Se isto é uma artista

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Não é preciso conhecer Duchamp para reconhecer Joana Vasconcelos: as obras dela dirigem-se a todos, ao cidadão anónimo e ao público informado. Mas procurar interlocutores - críticos, comissários, directores de museu - que falem dela é esbarrar num muro de silêncio. Como é que alguém tão popular pode ser tão impopular?

Em Junho, a propósito de uma exposição de Jeff Koons em Chicago, a revista "New Yorker"escrevia: "Os grandes artistas são o raio X das culturas que os elevaram. Uma retrospectiva de Koons [...] provoca um espanto desconfortável, na ordem de um 'Foi a isto que chegámos?', e a conclusão eventualmente relutante: 'Oh-oh'."

A arte contemporânea não carece de figuras como Koons. Elas fazem pensar nas personagens de desenhos animados que correm para o precipício e ficam a pairar no ar; só quando olham para baixo é que caem (não são necessariamente eles que caem, por vezes são as nossas noções de arte e de artista, o que, pelo menos, é regenerador; como todas as coisas, a evolução da arte também é um rasto de destruições). "Enfants terribles", como se costuma dizer - a bonomia é sempre mais fácil quando tudo isso se passa num planeta distante (neste caso, a América), mas o que é que acontece quando, no contexto português, alguém escapa aos esquemas tradicionais e mentais do que é - do que deve ser - um artista?

Joana da Cunha Ferreira acaba de rodar um documentário sobre Joana Vasconcelos ("Coração Independente", produção da Midas Filmes).

A realizadora esteve na Bienal de Veneza em Junho de 2007, quando a artista foi convidada a expor no Palazzo Nani Bernardo Lucheschi, frente ao Gran Canal, à margem da representação portuguesa, e viu como meio mundo (entre os portugueses presentes) lhe virou as costas. "Toda a gente começou a dizer 'Ai, não'. Houve ali uma cisão pró-Joana e anti-Joana."

Desde "A Noiva" (2001), o lustre feito de tampões que lhe trouxe notoriedade, Joana Vasconcelos parece ter passado de artista promissora a figura polémica. Procurar interlocutores no meio português - críticos, comissários, directores de museu - que falem dela é esbarrar num muro de silêncio, ainda que nos bastidores exista uma indisfarçável desconfiança, quando não desdém. O Ípsilon contactou várias pessoas que recusaram falar e isso, como sugeria uma delas, também quer dizer algo: ausência de reconhecimento. É como se ela não existisse.

Mas alguém que dá a cara nas ruas, a 12 metros de altura (campanha "Europe's West Coast" para a promoção da imagem externa de Portugal, com a cortesia do Ministério da Economia e da Inovação), só pode estar determinada a existir. "Os artistas plásticos não costumam ter esta visibilidade, não são figuras públicas", notou José Carlos Malato, quando Joana Vasconcelos foi ao seu programa "Sexta à Noite" (RTP1, e, agora, YouTube). Os artistas plásticos também não costumam ir a "talk shows".

"É um bocadinho 'pop star', a Joana, e presta-se a isso", diz Joana da Cunha Ferreira. João Fernandes, director de Serralves, responsável pela primeira exposição de Joana Vasconcelos num museu, em 1996, vê nela "um caso extremamente interessante" em que "o processo de construção da figura do artista decorre das mesmas instâncias que legitimam um artista pop." Num contexto global em que o mercado da arte parece cada vez mais orientar-se pelos paradigmas da pop, isso até pode ser sinalizado como condição contemporânea.

"A Joana percebe perfeitamente a mecânica dos tempos que correm", diz Joana da Cunha Ferreira. "É para aparecer nas revistas, apa aparece. É para ir à televisão, vai. O que acho porreiro, até. Acho, pelo menos, desempoeirado ela assumir que a arte dela é para todos. Mas isso tem um preço."

Popular, logo impopular

Não é preciso ter estado em Veneza para ver como a aceitação por parte do mundo parece ter custado a Joana Vasconcelos a outra parte do mundo. Basta ir ao "site" da artista (www. joanavasconcelos.com) que, apesar de não estar actualizado, ainda é o mais completo acervo bibliográfico do que a imprensa tem escrito sobre ela. O tom celebratório, exacerbado de alguma imprensa generalista contrasta com a quase ausência de discurso crítico. Os dois textos críticos que existem - os mesmos que se encontram na monografia dedicada à artista, editada pela ADIAC Portugal (Associação para a Difusão Inter Internacional da Arte Contemporânea) - são assinados por um espanhol (Agustín Pérez Rubio, comissário do MUSAC - Museo de Arte Contemporáneo de Castilla y León, que adquiriu uma peça de Vasconcelos) e por um português em Paris, Jacinto Lageira, professor de Estética na Sorbonne.

"Há uma certa reacção ao facto de ela se ter tornado uma figura mais ampla em termos de projecção pública do que o meio artístico proporciona", adianta Miguel Amado, 35 anos, crítico de arte residente em Nova Iorque (escreve ocasionalmente sobre artistas portugueses na revista "Artforum") e comissário da colecção de arte da Fundação PMLJ, que contém duas peças de Vasconcelos (uma delas já existia antes de assumir essas funções). "Normalmente os artistas são reconhecidos 'inter pares' - são os próprios artistas que se legitimam uns aos outros - e, depois há um reconhecimento junto dos mediadores - comissários, críticos, galeristas e directores de museus. O público é a última instância de reconhecimento e a maior parte dos artistas só tardiamente é que a atingem. A Joana talvez seja a única da sua geração cujo reconhecimento já está no público. Toda a gente já ouviu falar dela, toda a gente já a conhece; ela não precisa do meio para existir como artista." Para Amado, "o meio artístico é uma máquina que se protege a si própria. Tudo aquilo que escapa ao seu controle é marginalizado. A Joana criou a sua própria dinâmica e ela é tão forte que é estranho estar a dizer que ela marginalizada."

João Pinharanda, que fez parte do júri que deu o Prémio EDP Novos Artistas a Joana Vasconcelos em 2000 e comissariou a primeira antológica da artista, em 2001, no Museu da Electricidade, em Lisboa, admite que o sucesso dela a possa colocar sob suspeita. "Todos os artistas que atingem um certo grau de notoriedade geram anticorpos. Os que em Portugal atingiram esse patamar sem possibilidade de recuo", e sugere nomes - Cabrita Reis, Julião Sarmento, Paula Rego ("Acha que a Paula Rego é consensual?!") - "vão ser sempre acusados de industrialização ou mecanização das suas receitas, de terem uma marca que são obrigados a reproduzir para serem reconhecidos". São artistas que "fizeram o 'take-off [descolagem]" num país que "nunca fez 'take-off '", nota o ex-crítico de arte do PÚBLICO, para dizer mais à frente que "há o moralismo da sociedade portuguesa que se atravessa sempre à frente das pessoas que têm êxito, e que tanto é contra o Berardo como contra a Joana Vasconcelos".

Artista grande, país pequenino

É comum começar a falar dela e acabar a falar no país. "Ela parte de uma vontade enérgica de fazer as coisas. Esse carisma é sempre visto em Portugal como uma provocação", diz o designer Jorge Moita, que em 2006 convidou a artista a fazer uma versão personalizada da mala La.Ga, marca dele. "Ela joga muito com a ironia e ironizar é aquilo que temos de aprender melhor a fazer."

"A Joana vai contra tudo o que são as doutrinas deste país, que é pequenino", afirma Joana da Cunha Ferreira.

Miguel Amado reconhece nela "um espírito completamente anglo-saxónico" (carreira construída a pulso, capacidade de produção em larga escala), Jorge Moita nota que ela "é uma óptima gestora e uma óptima Relações Públicas" da sua obra, Joana Neves, comissária independente que vive e trabalha em Paris, chama-lhe "brio profissional". Mas tudo isto implica que não se veja o pragmatismo como um fantasma. "A Joana estará interessadíssima em expor no Pompidou e em ter uma ala só para ela. E tem menos pejo em admiti-lo do que outro artista português. Porque, obviamente, todos querem isso", diz Joana Neves.

Em 2006, Joana Vasconcelos deixou a Galeria 111, ao fim de três anos e depois de ter estado na linha da frente na renovação geracional de uma galeria com um perfil institucional. Desde então, tem mantido a sua autonomia, não se fazendo representar por nenhuma galeria em Portugal e assegurando, ela própria, a comercialização das suas obras: recebe coleccionadores e potenciais clientes no seu atelier em Lisboa. Pinharanda admite duas leituras da saída de Joana Vasconcelos da Galeria 111. "Das duas, uma: ou ela não tinha mercado em Portugal, ou tinha muito mercado". Não é sem ressentimento que Rui Brito, que assumiu a direcção da 111 após a morte do pai, Manuel de Brito, diz que a galeria fez parte "da estratégia" de Joana Vasconcelos "em ganhar alguma visibilidade". "As nossas relações com os artistas são muito pessoais. Existe um espírito de cumplicidade, de entreajuda, que se sentiu ao início com ela, mas que se foi perdendo." Rui Brito aponta-lhe uma "ambição sem limites", mas podia ser qualquer outra pessoa a dizê-lo - esse parece ser um dos pontos não abertos a discussão. O MoMA é o limite, declara alguém, e não é a brincar.

The winner takes it all

Joana Vasconcelos é a primeira a assumir que Portugal não chega para ela, e no seu caso, a internacionalização tem tanto de ambição como de instinto de sobrevivência. "Há mais diversidade fora de Portugal, o que permite ter lugar para todos", resume Joana Neves. Vasconcelos tem-se mantido activa no circuito internacional - Bienal de Veneza, galerias em França e Áustria, exposições em Paris, São Paulo, Palma de Maiorca, presença em colecções privadas que importam (François Pinault, milionário número 34 no "ranking" da "Forbes" e dono de uma das maiores colecções privadas de arte contemporânea, comprou um "Coração Independente") - mas seria mais correcto, segundo Joana Neves, dizer que ela se tem mantido activa num circuito internacional com algumas especificidades - "que toca um certo tipo de instituição, um certo tipo de comissário, que não serão os mesmos que atraem a dupla Paiva/Gusmão ou Alexandre Estrela". Para esta comissária, "quem está em Portugal acha que a Joana está a tocar meios inatingíveis", quando "há imensos outros artistas portugueses que também criaram o seu público e estão a viajar."

"Tu não queres ser inimiga da Joana Vasconcelos", nota Joana da Cunha Ferreira. "Uma coisa que se tem de perceber é que ela foi campeã de karaté. Prepara-se para as coisas como em tempos se preparou para as competições - para ganhar. Ela não vê beleza nenhuma nas quedas."

Jorge Moita identifica nela "uma necessidade de superação de si própria, que pode ser em escala, em complexidade ou em tecnicidade". Talvez seja a raiz funda das proporções épicas da obra de Vasconcelos. Um atleta compete consigo mesmo. É, porventura, o que Joana Vasconcelos terá de mais comum com Cristiano Ronaldo ou Vanessa Fernandes, outros "rostos" da campanha "Europe's West Coast".

Da geração de artistas que surgiu na década de 90, ela foi a única "que arranjou uma linguagem e uma imagem que se pôde institucionalizar", refere João Pinharanda. Dito de outro modo: "Ela responde melhor que os outros às necessidades que a sociedade tem de criar imagens de si e para si própria."

A ironia é estarmos a falar de uma obra que explora uma "portugalidade" de série B, "uma estética vernacular, do português pobre, com a qual não nos identificamos", descreve Joana Neves, pelo que não é certo que não exista em Joana Vasconcelos uma reserva de subversão (ou mesmo perversão). Enquanto vacilamos, as palavras de Jorge Moita ecoam de novo: "Ela joga muito com a ironia e ironizar é aquilo que temos de aprender melhor a fazer."

O artigo da "New Yorker" sobre Jeff Koons terminava assim: "Talvez preferíssemos um artista melhor para representar o nosso tempo, mas isso provavelmente implicaria desejar que o nosso tempo fosse melhor."

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