Buika, flamenco cor de fogo

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Tudo nela é mestiço e imponente. Com o disco "Niña de Fuego" relançado em versão alargada, canta no CCB a 16.

"Nasceu uma estrela!", proclamava enfaticamente o "Sunday Times" em Maio de 2007, quando decidiu atribuir quatro estrelas ao disco "Mi Niña Lola". Na capa, uma jovem africana. Africana? Na verdade, espanhola. Maria Concepción Balboa Buika nasceu em 1972 em Palma de Maiorca, no arquipélago das baleares. Os seus pais são originários da Guiné Equatorial, antiga colónia espanhola, e emigraram para Espanha para fugir a um regime ditatorial, à data encabeçado por Nguema e hoje por Teodoro Obiang. Em Palma de Maiorca, instalaram- se no Bairro Chino, onde Buika passou a infância. Um bairro cigano, frequentado também por prostitutas e "junkies". "A minha infância foi muito divertida, muito tranquila e muito estranha", diz ela ao Ípsilon, à distância de décadas.

O pai, matemático e poeta, desapareceu sem deixar rasto tinha ela 9 anos. "Recordo-me só que gostava muito dos cantautores. Mas não lembro muito mais dele." Quanto à mãe, aprendeu com ela a ouvir todos os tipos de música, sem selecção. Deve-lhe até o facto de agora, na recém-lançada edição especial do disco "Nina de Fuego", ter incluído a versão espanhola de "La Bohéme", de Charles Aznavour. "Essa canção acompanha-me desde a infância, porque a minha mãe ouvia-a muito. Ouvia tudo, aliás. Não distinguia estilos nem tribos urbanas, porque era uma africana de tribo que não sabia o que era rock, nem pop, ouvia tudo da mesma maneira e dançava tudo como se fosse africano. Escutava com a mesma inocência Tchaikovski, Miguel Rios ou um grupo rock de transmetal. E nós ouvíamos tudo, com ela." Buika tem mais seis irmãos, que também se interessam por música. "Somos africanos. Mas no sentido profissional só eu."

Buika já cantou um pouco por todo o mundo: EUA, Japão, Europa, América Latina. E também Portugal, na 5ª edição do Festival MED, em Loulé. Foi a 29 de Junho e agora está de volta, meses depois, para um concerto único no CCB, a 16. O que canta ela? Flamenco, essencialmente, mas numa mescla mestiça que não quer saber de fronteiras. "Agarro em coisas que não pertencem nem à cultura africana nem à cultura ibérica. Sou um pouco camaleão", disse ao "Le Monde" em Agosto de 2007. Por essa mesma altura, a imprensa internacional delirava com ela. Jon Pareles, no "New York Times", após assistir a um concerto seu na Academia de Música de Brooklyn, escreveu que a música de Buika "é uma fusão rara que honra todas as suas fontes." O "Daily News" titulava: "Flamenco e jazz encontram o Caribe numa voz africana." E o "Libération" chamava- lhe "cigana de África", escrevendo com entusiasmo: "Buika possui de uma só vez as inflexões roucas de uma diva de jazz, os melismas de uma grande cantora de flamenco e o tempo de uma rainha africana."

Um pouco trissexual

Ela conhece os elogios, mas constrói a sua própria teia à parte deles. Da infância, diz: "Comecei a cantar antes de falar. Mas como profissional comecei aos 17 anos, quando me convidaram para fazer parte de um grupo de blues. Desde então, cantei em clubes de jazz e de blues. Na verdade, trabalhei sempre, desde o início." Cantava "standards", música ligeira incluída. "Mas coplas e flamenco só os cantava em casa ou no bairro."

No final da década de 90, colabora com a companhia La Fura dels Baus no espectáculo "Ombra", baseado em textos de Federico Garcia Lorca. Depois, viaja com uns amigos até Las Vegas, onde imita Tina Turner e as Supremes em casinos locais. O flamenco ficou mais longe, por esses dias. Mas, em troca, Buika chegou a subir por uma vez ao palco do mítico clube de jazz Blue Note, ao lado da cantora Rachelle Ferrell. "Fui vê-la como espectadora, como fã. Conhecemo-nos e uma noite ela convidou-me a subir ao palco e a cantar com ela. Foi um momento muito emocionante, muito bonito."

O primeiro disco, em 2005, não abalou o mundo nem a crítica. Mas deu-a a conhecer a Javier Limón, que em 2006 produziu o segundo e a catapultou para a ribalta. Dele foi gravado também um DVD e os vídeos no YouTube fizeram o resto. A voz incrível derrubou fronteiras. Por cá, Mariza convidou-a a participar no seu disco "Terra", com um dueto em "Pequenas verdades" (a canção surge também no segundo disco da edição especial de "Niña de Fuego"). Foi uma parceria que lhe agradou, como diz agora: "Eu creio que qualquer coisa com Mariza é tremendamente fascinante. É uma mulher excepcional e uma artista incrível. Vivemos um momento super-divertido."

Mas "Niña de Fuego", na edição especial, não é apenas um disco. É também um livro, "Poemário", com fotografias tiradas por ela própria, nua, num jogo de pele e espelhos. Lá dentro, escreve coisas assim: "Olha pintor,/ tu que desejas paisagens ideais/ com elefantes que não choram.// Diz-me como pintarias/ uma idiotice das que doem/ para que não doesse." Ou, junto a três fotos frente ao espelho: "As três que sou vivem muito presentes em mim./ Em parte sou um pouco trissexual./ Curiosamente,/ nem a Igreja, nem a cúpula do inferno na terra/ nem o dicionário do computador me aceitam o termo.// Certamente,/ o amor nunca foi prato para um paladar de ferro,/ e graças a Deus a sensação de amar é laica como ele." Poesia escreve-a desde há muito. "O meu pai era um escritor de poesia e creio que isso é algo que herdei dele." Escrever, fotografar, filmar, são coisas importantes para ela. "As artes, em geral, ajudam-me a viver".

Redenção com a arte

Na Internet, o seu site inclui também frases-tipo, sintéticas. "Sou bissexual, trifásica e tridimensional"; "Componho para não odiar e canto para não enlouquecer"; "Numa sequência lógica de vida, a repetição é um erro"; "Artista não é o quer canta ou pinta mas o que faz da sua vida uma arte." E Buika explica o que quer dizer com isso: "Fazer da minha vida uma arte é deitar-me cada dia com a sensação de que triunfei por um dia mais. Creio que é simplesmente reconhecer-me como a protagonista do meu próprio filme ou a personagem principal do meu livro. É esse o motivo pelo qual fotografo ou escrevo uma canção." Tem também uma explicação para o "Poemário" que vem com os discos: "Bom, na realidade quero dizer muito com ele. Por regra, em geral o que faço é redimir-me com a arte. Quanto aos demais, dedico-me a oferecer-lhes arte. Vejo as coisas que se passam comigo, com todos nós, e colocoas no seu sítio. Por exemplo, quando as coisas me magoam, quando me concentro em casa a pensar como podia ter evitado que isso sucedesse, prefiro escrever, compor canções, tirar fotografias."

Buika escreve mais música do que letras para canções e gosta muito de trabalhar em programação electrónica. "São gente fabulosa, adoro trabalhar com eles. Há concertos de música electrónica que me dão a volta à cabeça". Quanto aos concertos dela, prefere surpreender. "Nunca são os mesmos porque somos bastante rebeldes. Em regra, até de um dia para o outro mudamos as canções. É preciso cantar sempre coisas diferentes. Improvisamos muito." No CCB, Buika terá a seu lado Javier Limón (guitarra flamenca e produção) e vários outros músicos: "Creio que irá toda esta família de loucos: 'El Negro' Hernandez, Ivan 'Mélon' Lewis, Carlitos Sarduy, os irmãos Porrina..."

Nas suas canções, canta "o amor e o desamor, a possibilidade de crer e não crer, coisas que nos acompanham sempre." No flamenco, impôs-se. Os jornais chegaram a apelidá-la de "africana que canta flamenco" mas ela já derrubou todas as barreiras, até essa. "A música não é de ninguém, está aí para todos. Em segundo lugar, todos somos tudo. E temos as mesmas necessidades. Pensamos nas mesmas coisas com as mesmas penas e a mesma alegria, com as mesmas dúvidas e com os mesmos medos. Absolutamente nada pertence a ninguém e até aquilo que compramos não nos pertence, só está connosco o tempo que está. E quem quiser ofender-se com isso vai passar mal, coitado."

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