Na hora de balanço não há amargura em Carlos do Carmo, só alegria

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Lança um "best-of". Comemora 45 anos de um carreira que irritou puristas e trouxe para o fado gente que não ouviria uma guitarra a trinar. Na hora do balanço, não há amarguras, só alegria.

É ele que o diz: trouxe gente para o fado que de outra forma não viria. Carlos do Carmo tinha todas as condições para ter sido um purista do fado tradicional: nasceu de uma fadista de eleição, Lucília do Carmo, viveu com o fado todos os dias no restaurante dos pais, O Faia. Mas foi abençoado com uma voz de "crooner", e uma relutância ao fado mais rasca, o que o fez procurar sempre as palavras certas para cantar. Por isso levou o fado para a canção ou a canção para o fado, é difícil dizer. E vieram as gentes que de outra forma não viriam, levadas por aquela dicção obsessivamente correcta.

Foi assim ao longo dos últimos 45 anos, que se comemoram com um "best-of" e um concerto no sábado, 29, no Pavilhão Atlântico. Com Camané, Carminho e Mariza como convidados. É a primeira vez que o fadista reúne oficialmente o seu melhor em disco, numa edição com três formatos: simples "best-of", duplo e duplo com um DVD que inclui um documentário de Rui Pinto de Almeida e actuações ao vivo.

Quanto tempo é que andou a ouvir tudo isto?

Não gosto de ouvir os meus discos. Mal acabo de gravar, sinto vontade de regressar ao estúdio e emendar tudo. Às vezes cá em casa ouvem-se discos meus porque os meus netos ouvem fado em casa dos outros avós, que são muito fadistas, mas neste caso nem a minha mulher foi obrigada a isso. Peguei nos auscultadores e estive horas a ouvir de cabo a rabo, para tentar dar um sentido honesto a este "best-of ". Nada aqui foi mexido. Quando surge um fado de 1967, foi mesmo gravado assim. A voz é aquela, a forma de cantar é aquela.

No primeiro CD há imensos registos próximos da canção. Temos harpas, oboés, cordas - inclusive "Canoas do Tejo" tem guitarra eléctrica. À conta disso foi atacado pelos puristas.

Isto eu nunca disse, mas fica dito: à conta disso trouxe milhares de pessoas para o fado que de outra forma não viriam, porque achavam a forma tradicional uma chatice. E depois aprenderam a ouvir a forma tradicional. As "Canoas do Tejo" foram orquestradas pelo Dennis Farnon, irmão do Robert Farnon, que foi o director musical do Tony Bennett. Não tem guitarra portuguesa, nem viola, nem baixo. Tem o conceito que ele entendeu do balanço que a canoa tem sobre o Tejo. E a forma de orquestrar tornou o disco imbatível. Os puristas falaram e continuarão sempre a falar. Os primeiros fados - ainda em discos de 78 rotações - da Amália eram lindas melodias. As pessoas diziam: "Ah, detesto ouvir a Amália porque ela anda a cantar canções". O que não disseram é que grande parte dessas melodias [compostas pelo Frederico Valério] impuseram-se em Hollywood, na Broadway. Você entrava num hotel americano e tinha um pianista a tocar essas melodias.

O que é que querem que a gente faça? Que fiquemos quietos a cantar o Fado Menor, o Mouraria e o Corrido e depois canta-se ali os derivados, aqueles 150 que os grandes clássicos fizeram, e não se tem direito a mais nada? Aquilo é o básico. A gente tem de começar por aprendê-los, senti-los, vivê-los. Depois vem o correr o risco, enganar-se, descobrir os seus confortos. E depois disso vai-se à procura do nosso fado. Há pessoas que atingem certos patamares - e não estão a transgredir coisa nenhuma, estão a ser criadores. O Piazolla não quis destruir o tango, o Paco de Lucia não quis destruir o flamenco. São pessoas que têm muito dentro de si e não podem estar preocupados com meia dúzia de pessoas que passam o tempo numa posição taliban: "Isto é assim e ninguém mexe mais nisto porque se alguém mexer nós damos-lhe quatro tiros".

A minha geração entrou no fado por causa de um disco seu, "Um Homem Na Cidade" (1977). Não sente que tudo o que fez será sempre comparado com esse disco?

Eu não sei avaliar isso, embora tenha ouvido sempre dizer isso. Quando saiu o "Um Homem na Cidade" foi muito atacado. "Lá vem ele outra vez armado em cançonetista, isto não são fados, são canções". "Um Homem na Cidade" tem uma coisa que não pode ser perdida de vista, que é o Ary. O Ary dizia-me: "Ó Carlos, eu tenho muita gente do meu universo que está sempre a bater-me, que acham que eu ando aqui a desperdiçar o meu tempo a escrever cantigas". Depois dizia, de forma nada demagógica, antes sentida, "Mas se tenho 36 por cento de analfabetos em Portugal que não vão nunca pegar num livro meu e se eu posso chegar a essas pessoas através das palavras que tu e o Tordo cantam, porque é que eu não hei-de chegar? Será que as palavras vão ficar menores por isso?" E eu vi o país inteiro cantar os fados do Ary comigo. Vi e vejo, porque ainda acontece a mesma coisa.

Disse uma vez que sabia que um concerto tinha sido bom quando chegava ao fim e tinha uma "sopa de água" na camisa. Quais destes são os fados que o fizeram suar mais?

Esta "Gaivota" foi um fado que sempre me fez suar muito. Foi um momento muito inspirado do Alain [Oulman] e do [Alexandre] O'Neill. Sei que a Amália me perdoou este roubo, ela nunca teve conflito comigo por eu ter gravado este fado logo a seguir a ela. Ela gravou-o e as pessoas não ligaram muito. E eu agarrei-o com as duas mãos.

Falando da Amália: como foi a vossa relação?

Irregular. A Amália era contemporânea da minha mãe. Houve um período em que tive um relacionamento maravilhoso com a Amália, ainda rapaz. Quando comecei a cantar ela começou a achar-me menos graça. Considero-a uma voz única no século XX. Tivemos maneiras de sentir e pensar sobre a vida diferentes e isso pode ter-nos afastado um pouco. Tenho uma dívida pelo trabalho que ela fez por esse mundo fora - ela começou esse trabalho e a seguir fui eu. E sempre me falaram nela com muita admiração.

Ser filho de quem era valeu-lhe de certeza invejas. Foi difícil vencer isso?

Pode usar o verbo no presente, se quiser. Não foi difícil, porque o público fiel da minha mãe era exigente e rigoroso. Os clientes diziam à minha frente: "Ó Lucília, vai apoiando o miúdo. Ele tem jeito. Mas não te chega aos calcanhares". Isto nunca me ofendeu e foi sempre uma razão de estímulo.

A sua mãe era crítica dos seus talentos?

Severa. A minha mãe era uma pessoa especial, teve uma infância dura, pertence àquela clássica família portuguesa operária que tem seis filhos - aos nove anos foi para a fábrica trabalhar em vez de ficar a estudar. Havia uma dureza dentro dela, do sofrimento, do conhecimento da vida. De forma disfarçada ela tinha um grande orgulho em mim.

A entrega da sua mãe está mais próxima de um registo visceral. O Carlos já tem um lado de intelectualização do fado.

Há uma diferença: eu tive a oportunidade de estudar. E gosto do valor da palavra. Gosto de procurar quem está disponível para deixar musicalizar as suas palavras. É com esse fado que eu me identifico. Eu não suporto o fado rasca.

Há um lado menos digno a que o Carlos assistiu?

É muito rasca, não gosto. Não enjeito a história do fado, estudo-a e a atitude camaleónica do fado fascina-me. Começou por ser a canção das putas e dos chulos. Era assim há 150 anos. Ainda nesse período temos o aristocrata quase marginal que se vai imiscuindo e que vai trazendo com ele aquilo que ele tem - pode ser um boémio mas tem uma base. Esses aristocratas levam o fado para o salão.

Depois veio a burguesia - que é a minha geração. Os meus pais levavamme ao fado às verbenas - e eu via as pessoas a beberem bem, tocarem e cantarem uns para os outros, comer-se à volta de uma guitarra e de uma viola, mulheres e homens a cantar. Recordo-me de ter começado pouco a pouco a comercialização do fado: havia locais onde se pagava para se ouvir e onde as pessoas eram profissionalizadas. O público foi criando os seus ídolos e as suas expectativas. Um homem como o Armandinho, que foi um superguitarrista, ele era gestor do Luso. Os homens tinham profissões. Terminavam o dia, iam a casa, tomavam um duche - não jantavam, porque iam cantar e não era confortável cantar de barriga cheia -, aperaltavam-se com o seu fato, a sua gravata, a sua camisa e iam ali ganhar um suplemento para a sua vida. É gente a quem eu sinto que devo moralmente muito.

O Carlos fala cinco ou seis línguas. Ganhou isso na Suíça, quando foi para lá estudar?

Cá, no liceu, aprendi inglês e francês. Lá aprendi o alemão, italiano e espanhol. A Suíça ajudou-me em termos de postura. Esta coisa de ser pontual não é um luxo. Não estou a pôr os suíços como magnânimos cidadãos do mundo, mas sabem ensinar e sabem colocar as regras no jogo - o jogo tem regras, a gente aprende-as, chega a um país latino e, se as usar, acontece-lhe o que me aconteceu a mim: não sou um derrotado.

Teve sempre muito presente que o jogo tem regras?

Não, ser espontâneo é muito bonito. Eu sou latino, não fique a pensar que sou um relógio.

Mas é um homem que gere meticulosamente a carreira.

O que é que chama gerir a carreira?

Saber quando arriscar...

Não. Arriscar, arrisco sempre. Sei-me calar. É preciso de vez em quando, porque o país é pequeno.

Uma boa parte do seu famoso charme vem desse saber quando calar?

Não, essa coisa do charme vem do tempo do meu saudoso Ary. Era uma coisa nossa, mas depois isso passou para o público. Agora fiz uma coisa com o Camané, a Manuela Azevedo, a Maria João e a Lula Pena, e o sacrista do Camané passou o tempo todo a tratar-me por Sinatra. Eu acho piada - é um direito conquistado.

Ele sente-se feliz por ter o seu apreço.

Ah, mas tem desde miúdo. É uma coisa genuína. Aprecio a inquietação dele - é, como todos nós que criamos, inseguro. E isso é fundamental.

Mas o Carlos esconde isso.

Não escondo. Você é que não está ao pé de mim antes de eu entrar em palco. É uma ansiedade, uma angústia terrível.

Quando se fala com a Aldina ou com o Camané sobre determinados assuntos sentimo-los a tremer. Quando falamos consigo não. Como se se obrigasse a não deixar o outro sentir o peso que está em cima de si.

Ah, sim, mas nisso também tenho o favor da Maria Judite. Conhece-me como ninguém, ela tem uma maneira de estar por perto em que basta que alguém me queira dirigir a palavra cinco minutos antes de eu subir ao palco e ela salta como um tigre. Ela sabe que sou suficientemente bem educado para não responder à pessoa, só que aquele não é o momento de essa pessoa se dirigir a mim. Só que a pessoa não tem essa noção e por isso o tigre salta.

Sendo o Carlos um homem muito exposto, ela marcava-o muito em cima?

Não, nunca foi uma mulher muito ciumenta. Porque ganhou 50 a zero. Mas se o foi escondeu-o com muita classe.

E o Carlos gosta disso.

Agora estamos os dois velhotes, para que é que a gente vai falar nisso? Acho que defino tudo quando digo que ela ganhou 50 a zero. Eu não marquei um ponto, ela marcou 50.

Já ganhou o direito a reconhecer com esse à vontade os seus zeros?

Mas são muitos, meu caro amigo. De maneira nenhuma me tomem como um deusinho de coisa nenhuma, sou um sujeito cheio de defeitos. Mas há uma coisa, eu diria duas, que não sou: nem sacana, nem desleal. Tenho outros defeitos.

Até que ponto esse charme, essa classe de que gosta, não é uma protecção?

Não, não é. Eu sou mais espontâneo do que pareço. Às vezes dou por mim a ler as toneladas de entrevistas que já dei e acho piada sabe a quê? A esta falta de vontade que tenho de mentir. Encontro as respostas de há vinte anos e hoje elas não se contradizem. Eu sou um tipo muito grato à vida e isso provoca-me uma auto-estima muito razoável. Daí à vaidade ainda vai um passo muito grande.

Há uns tempos, entrevistando jornalistas estrangeiros para perceber por que é que o Camané nunca explodiu lá fora, eles diziam que lhe falta o que o Carlos tem: ser um mestre-de-cerimónias. Chega, fala com as pessoas, conta a história dos fados. Tem esse lado de querer seduzi-los.

Não é o lado de querer seduzi-los, é de ser português. Diga-me uma coisa: se eu der um concerto na Finlândia e não falar com os finlandeses, não os aproximar, o que é que vai acontecer?

Não conheço assim tão bem os finlandeses.

Mas eu conheço, que já lá cantei. É preciso aproximá-los. Se lhe quer chamar sedução - olha, aí tem uma coisa que se quiser chamar defeito chame defeito e se lhe quiser chamar virtude chame virtude: por acaso gosto de seduzir. Gosto, gosto.

Trabalhou muito com alguns autores muito politizados, o Fernando Tordo, o Zé Mário Branco, mas as letras que canta nunca são explicitamente políticas. Era uma coisa que queria?

Sim. Há uma coincidência curiosa na minha vida: sou contemporâneo de um grupo valiosíssimo de cantores ditos de intervenção. Fui muito amigo do Adriano, tinha imenso afecto pelo Zeca, gosto muito do trabalho do Sérgio Godinho, só para referir alguns nomes.

Deixou o Fausto de fora.

Tenho muito apreço pelo Fausto. Sempre apreciei a sua forma de abordar a música popular portuguesa, a erudição com que a usa. Tenho pena de não ter uma boa relação com ele, mas o Fausto é um bicho do mato. Estou demasiado velho para andar a bater à porta das pessoas e tenho pena porque ele sabe que eu o respeito, admiro, e ponto final.

Essas pessoas que mencionou fizeram um trabalho extraordinário. Mas sou um fadista e como fadista não podia - nem devia - tornar-me num cantor de intervenção quando o canto de intervenção estava tão activo. Eu tinha era de ter um canto onde as intenções estivessem presentes, mas onde não se resvalasse nem para a demagogia, nem para o populismo, nem para o panfletarismo. Se o "Um Homem na Cidade" fosse escrito como o Ary queria escrever muitos dos versos, você hoje não o suportava. O Ary, muito inteligente, percebeu como é que eu queria cantar o fado. "Um Homem na Cidade" é o símbolo do fado em liberdade, mas não é o símbolo do fado panfletário.

Que histórias dessa gente têm estes fados?

Há esta gracinha incrível, o "Fado expressionista", que o Zeca escreveu já tão doente e o Ary também - foi o Zé Mário que conseguiu fazer esta ponte entre eles. O "Fado Moliceiro", do Paredes - o Paredes tinha a parte A feita e não conseguia fazer a B. E uma vez aqui em casa o Ary desatou aos insultos e obrigou-o a fazer a B. E ele não saiu daqui sem fazer a B. Eles davam-se muito bem.

Com o prémio Goya à canção que interpreta no filme "Fados", de Carlos Saura, parece haver um novo reconhecimento do Carlos do Carmo.

Nunca me senti afastado. Eu vendi sempre milhares de discos, esgotei sempre concertos, nunca parei. Só fui discriminado por razões políticas - e violentamente. Só para ter uma ideia: estive sem cantar na RTP de 1977 a 1982.

Ganhou muitos inimigos ao longo dos anos.

Mas ganhei muitos amigos. Estive a morrer há oito anos. Seria incapaz de viver com rancor ou com raiva.

Afastou-se de quem o desiludiu?

Já dei oportunidade a algumas pessoas. Mas não posso dizer que sinto a mesma coisa que sentia antes. Eu não sou Jesus Cristo.

Uma última pergunta: ouvindo este duplo "best-of", não há aqui propriamente tragédia, não é?

Não. Ironia das ironias, este disco sai uns dias depois de se retirar o homem que lançou durante oito anos o mundo numa grande tragédia.

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