua a ser uma paixão como nos tempos de criança e todos os meses passa alguns dias na sua quinta de Vila Velha, na margem esquerda do rio. A cada passo, vai aos escritórios da empresa, agora apenas para estar a par das novidades ou para partilhar um vintage com os primos ou o filho Rupert, que o substituiu.
James escreveu um livro porque o seu primo Paul insistiu para que o fizesse. Ele aceitou o repto, quanto mais não fosse porque na sua casa enorme num dos bairros tradicionais do Porto ele vive lado a lado com as memórias da sua própria existência. Não foi uma vida heróica, apesar de algumas das suas façanhas, e ele é o primeiro a admiti-lo com semblante tímido e vagamente inseguro. Mas é o retrato da vida de um britânico do Porto que, sem o querer admitir, e apesar de toda a sua biografia estar marcada pelo destino de um súbdito de Sua Majestade, é talvez hoje mais portuense que britânico. a
Grande parte da história do vinho do Porto faz-se através da história de famílias britânicas, principalmente escocesas. Em alguns casos, a biografia de sócios ou de fundadores perpetuou-se nas marcas que ainda hoje existem. Em outros casos, diluíram-se na memória do tempo e deles só restam registos paroquiais ou inscrições nos livros da Feitoria Britânica do Porto, fundada em 1790. Mas nenhuma outra família esteve tão sólida e duradouramente ligada ao negócio como os Symington. Aos 19 anos, o fundador da linhagem, Andrew James, veio para Portugal trabalhar numa empresa comercial e teve a sua primeira participação no sector com a venda de um stock de 20 mil pipas penhoradas pelo governo ao Banco Burnay. Essa data (1894) marca o primeiro passo para a construção de um enorme conglomerado de empresas que jamais saiu do controlo dos seus descendentes.
Em 1905 Andrew compra a Warre. Em 1912 torna-se accionista da Dow's. Em 1919 passa a controlar a Quarles Harris. Com a força das duas primeiras marcas, o grupo ganha músculo nos anos 20 e 30 e fica em condições de resistir à penúria que dura até aos anos 70. Mas mal os números da exportação começam a melhorar, os Symington regressam ao activo. Em 1970 compram a poderosa Graham's, deixando "muita gente admirada porque não se tinham apercebido do nosso sucesso", como recorda James. Anos depois tomam posse de uma das mais belas e emblemáticas quintas do sector, o Vesúvio, adquirida aos descendentes de Antónia Adelaide Ferreira. Mais recentemente, compram outra empresa histórica, a Cockburn's.
Qual é a fórmula que mantém a família unida, contrariando a ideia feita de que as empresas familiares só sobrevivem quando um dos ramos controla o poder? "Nós não temos nenhum segredo. Gostamos uns dos outros, nunca houve azedume entre membros da família. Damo-nos bem e temos confiança. Cada um faz o seu trabalho e tem confiança no trabalho que os outros fazem. Temos conseguido um modelo de gestão consensual, mas não há leis para a aplicar. Temos tido sorte, não há invejas entre nós", explica James. Com a presidência rotativa entre os vários ramos da família, idades de reforma rígida e áreas de especialização (enologia, comércio externo, etc.) cujos saberes passam de pais para filhos, o sucesso dos Symington é um caso raro no mundo dos negócios bem-sucedidos.

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