"Gigantes da Montanha" somos nós

Foto

O universo onírico de Pirandello está em cena no Teatro da Cornucópia desde ontem. A peça "Os Gigantes da Montanha" é inacabada. Há especulações. É melhor ou não por isso? Para a encenadora francesa Christine Laurent a peça está inteira.

No universo do siciliano Luigi Pirandello (1867-1936) todos podemos ser actores. Afinal, dos nossos corpos fazemos fantasmas. E não é preciso criá-los, nem ir buscá-los longe, basta deixá-los sair. Quem o diz é o mago Cotrone -a personagem central de "Os Gigantes da Montanha", representada por Luis Miguel Cintra -que, entre fantoches que ganham ânimo e uma actriz obcecada pelo teatro, tenta convencer-nos de que podemos fazer da vida um sonho colectivo.

Sonho que é manifestado na história de um grupo de pessoas que vive numa mansão isolada numa montanha, liderado por Cotrone. Um certo dia, recebem uma companhia de teatro, a Companhia da Condessa, que está à procura de um sítio para representar a peça "A Fábula do Filho Trocado", também de Pirandello, e de um público.

O texto "Os Gigantes da Montanha" é incompleto, só tem dois actos. O autor não chegou a terminá-lo, porque morreu. A francesa Christine Laurent, encenadora da peça, de certa forma não a considera inacabada.A "peça está cá", isto é, está inteira, diz-nos numa sala do Teatro da Cornucópia, em Lisboa. "Há outros [encenadores] que pensam que é interessante encenar e inventar o final, mas não a partir do nada. Isto porque, dois dias antes da sua morte, Pirandello ditou ao seu filho de forma bastante simplificada a maneira como imaginava o último acto. Contou-lhe os factos, o cenário, o que ia acontecer."

Por isso, "existe uma ideia sobre o que seria o final da peça, mas não sobre os diálogos". Cada encenador depara-se como uma escolha a fazer. "Alguns deram um final 'mudo' à peça, como Giorgio Strehler", baseado no testamento oral do autor. Outros encenadores colocam um actor a ler o texto que o Nobel italiano ditou ao seu filho." Christine Laurent manteve a peça tal como Pirandello a deixou.

Christine Laurent acredita que pode não ter sido um acaso o facto de o autor não ter terminado a peça. Uma série de evidências sustentam esta suspeita. A encenadora destaca a prolixidade e a velocidade com que ele escrevia. "Ele escrevia um número incalculável de contos e peças rapidamente. No caso desta, demorou quatro anos. Pensava muito e punha sempre o texto de lado. Pode-se pensar também que ele talvez não tivesse vontade de finalizá-la."

Por outro lado, a incompletude da peça poderia levantar dificuldades e problemas de realização cénica, segundo especialistas. "Não é porque dizem que está inacabada que tive dificuldades. É difícil montá-la porque é feita de contrastes muito violentos, de coisas muito felizes e ao mesmo tempo de coisas muito cruéis."

Christine Laurent também é cineasta.Faz filmes, escreve argumentos e diálogos, em particular, para o francês Jacques Rivette. Foi numa das vezes que escreveu para o realizador que teve o primeiro contacto com uma obra do italiano. E foi a partir daí que teve a ideia e a vontade de trabalhar "Os Gigantes da Montanha".A encenadora conhece documentos e fotografias sobre as peças do autor, mas diz que nunca tinha visto uma obra pirandelliana. "Tem sido uma descoberta de um continente absolutamente novo. No meu último espectáculo trabalhei 'O Ginjal' de Tchekov, um 'terreno' conhecido." Mas, o universo de Pirandello ainda "é muito estranho, apaixonante e muito duplo", conta.

 

O Teatro dentro do teatro

A personagem Ilse Paulsen, também chamada de Condessa (Rita Loureiro), é uma actriz que pertence à companhia de teatro representada em "Os Gigantes do Montanha". Ela incarna o "teatro". Numa espécie de loucura e paixão, poderíamos dizer que a personagem se aproxima da esquizofrenia. Quer representar, mas está a procura de um público "verdadeiro".Por isso, interpreta o tempo todo, oscilando entre a realidade e a ficção.

O mago e anfitrião Cotrone "brinca" com Ilse, faz magia, faz aparecer luzes, pirilampos. Surgem vozes. Abre o mundo dela para os sonhos. Diz que são os espíritos, que a casa é assombrada. Ilse fica estupefacta e é confrontada com um novo conceito de interpretação. Ela e a sua companhia "jorram" teatro. Mas quem o vivencia e acaba por representar, de facto, é Cotrone e aqueles que coabitam com ele na mansão.

"Tudo o que ele [Pirandello] trabalha vem do inconsciente." E quando o mago Cotrone faz truques, "isso não é magia, mas parece-se mais com um trabalho de psicanálise", explica Christine Laurent. "O génio de Pirandello é amar o teatro e os actores de uma companhia. Ele faz com que eles girem num lugar totalmente mágico e incrível. O mestre do lugar, o Cotrone, vai fazê-los perceber que o inconsciente deles também é um palco, onde acontecem coisas que eles próprios reprimem." Para Christine, isto é o teatro dentro do teatro, "o jogo entre a consciência e o inconsciente".

Quanto ao tema do mito da arte, a todo tempo retomado na peça através do confronto entre Cotrone e Ilse, Christine diz que há duas questões muito claras: "o nascimento da escrita e a invenção das personagens". "A arte é uma criação e uma actividade, mas também é uma contemplação. Esta é a contradição. O trabalho do actor é ensaiar todos os dias, mas quando o espectáculo está pronto é preciso que ele represente como na primeira vez."

É preciso que o actor recupere a inocência do poeta que está à frente de uma folha branca, onde existe uma série de possibilidades de criação. "A peça mostra e demonstra isso porque Ilse, no final, interpreta como no princípio [da peça], de maneira fantástica." "Os Gigantes da Montanha" trata de mostrar a arte como algo que implica uma prática, mas também uma observação constante da criação.

O espectáculo dura 2h30, mas tem um intervalo. Quando voltamos, há novos elementos no cenário, tambores e fantoches postos sobre cadeiras. A encenadora explica que não era obrigatória a imposição da pausa para mudar o cenário, mas é mais prático. E além disso, é criado um clima de suspense.

Nesta segunda parte, Cotrone propõe que a Companhia da Condessa represente a "A Fábula do Filho Trocado" aos chamados "Os Gigantes da Montanha" - gigantes que, na verdade, nunca chegam a aparecer. E explica ao amedrontado Conde e marido da Condessa (Ricardo Aibéo) "que esses não são propriamente gigantes, mas chamam-lhes assim por serem gente forte e de grande estatura", constroem coisas e dispensam a poesia.

Para Christine Laurent "cada um de nós tem uma parte dos gigantes". E é este o sabor especial desta obra. O final é "um grito apavorado", que "deixa o espectador numa grande inquietude": uma das personagens grita "os gigantes vêm aí" e a peça acaba. "É o público quem tem que resolver o problema. E isso agradame", diz. Outro factor importante de não se ter um final é "que dá um aspecto não moralista." Aí, no final, imaginamos que somos nós os gigantes de Pirandello. É uma sensação de epifania, mas, afinal, na plateia de Pirandello todos podemos ser actores.

Sugerir correcção
Comentar