Torne-se perito

A arte de construir jardins e o seu significado

Primeiro volume de um conjunto de obras dedicadas aos jardins dos vice-reis. Fruto de várias fases de investigação da arquitecta paisagista Cristina Castel-Branco, chega amanhã às livrarias

a A Quinta de Fronteira está localizada no vale de Benfica e ocupa uma área de aproximadamente seis hectares. Consiste num palácio, jardins formais e uma capela, uma área arborizada com vegetação autóctone, uma vinha, hortas e pomares. É uma propriedade nobre que começou por servir como pavilhão de caça e depois foi adaptada para se converter na residência principal da família Mascarenhas.O corpo principal do palácio e os jardins foram construídos no terceiro quartel do século XVII, no pequeno vale rural de Benfica, na protegida encosta nordeste da serra de Monsanto. Vários nobres, incluindo o marquês de Fronteira, costumavam caçar ali e tinham lá os seus pavilhões de caça, rodeados de áreas rurais e floresta. Nem toda a construção da quinta foi feita no século XVII. A ala poente só foi construída depois do terramoto de 1755, quando a família teve de abandonar as ruínas do seu palácio na cidade, no Chiado, perto do coração de Lisboa, e ir para o pavilhão de caça de Benfica.
(...) O pavilhão de caça, em Benfica, a dez quilómetros do centro de Lisboa, resistiu ao tremor de terra. Um mapa geológico oferece uma explicação para a sua sobrevivência a um choque como aquele que abalou a capital. O palácio de Benfica foi construído sobre uma camada de basalto, enquanto o centro de Lisboa tinha sido construído sobre calcários e zonas de depósitos de argilas. Benfica tinha-se mostrado um lugar bem mais seguro para se viver e os Mascarenhas mudaram-se para lá e transformaram o pavilhão de caça em residência permanente até aos dias de hoje.
Para além da segurança do substrato rochoso, outras qualidades físicas do vale de Benfica tornavam o local apetecível, e a localização do pavilhão do século XVII mostra que os proprietários de Fronteira estudaram aprofundadamente o local e desenharam o palácio e os jardins de forma a responder às principais dificuldades da região: os fortes ventos de noroeste e a escassez de água no Verão. Os efeitos do vento eram reduzidos pela colina protectora de Monsanto, permitindo também uma exposição a nascente, mais agradável para a instalação do palácio e dos jardins. Sendo a água um elemento crucial na manutenção dos jardins mediterrânicos, o facto de haver nascentes naturais dentro da propriedade era uma vantagem. A suave encosta da colina, combinada com a disponibilidade da água, desempenhou um papel importante na disposição dos parterres, pois o sistema de irrigação depende da gravidade.
Outro factor determinante para a localização do palácio foi a presença de um convento dominicano que já existia antes da construção do palácio. Na paisagem portuguesa, a presença de conventos, alguns já do século XII, é um indicador de uma excelente localização para a agricultura e actividades afins. Os monges tinham estudado e acumulado conhecimentos milenares sobre a selecção dos locais mais adequados para construir e viver. Uma descrição do século XVII, escrita por um monge dominicano, resume bem as qualidades do vale de Benfica, as suas características naturais e a presença do convento e das quintas: "A huma piquena legoa da cidade, pela estrada que corre pera Sintra, pouco desviado d'ella pera a parte do Poente, fica como escondido, e furtado a comunicação da gente hum pequeno vale, que sendo naturalmente aprasivel por frescura de fontes e arvoredo, mereceo, ao que se póde crer, o nome que tem de Bem-fica (...). De huma e outra parte (do convento), correm quintas, que cercão os outeiros, e vale em roda, algumas de bom edificio, outras mais ao natural: todas ricas de bosques, e pumares, e cercadas de suas vinhas, com que a mór parte do ano mantém o vale huma frescura, e verdura perpetua."
O vale também oferecia solos férteis. Um mapa de Fronteira do século XIX mostra os diferentes níveis da propriedade, plantados com uma variedade de culturas. Havia um pomar, uma vinha, uma horta e um jardim de roseiras. Este mapa, apesar de ter sido desenhado dois séculos depois, não se deve afastar muito do projecto original do século XVII. Nele aparece representada a mata, cujo coberto vegetal apresenta nesta quinta uma situação única. Ao contrário daquilo que sucede noutras quintas situadas em zonas rurais, em que as matas existem no exterior dos muros da quinta e dentro dela a vegetação natural foi substituída, aqui sucede o contrário; Fronteira tem dentro dos seus muros a única mata original de Monsanto. Esta mata é um exemplo típico da floresta Perenifolia desta região. A composição desta mata de quatro andares demonstra uma associação perfeitamente desenvolvida, onde pouco foi perturbada a vegetação climácica. A floresta é composta por um plano superior de árvores de grandes dimensões tais como a Quercus rotundifolia e a Olea europea, seguido por um andar arbustivo de porte médio, tal como o Laurus nobilis, o Arbutus unedo e a Phillyrea latifolia.
Um andar de plantas herbáceas vivazes, como o Ruscus aculeatus e a Coronilla valentina, e uma camada de plantas rasteiras em que domina a Vinca difformis, que se estende sobre a camada de detritos, sendo esta última um bom indicador da existência e diversidade do coberto vegetal superior.
(...) A propriedade está cercada por um muro que envolve toda a mata e, como os passeios a cavalo e a caça já aí não se praticam há mais de um século, a vegetação desenvolveu-se com poucas perturbações. O reduzido número de utentes não afectou o ecossistema acima descrito e a mata é, por isso, uma comunidade única isolada no meio da vegetação da serra de Monsanto a qual foi, pelo contrário, profundamente "manuseada" durante a década de 40 do século XX.
Em resultado da sobre-exploração agrícola de Monsanto, a erosão transformara-a numa terra de baixa produtividade. Na década de 1940, Duarte Pacheco, presidente da Câmara Municipal de Lisboa e ministro das Obras Públicas, propôs a reflorestação da área de Monsanto, que foi projectada sob a supervisão de um agrónomo, Francisco Flores, pelo arquitecto Keil do Amaral, e foram plantadas 10 000 árvores, essencialmente Cupressus, Eucalyptus e Pinus, de acordo com um programa extraordinariamente rápido que pretendia preservar a serra de Monsanto como área verde não urbanizada. Arbustos e árvores foram plantados de forma quase geométrica numa área anteriormente cultivada com cereais. Atingiram agora a maturidade e constituem o "pulmão verde", de cerca de mil hectares, de Lisboa. É esta floresta plantada no século XX que rodeia a mata de Fronteira, servindo de pano de fundo a toda a quinta.
Ainda no século XIX e, segundo um relatório de 1838 escrito por um feitor, na zona mais baixa da quinta, onde a mata acaba, foram plantados pomares e vinhas cujos rendimentos são descritos nas contas agrícolas da quinta. "O Palacio com todas as oficinas, palheiros, cavalariças e abeguarias, jardim, pomar, vinha, arvores de fruto, e alguma hortaliça, a sua produção n'este semestre, he laranja que se vendeu por duzentos e vinte mil reis..." José Cassiano Neves, que publicou este documento na monografia que temos vindo a citar, escreveu também que a tradição oral dizia que na Quinta dos Loureiros tinha havido um imponente laranjal, e acrescenta: "D. Francisco Mascarenhas manda vir da China para Goa a primeira laranjeira, que trouxe para Lisboa em 1635, plantando-a no seu jardim."
Os Jardins dos Vice-Reis - Fronteira
Autor: Cristina Castel-Branco
Editor: Oceanos
192 págs.
40 euros

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