Experimentar Rothko

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Os Murais Seagram são um "caso" da pintura do século XX. Mark Rothko pintou-os para um restaurante luxuoso de Nova Iorque, depois devolveu o dinheiro da encomenda e ficou com eles. Acabaram espalhados pelo mundo. Uma exposição na Tate Modern junta uma boa parte.

Entre 1958 e 1959, num antigo ginásio da baixa de Nova Iorque, Mark Rothko criou uma série de telas que se tornaram um caso na pintura do século XX. O autor, nascido na Rússia, em 1903, numa família judia, chegara a América de barco, com 10 anos. Quando acabou de pintar essa série mudou oficialmente o nome de Marcus Rothkowitz para Mark Rothko.

Que acontecera, entretanto, entre 1958 e 1959? Elvis Presley foi incorporado no Exército e os franceses elegeram De Gaulle. A Síria e o Egipto juntaram-se na República Árabe Unida. Em Notting Hill explodiram motins raciais. Morreu o primeiro humano com HIV no Congo. Fidel Castro tomou o poder em Cuba e o Dalai Lama saiu do Tibete para o exílio. 9235 cientistas publicaram um apelo contra testes nucleares e o Alaska tornou-se um dos Estados Unidos da América. Nos cinemas, foi a época de "Gata em Telhado de Zinco Quente" e de "Vertigo". Publicaram-se "Breakfast at Tiffany's", de Truman Capote, "A Condição Humana", de Hannah Arendt, "O Teatro e o Seu Duplo", de Artaud, "Naked Lunch", de William Burroughs, "Doutor Jivago", de Boris Pasternak.

Este era o mundo enquanto Mark Rothko, fechado no seu estúdio da Bowery, onde antes treinavam equipas de basquete, pintou a sequência de telas que ficou conhecida como Murais de Seagram.

E meio século depois - agora -, uma exposição em Londres junta pela primeira vez o maior número destas telas jamais reunido, tentando reconstituir o que estaria na cabeça de Rothko quando as pintou.

Pela primeira vez, porque esta série, concebida para ser vista como um todo, acabou estilhaçada entre Londres, Washington e Japão - o Kawamura Memorial Museum of Art tem nada menos que cinco pinturas, e é o parceiro decisivo da exposição que pode ser vista até 1 de Fevereiro. Entre mais de 60 obras expostas, os Murais de Seagram são o eixo e o chamariz.

Seagram é um famoso edifício na Park Avenue, em Nova Iorque, concebido por Mies Van der Rohe, em colaboração com Philip Johnson. O projecto incluía o restaurante Four Seasons, até hoje um símbolo de requinte. Jonhson e a herdeira do império Seagram, também arquitecta, convidaram Mark Rothko a pintar os murais para as paredes. A encomenda significava reputação, dinheiro e a possibilidade de trabalhar uma série de grandes dimensões.

Rothko entusiasmou-se ao ponto de procurar um novo estúdio até encontrar o tal ex-ginásio no número 222 da Bowery, com altíssimo pé direito. E em Julho começou a trabalhar na série - grandes telas com fundos espessos em vermelho, carmim, castanho, negros, com rectângulos e quadrados mais escuros ou mais claros, como janelas ou cortes.

Depois dos seus primeiros anos figurativos, Rothko explicou que figurar era sempre mutilar, porque é impossível pintar verdadeiramente uma figura. Quis encontrar outra forma mais satisfatória, que temporariamente passou por figuras mitológicas, até chegar às grandes manchas geométricas de cor que o tornaram célebre.

Que procurava nessa temporada entre 1958 e 1959 quando concebeu os Murais Seagram?

Ele próprio deu algumas pistas numa conferência no Outono de 1958, em que alinhou uma espécie de itinerário para a criação da obra de arte. 1. Preocupação com a morte (a arte trágica lida com a morte). 2. Sensualidade (base para ser concreto em relação ao mundo). 3. Tensão (conflito ou desejo). 4. Ironia (auto-apagamento e desprendimento). 5. Graça e jogo (elemento humano). 6. Efémero e sorte (elemento humano). 7. Esperança (10 por cento de um conceito durável).

Rothko terminou os Murais Seagram em Maio de 1959 e partiu em viagem à Europa, para visitar família. Foi então, ao tirar o passaporte, que mudou oficialmente de nome. E quando voltou pôs fim ao envolvimento com o Four Seasons - devolveu dinheiro e ficou com os quadros.

Como diz o curador da actual exposição na Tate, Achim Borchardt-Hume, até hoje correm diversas versões sobre a reviravolta de Rothko. Há quem diga que inicialmente o artista estava convencido de que o Four Seasons não iria ser um exclusivíssimo restaurante, mas sim uma cantina para os empregados do arranha-céus. Outros acreditam que a mancha inquietante das telas era afrontosa para os milionários que as tinham encomendado. A citação de Rothko que ficou para a Wikipédia, e também está no catálogo da exposição, é esta: "Espero pintar algo que arruíne o apetite de cada filho da puta que alguma vez coma naquela sala."

Talvez simplesmente Rothko quisesse muito mais do que os milionários do Seagram queriam, refere o curador Borchardt-Hume, e o projecto soçobrou devido a esta incompatibilidade.

A caminho da escuridão

O nome de Rothko está escrito a vermelho vivo no quarto andar da Tate Modern, à beira-rio. O Tamisa ondula entre prata e castanho, e quase chove. Lá fora é mesmo Outono. Cá dentro cheira a café. Antes ou depois de sair de Rothko, é possível comer, beber e comprar merchandising - sacos, t-shirts, cachecóis, cadernos, postais, canecas Rothko. E na parede do café está a frase do artista que também abre o catálogo: "Se as pessoas querem experiências sagradas, encontram-nas aqui. Se querem experiências profanas, também as encontarm aqui. Não tomo partidos."

A Tate também não. Há gente a comer sanduíches, copos de cappucino pelo chão, namorados a falar italiano, estudantes de desenho na varanda a desenharem a Catedral de São Paulo, do outro lado do rio. A varanda também é boa para trocar sms e fumar. Está cheia, apesar de já ter chovido, e a todo o momento poder chover outra vez. Isto é Londres.

Rothko pode ter declarado que não tomava partido entre profano e sagrado, mas tinha na cabeça comprar uma capela para expor as suas pinturas, e uma das suas sérias mais famosas é a da Capela de Houston. "As pinturas têm de ser miraculosas", escreveu. Quando o artista completa a obra, termina a intimidade entre criador e criação, e a obra passa a ser de quem a vê. O criador é um "outsider" e a obra deve ser uma "revelação" para quem a olhe. Com centenas de visitantes é sempre mais difícil.

A exposição da Tate começa com uma sala de maquete e pranchas. Ao lado está a primeira experiência de uma tela grande, uma só, contra a parede, e as pessoas encostam-se naturalmente à outra parede, para a poderem ver. Chama-se "Four Darks in Red", quatro barras horizontais, de diferentes escuridões e larguras sob fundo vermelho.

A sala seguinte é um enorme salão rectangular, o centro da exposição. Aqui estão os Murais Seagram, os que vieram do Japão e os que vieram de Washington para se juntarem aos que a Tate tem na sua colecção. Luzes baixas, como Rothko pretendia. Um bebé grita e avistam-se pessoas a subirem a escada rolante, a vida move-se. 14 telas enormes cobrem as paredes como superfícies opacas, mas com textura, com relevos, grão, espessuras diferentes consoante as acumulações de tinta. Primeiro são manchas, depois tornam-se tácteis. E ao fim de algum tempo formam imagens. Algumas parecem livros abertos, outras portas fechadas. Umas brilham, outras são opacas. Rodando no branco, parede a parede, parecem tentativas de rasgar a escuridão. E pela resistência, pela impossibilidade de serem penetradas, tornam-se inquietantes. É a continuação, a persistência, que as faz existir.

Há gente sentada nos bancos ao centro e meninos sentados no chão, com grandes caixas de lápis de cor, de cera, iPods e auscultadores ao lado, ursinhos pendurados nas mochilas. Uma menina que copia a pintura na capa do catálogo esborrata a margem para conseguir a linha difusa de Rothko.

As salas seguintes são um caminho para o negro. Na sala seis há quatro telas preto-sobre-preto, em que as diferenças são dadas pelo brilho e pela textura, como quando sobrepomos cetim preto a carvão ou madeira preta. Na sala oito há telas duplas em cinza e preto, horizontes. A última sala parece uma floresta em que as telas formam a paisagem, sempre sob um céu negro, e a parede a interrompe. É uma paisagem muda, sem som, como alguém que tapa os ouvidos, ou se cala, virado para dentro.

"Pela primeira vez, a última fase do trabalho de Rothko é abordado através da ideia de séries", explica o curador, quando o Ípsilon lhe pergunta o que esta exposição revela sobre um dos artistas mais populares da segunda metade do século, considerado pelos detractores como algo decorativo. "Em vez de especular sobre o esquema do restaurante Four Seasons, a exposição encara os Murais Seagram como a primeira série de Rothko, ou seja, o primeiro corpo de trabalho no qual cada pintura foi concebida em relação directa com as outras, um jogo de inúmeras variações num tema claramente definido." Entre visitas guiadas e outras reacções, Achim Borchardt-Hume diz que a recepção tem correspondido ao que tentou mostrar: "Muitos visitantes, entre eles muitos artistas, sentiram que começavam a ver os últimos trabalhos de Rothko a uma luz completamente nova, e ficaram impressionados pela modernidade contínua da sua visão da pintura, bem como pela extraordinária energia e bravura do seu trabalho final, que frequentemente tem sido ensombrado pela história da sua vida."

A 25 de Fevereiro de 1970, apenas meses depois das últimas telas que estão na sala nove desta exposição, Mark Rothko suicidou-se no seu estúdio de Nova Iorque, cortando os pulsos.

O Ípsilon viajou a convite do Turismo Britânico, www.visitbritain.pt

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