Entrevista Pires Veloso "Não se pode ensinar às crianças que Eanes foi um herói"

Eanes não foi o herói do 25 de Novembro de 1975. A guerra civil esteve iminente e, se os comunistas desistiram, foi devido à acção da Região Militar do Norte e dos Comandos de Jaime Neves. Cunhal teve as malas feitas para fugir, mas foi protegido por Melo Antunes e... Eanes. O perigo da contra-revolução foi inventado, mas alguns oficiais da RMN apoiavam
a rede bombista da direita. A História segundo o então comandante da RMN, Pires Veloso,
a quem chamaram fascista, bombista, neocolonialista, vice-rei do Norte. Por Paulo Moura

a Trinta e três anos depois do golpe que marcou o fim, em Portugal, do Período Revolucionário em Curso (PREC), Pires Veloso considerou chegada a altura de contar o que diz ser a verdade sobre o 25 de Novembro de 1975. Escreveu um livro de memórias, Vice-rei do Norte, editado pela Âncora, onde apresenta a sua versão da História quando comandava a Região Militar do Norte.O que faltou para que tivesse havido, em 1975, uma guerra civil?
Esteve mesmo para acontecer, não tenha dúvidas.
Os líderes de todos os partidos à direita do PC chegaram a instalar-se no Norte?
Pelo menos o Mário Soares veio. E havia muitos oficiais que já tinham lugares marcados nas casas de familiares e amigos, aqui no Norte, para fugir.
Essa "fuga" foi coordenada consigo?
Não. Dizem isso, mas é mentira. Como também é mentira que tenha entregue armas em Bragança. Nunca entreguei armas a civis. Só tinha a minha tropa.
Alguém entregou armas a civis?
Os UEC [União dos Estudantes Comunistas] estavam todos em casa à espera que lhes fossem entregues armas, na noite de 25 de Novembro. Se o Partido Comunista tivesse entregado essas armas, como estava previsto, teria havido guerra civil. O país teria sido dividido em dois.
E teriam força para criar uma "Comuna de Lisboa"?
Talvez sim. Porque o Comando da Amadora, onde estavam o [Ramalho)] Eanes, o Garcia dos Santos, o Monteiro Pereira, era fictício. Não tinham tropas com eles e não mandavam nada.
E quem teria aderido a essa "Comuna de Lisboa"? Costa Gomes (Presidente da República)?
Não digo que não. O Costa Gomes fazia sempre um jogo muito complicado. Uma vez, uma multidão da UDP, vinda lá das Almadas, dos Barreiros, foi protestar contra qualquer coisa que o Presidente dissera. Ele chegou à varanda, levantou os braços e gritou: "Camaradas!" Acalmaram logo. Era um homem muito inteligente.
Quem impediu que tivesse havido a guerra civil, a 25 de Novembro?
Se houve algum herói, foi o Jaime Neves [líder do Regimento de Comandos]. Eu falava com ele quase todos os dias e perguntava: "Neves, como vai isso?" Ele respondia: "Se não fosse o meu digníssimo, não sei." Ele tratava-me por digníssimo. "Era capaz de não me aguentar aqui." Eu só lhe dizia: "Aguente-se! Se for preciso, tem aqui a minha ajuda."
Houve coordenação consigo, nas operações do 25 de Novembro?
Houve sempre. No dia 25 de Novembro, não. Ele é que fez tudo.
Então como é que a Região Militar do Norte (RMN) ajudou o 25 de Novembro?
Porque estava ali uma força coesa e disciplinada, que levou os que queriam a guerra civil a pensar: "Alto!" À última hora, inopinadamente, o Cunhal mandou desmobilizar. Porque sabia que perdia. O Norte tinha dois mil homens disciplinados. O Jaime Neves lá em baixo com o Regimento de Comandos disciplinado. Sabia que perdia.
A RMN não teve uma participação concreta.
No dia 25, não. Depois é que me pediram, de Lisboa, para enviar três batalhões, porque estavam muito aflitos. Eu pensei: "Três batalhões são dois mil homens. Querem esvaziar-me." Eu não confiava muito neles.
E não enviou.
Enviei 500 homens, que desfilaram em Lisboa. O Vasco Lourenço era governador militar e foi ele que controlou a situação. O Eanes, na altura, não passava de um adjunto do Vasco Lourenço.
Mas logo a seguir é nomeado chefe de Estado-Maior.
Ainda há dias falei com o Vasco Lourenço e perguntei-lhe: "Olha lá, como é que ele no dia 25 era teu adjunto e depois, no dia 27, aparece como chefe de Estado-Maior, e tu ficas-te?" E ele respondeu-me: "Olha, pá, custou-me, mas não queria fazer barulho."
No seu livro, diz que Eanes não teve nenhuma participação no 25 de Novembro.
Ele não fez nada. No entanto, apareceu depois como o herói do 25 de Novembro.
Como é que isso acontece?
Foi o Melo Antunes que assim decidiu. Eram os dois muito amigos, da escola do Exército. Então o Melo Antunes decidiu dizer que o Eanes foi o herói do 25 de Novembro e ilibar o Partido Comunista do golpe. Porque o PC preparava-se para tomar o poder naquela noite. Mas o Melo Antunes, que era comunista, veio à televisão ilibá-lo.
O Melo Antunes era comunista? Sempre surgiu como um moderado, líder do Grupo dos Nove...
Eu sei que o Melo Antunes era comunista. E também sei que o Álvaro Cunhal e amigos estiveram com as malas feitas, para fugir, depois do 25 de Novembro. Mas o Melo Antunes surgiu na televisão a dizer que o Cunhal não seria preso e o PC não seria ilegalizado. E os comunistas continuaram a ter muito poder, ajudados pelo Melo Antunes e pelo Eanes.
Herói ou não do 25 de Novembro, Eanes tornou-se importante a partir dessa altura. Foi eleito Presidente da República.
Uma vez, numa reunião em São Julião da Barra, o Melo Antunes diz: "Meus senhores, temos de escolher o candidato das Forças Armadas à Presidência da República. Em meu entender, deve ser um homem com óculos, com patilhas..." E eu disse: "Melo Antunes, por que não dizes logo que é o Eanes?" Mas ele fez de conta que não ouviu.
Por que decidiu agora escrever um livro para atacar Eanes?
Não é para atacar o Eanes, é para contar a verdade sobre o 25 de Novembro. Porque acho que está na altura. Odeio a mentira. É preciso explicar a importância do 25 de Novembro; se não tivesse existido, o 25 de Abril teria desaparecido. É uma data de uma importância extraordinária, mas que sempre tentaram fazer esquecer. E não se pode ensinar às crianças, na História de Portugal, que o Eanes foi um herói. Pois se ele não fez nada! O Vasco da Gama é um herói, descobriu o caminho marítimo para a Índia. O Camões foi herói, escreveu os Lusíadas. Mas o Eanes? Se me explicarem o que é que ele fez, eu retiro o que disse e peço-lhe desculpa.
Mas ficou a ideia de que foi ele que travou o avanço do comunismo...
Sabe porquê? Ao Pinheiro de Azevedo, que é um homem de valor mas muito inconstante, disseram: "Senhor primeiro-ministro, é preciso ir à televisão dizer que o Eanes é que foi um gajo bestial." E ele foi. Em frente das câmaras disse: "Obrigado, Eanes!"
O Pinheiro de Azevedo era manipulável?
Nesse aspecto, era.
Irresponsável?
Não. Quando ele esteve sequestrado, com todo o Governo, eu disse: "Eh pá, temos de fazer alguma coisa pelo primeiro-ministro." E telefonei-lhe para dizer que íamos organizar uma grande manifestação de apoio, aqui no Porto, e queríamos que ele estivesse presente. Mas não me passavam a chamada. Diziam que estava numa reunião. À terceira ou quarta tentativa eu disse: "Porra! Ligue lá ao primeiro-ministro ou vou aí com a minha tropa!" Ligaram logo.
Por que não o queriam deixar falar com Pinheiro de Azevedo?
Porque ele estava rodeado daquela gente de esquerda, e eu era um reaccionário e um fascista. Mas ele veio à manifestação, e disse-me: "Sabe que aqueles gajos estiveram ontem, até meio da noite, a tentar convencer-me a não vir."
Mas quem eram esses assessores? Militantes do PCP?
Também. E de outros partidos. Era essa gente de Lisboa e de esquerda. Eram os patriotas.
Havia realmente uma divisão norte-sul?
Havia. Como ainda hoje há. São os mesmos que não podem com o Norte e o querem destruir.
Na altura dizia-se que no Norte estava a extrema-direita e que havia o perigo da contra-revolução. Esse perigo nunca existiu?
Para mim, isso foi tudo inventado. Diziam que havia uma Maria da Fonte, e o cónego Melo, e tal. Eu nunca contactei com ninguém dessa gente. O que havia era um clima de terror. As pessoas tinham de vir para a rua dizer que eram de esquerda, por medo.
As pessoas não vinham para a rua, por verdadeiro entusiasmo, com os ideais do 25 de Abril?
Também. Durante o PREC, havia entusiasmo e terror ao mesmo tempo. Muitas pessoas foram agredidas, ou presas, por serem, alegadamente, fascistas. De mim sempre disseram que era um fascista e um bombista...
Não esteve ligado à rede bombista?
Não. Que rede bombista? Disseram-me que havia o ELP e o MDLP, que tinham muitas armas. Para mim, o ELP era uma fantasia, para meter medo. O MDLP, do Alpoim Galvão, onde eu sabia que estavam muitos oficiais meus...
Sabia que os seus oficiais pertenciam à rede bombista?
Sim. Quer dizer, não sei. Bombistas havia por todos os lados.
Mas estava informado de que oficiais seus pertenciam a alguns desses grupos armados?
Pois, constava. Mas o que eles queriam, no fundo, era ordem e disciplina. Não digo que pertencessem a esses movimentos. Mas havia um apoio tácito.
Da sua parte também havia um apoio tácito, então.
Não. Não havia nenhum.
Se sabia que os seus homens estavam lá e não os punha na ordem...
Eu não sabia. Constava. Um dia, um major que se dizia meu amigo entrou no meu gabinete e disse: "Meu brigadeiro, sabe, os comunistas estão a pôr bombas. Acho que nós também devíamos pôr." Eu respondi-lhe logo: "Major, ponha-se na rua!"
Sempre resistiu ao método da bomba.
Claro. Quando, a certa altura, me deitaram abaixo do helicóptero, estava eu no hospital com trinta e tal ossos partidos, foi visitar-me o chefe da Polícia Judiciária Militar. "Meu brigadeiro, venho informá-lo de que se passam coisas gravíssimas aqui na sua região militar. E por isso vou levar preso o comandante da Polícia, Mota Freitas, e o subcomandante, o major Cerveira, porque estão ligados à rede bombista."
Era verdade?
Não sei. Mas disse logo: "O Mota Freitas não vai preso. E o Cerveira também não." Eu parecia uma múmia, todo engessado. Só tinha a cabeça de fora. O que eles queriam era meter-se com a RMN, esse "antro", como diziam.
A queda do helicóptero não foi um acidente?
Acho que não. O helicóptero não embateu em nada, não houve nenhuma razão para ter caído. Disseram que foi um "erro humano". Ora o piloto não era o que vinha habitualmente. Ele próprio me disse: "Substituíram o piloto à última hora."
Mas o piloto morreu no acidente. Quem estaria por trás do atentado?
Não sei. Era a máfia instalada.
A queda do avião que matou Sá Carneiro também não foi um acidente?
Foi um atentado. Sabe, eu tive seis comissões na guerra colonial. Em Angola, em Moçambique, andava sempre de helicóptero. Tive acidentes de todo o tipo, em todo o tipo de aeronaves. Posso dizer-lhe: acidentes como aquele não acontecem.
Fez toda a guerra colonial, sem concordar com ela.
Tinha de estar lá. Era uma missão.
Algumas pessoas fugiram do país...
Fugiram mas foi por entre os tiros. Eu era oficial, tinha de cumprir as minhas ordens. Mas, nas operações, eu ordenava: "Vão, mas não fazem fogo. É proibido matar."
Era sempre proibido matar?
Sempre... não digo. Mas em várias ocasiões. Dizia: "Evitem. Só se forem atacados."
Por humanidade ou por não concordar com a guerra?
Por não concordar.
Dava razão ao outro lado?
Com certeza. Se eu fosse negro, também andaria lá a lutar. Daria cá um guerrilheiro!
É possível fazer a guerra contra alguém que achamos que tem razão?
É difícil. Põem-se problemas de consciência.
Mas o seu sentido de dever e de obediência era mais forte do que os problemas de consciência.
Era. Porque, se eu refilasse, punham-me na prisão e seria um inútil. Assim, considerava-me útil.
Se achava a guerra um erro, era útil colaborar?
Tentava amenizar o erro. Não matar, criticar...
Não sofreu represálias por causa disso?
Não. Os meus amigos admiravam-se de eu nunca ter sido preso.
Por que não foi? Muitos foram.
Não sei. Sempre critiquei, sempre disse que não concordava...
O regime, afinal, permitia a liberdade de opinião.
Bem, eu também não dizia muito. Não andava por aí pelos jornais, com altifalantes... Não tinha vagar para isso.
Depois do 25 de Abril, foi mandado em missão para São Tomé e Príncipe. Tentou travar a descolonização?
Não. Nem ia com esse propósito. O objectivo era que houvesse uma descolonização pacífica. Eles tentaram roubar armas, etc., mas eu troquei-lhes as voltas.
Foi uma descolonização diferente das outras?
Foi a possível. Quando cheguei, estavam absolutamente embriagados com a ideia da independência. Há uns dois anos, falei com um dos líderes guerrilheiros, Filinto Costa Alegre. Contei-lhe: "Sabe que eu pensei, na altura, falar convosco e propor que ficassem com uma situação idêntica à da Madeira e dos Açores, uma região autónoma de Portugal. Mas não cheguei a dizer nada, porque pensariam que eu era um neocolonialista." Sabe o que ele me respondeu? "Senhor general, e não seria possível fazer isso agora?"

O P2 contactou Ramalho Eanes, mas o general declarou não ter comentários a fazer à entrevista de Pires Veloso

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