Quando, em 2005, o furacão Katrina arrasou Nova Orleães, alguém nos EUA comparou a imagem dos refugiados ao "manicómio de 'Ensaio Sobre a Cegueira' do Saramago".
Zeferino Coelho, o editor de sempre do Nobel da Literatura, lembra-se de ter lido isto num jornal americano não se lembra em qual.
Que alguém tenha trazido o nome de Saramago à baila é um sinal de que o escritor português é conhecido nos EUA, nota o editor da Caminho. Pode não ter a notoriedade de Gabriel García Marquez, com quem é por vezes comparado e que agora até está no clube de leitura de Oprah Winphrey.
Mas, com um milhão de livros vendidos sim, um milhão ao todo, já nem sequer pode ser considerado um "autor de culto", diz a editora da "New York Times Magazine", revista que, em final de Agosto, editou um longo artigo sobre o escritor com o título "O Fantasista Inesperado".
"Acho-o conhecido demais para ser um escritor de culto." Quase dez anos depois do Nobel, Sheila Glaser achou que este era um bom momento para falar deste escritor que deixou de ser apenas um escritor, que é "uma figura pública intelectual na Europa": era "alguém conhecido nos EUA mas não tão profundamente"; o brasileiro Fernando Meirelles, realizador de "Cidade de Deus", está a rodar um filme a partir de "Ensaio Sobre a Cegueira" (com Gael García Bernal, Julianne Moore e Mark Ruffalo); e lançou no ano passado uma autobiografia, "As Pequenas Memórias".
Sheila Glaser não tem maneira de avaliar o impacto da peça publicada, mas lembra-se de que, naquela semana, "Blindness" (como foi traduzido "Ensaio Sobre a Cegueira") esteve no top de vendas da livraria virtual Amazon.
"Blindness", 400 mil
Foi há 15 anos que saiu pela primeira vez um livro de Saramago nos EUA, "O Ano da Morte de Ricardo Reis". "Ao princípio, foi como bater com a cabeça num muro", conta o escritor numa curta resposta por e-mail. Tinha "relativa atenção da crítica" e "vendas modestas", conta Drenka Willen, da editora americana Harcourt.
Em Setembro de 1998 saiu o terceiro título americano, "Ensaio Sobre a Cegueira". No mês seguinte o escritor recebeu o Nobel da Literatura um tiro em cheio. Este é, até hoje, o Saramago preferido dos americanos, tendo vendido mais de 400 mil exemplares.
Com o 13º. livro a caminho será a autobiografia e sai para o ano, não se pode queixar de falta de atenção nos EUA. A sua obra tem sido recenseada em vários jornais, do "Washington Post" à "Slate", "Salon", "The New York Times"... É daqueles escritores de quem se pode dizer que "a maioria dos leitores" americanos "já ouviu falar", diz José Ornelas, professor de Literatura Portuguesa e Cinema na Universidade de Wisconsin a viver nos EUA desde 1961 e que escreveu um artigo sobre o autor para um Dicionário de Literatura Universal.
Apesar da resistência inicial, Saramago que faz 85 anos a 16 de Novembro e nem dez dias depois terá uma longa exposição sobre si na Fundação César Manrique, em Lanzarote, onde vive conta que, "curiosamente, a crítica mostrou-se imediatamente receptiva, aberta à compreensão": "De modo que posso dizer que tenho nos EUA os melhores críticos que alguma vez poderia esperar. Claro que o Prémio Nobel despertou curiosidade das 'massas', mas suponho que essa curiosidade foi amplamente compensada pelos livros que publiquei desde então (afirmo-o sem presunção)."
As vendas comprovam-no. São bastante boas, até comparadas com Portugal, onde se venderam dois milhões de livros desde sempre, apenas o dobro do que nos EUA, onde é publicado desde final dos anos 1980. E são números bastante bons sobretudo se tivermos em conta que os EUA são um país onde a literatura estrangeira dificilmente entra: juntos, o Reino Unido, os EUA, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia publicaram pouco mais de três por cento de novos livros traduzidos, sendo que a maioria, três quartos, eram de não ficção (dados de 2004, os mais recentes da empresa americana Bowker, que se apresenta como a líder mundial de informação bibliográfica).
São números surpreendentes para Sheila Glaser ("é muito, mesmo sendo um país grande", diz), para a alemã Nicole Witt, a agente internacional do Nobel, e para a editora americana, a Harcourt, que tem no seu catálogo autores como Umberto Eco e os também Nobel Günter Grass e Octávio Paz. Foi "Ensaio sobre a Cegueira" que deu popularidade a Saramago, chegando a estes "números excelentes", diz Witt.
Mais do que olhar para os efeitos que possam causar o filme e o artigo no "New York Times", a agente do escritor vê-os como sinal da "presença crescente" do escritor português "na América do Norte". "É difícil chamar-lhe estrela mediática numa terra em que, além das estrelas de cinema e dos atletas, poucos o são. Mas é uma presença literária impositiva que gera sempre interesse e admiração."
O enamoramento e a irritação
A coincidência entre a saída do livro e o Nobel terá sido, como já lembrámos, fulcral neste enamoramento americano por "Ensaio sobre a Cegueira" que, entretanto, serviu de base ao filme, o que fará certamente disparar as vendas quando estrear, que inspirou cantores como Laura Veirs, que usou palavras dele para uma canção, "Don't lose yourself" (no último álbum, "Saltbreakers"), que tem sido objecto de estudo universitário em áreas tão diferentes como as Visual Arts ou... os Disability Studies.
A verdade é que há outros livros de Saramago que, pela sua especificidade portuguesa, "terão menos interesse para os americanos" como "Memorial do Convento", "Jangada de Pedra" ou "O Ano da Morte de Ricardo Reis", dizem José Ornelas e Ellen W. Sapega, outra professora de Português na Universidade de Wisconsin-Madison. Muitos dos alunos de Ellen Sapega, conta, "sentem-se seduzidos e fascinados pelo estilo do narrador saramaguiano". Pelo que José Ornelas conhece dos americanos, há uma "visão negativa do mundo" em "Ensaio sobre a Cegueira", um retrato da "não razão", de "um mundo totalmente ilógico", de "uma cegueira ideológica e política" que lhes pode interessar aos americanos mas não só, porque este é um livro com "um apelo universal".
"Alude a certas coisas do século XX, aos gulags, aos campos de concentração, ao fascismo na Espanha e na Alemanha que pode servir de leitura paralela a acontecimentos do século XX. Mostram que o homem não é um ser racional e que a opressão e o abuso de poder fazem parte da sua imagem". Essa ideia de universalidade está presente ainda no discurso de Sheila Glaser, que considera Saramago um escritor "fantástico", "inventivo", que sabe escrever sobre "a relação dos indivíduos com as instituições" e é alguém que "transcende a nacionalidade". E está presente no discurso de Drenka Willem, para quem Saramago é um "contador de histórias incrível", "com um apelo global", "bastante exigente mas com uma certa ternura".
Fala-se da universalidade, da componente política e ideológica da obra, mas há ainda as tomadas de posição políticas de Saramago que muito impacto mediático têm causado. Podem ter mais ressonância na Europa Portugal e Espanha, sobretudo, mas não passam despercebidas nos EUA. O influente crítico literário americano Harold Bloom, admirador de Saramago "é o mais poderoso romancista vivo do planeta", um "quase Shakespeare", disse não só reparou nelas como as ridicularizou numa entrevista a propósito de uma afirmação do Nobel sobre o conflito israelo-árabe há cinco anos.
"Saramago esteve em Ramallah e disse ter visto um novo Auschwitz. Algo que não só é uma estupidez, mas também é imperdoável. Conheço Saramago, estivemos muito tempo juntos e admiro vários dos seus romances, que são excelentes. Mas, quando fala de política, arrasta o estereótipo estalinista de sempre."
Na reportagem do "New York Times", a jornalista notava essa vertente, dizendo que o escritor tem "encarado a sua fama literária sobretudo como meio para divulgar as suas convicções políticas". "Membro do Partido Comunista Português desde 1969, manifestamente de linha dura, Saramago passa muito do seu tempo em encontros internacionais, onde faz discursos bastante pedantes e maçadores a denunciar a União Europeia ou o Fundo Monetário Internacional."
Hoje, estas palavras talvez não surpreendam o escritor. Mas há uns anos, "bater" no tal "muro" também não foi propriamente uma surpresa justamente por questões políticas. "Era conhecida a resistência dos leitores norte-americanos à literatura europeia. Além disso, eu não podia ser-lhes simpático: comunista, ateu, sempre em conflito com a política de Israel, em verdade, tinha tudo contra mim."
De lá chegam, "praticamente todas as semanas", pedidos para "realizar um filme sobre um romance seu", "perguntas de universitários que estão a fazer teses" sobre a sua obra ou "convites de universidades", conta a mulher do escritor, Pílar del Rio, por e-mail. Convites que o escritor não aceita porque, "da última vez que esteve nos EUA", prometeu que não voltaria enquanto "governasse esse violador de direitos humanos chamado Bush".
Doze anos e um milhão de livros depois, não se pode dizer que a América tenha tudo contra Saramago. Agora é Saramago que se pode dar ao luxo de ter algumas coisas contra a América.